quinta-feira, 20 de setembro de 2012

D. Eurico, Bispo do Niassa - um Homem de coragem


D. Eurico Dias Nogueira, que em Dezembro de 1964 foi ordenado bispo, recebeu do Vaticano uma difícil missão: abrir em Moçambique a nova diocese de Vila Cabral - passou a chamar-se Lichinga após a independência- que se situava no Noroeste da então Província de Moçambique.
Trata-se de uma vasta região com 120 mil km2,mas com apenas 270 mil habitantes, maioritáriamente muçulmanos. A missão do novo Bispo é duplamente espinhosa, pois desde Setembro que vimos a guerra chegar àquela antiga colónia e ao lago Niassa, levada a cabo pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Logo que se sagrou Bispo, logo foi objecto de atenção por parte da PIDE, que já antes o referenciara. Desta vez foi por causa de um recorte do jornal «La Mañana», de Montevideo, que contém uma notícia da AP que foi difundida a partir de Lisboa. Dizia a agência norte-americana que «um bispo português pediu menos censura governamental nos meios de Informação e liberdade de imprensa», quando, em Lisboa, falou numa homilia que assinalava o aniversário do diário católico «Novidades». O Bispo, que é também jurista, solicitou «uma lei clara e boa para garantir a liberdade de informação, pois só assim poderá a imprensa informar a verdade». A PIDE já havia decidido abrir um processo ao ainda Padre Eurico Dias Nogueira, porque este, em 1958, escrevera uma carta ao Bispo do Porto, que se exilara.
A partir deste recorte, a direcção da PIDE faz um primeiro pedido ao Serviço de Ficheiros sobre as informações existentes a respeito do bispo, que, em Janeiro, voltaria a ser notícia.
D. Eurico instala-se na novíssima diocese de Vila Cabral, no Niassa, onde fez questão de chegar simbolicamente no dia 1 de Janeiro. Em Fevereiro, o responsável da PIDE na então Lourenço Marques -hoje Maputo- dá o alerta a Lisboa: «O Sr. Bispo de Vila Cabral (…) tem patenteado atitudes de hostilidade, censura e pouco reconhecimento para com o GovernoEm Abril, a guerra já alastrara por todo o distrito do Niassa, que tem por capital a cidadezinha de Vila Cabral. A guerrilha alarga-se a todo o Norte e o quadro é descrito pelo prelado, num tom bastante crítico, numa carta enviada ao Arcebispo de Lourenço Marques, D. Custódio Alvim Pereira: «Os militares começam por aqui a morrer às mãos dos terroristas. Mas ninguém lhes pode acudir rapidamente porque ou não há estradas, ou não dão passagem por falta de pontes e entretanto constrói-se a auto-estrada para a Matola, a ponte turística para a ilha de Moçambique… A tragédia e a possível perda da Província hão-de dar-se pelos Distritos de Cabo Delgado e Niassa, criminosamente abandonados pelas Autoridades Administrativas. Estas não gostam que se fale, mas há silêncios que constituem conivência nos crimes alheios

Lógico que apenas um mês após a entrada solene na Diocese, o Bispo da Diocese D. Eurico leva a Polícia a queixar-se dele a Salazar!
Na carta que escreve perpassa um sentimento de revolta contra o que designava como «a desgraça» que veio encontrar no Niassa: «Eu por aqui continuo a aturar um Governador de Distrito que não possui o mínimo de ’savoir faire’ (para não dizer coisa pior)» - referência ao então major Costa Matos, conhecido por «petit Napoleon»… As queixas estendem-se ao governador-geral de Moçambique, o general Costa Almeida, cujas «promessas (…) já estão a tardar demasiado». E a carta prossegue: «Talvez um dia a minha voz se faça ouvir e cause escândalo nos homens da política bem instalados na vida ou facilmente acomodáveis. Não vim para o Niassa para passar o tempo a tomar café com os ‘grandes’ da terra e chá com as respectivas esposas, como talvez eles desejassem (…) Se nada aqui puder fazer, hei-de um dia explicar à Nação o motivo dos meus forçados braços caídos.»

Numa mensagem ao reitor de Coimbra, escreve que as «selvas do Niassa» se apresentam «cada vez mais complicadas e traiçoeiras (…) Tudo mudou e o ar torna-se cada vez mais irrespirável (…) A pequena cidade está completamente rodeada de bandoleiros, se é que não andam livremente dentro dela, disfarçados em empregados, trabalhadores, cipaios, etc. Quase todas as noites se ouvem tiros e explosões aqui à volta (o que vale é que eles apontam muito mal e por isso as vítimas não têm sido numerosas)».

O Bispo vivia a três quilómetros da cidade, na casa de uma Missão, sem qualquer protecção, apesar das promessas feitas pelas autoridades, que, no entanto, não se cansam de o vigiar, a pontos de ele desabafar: «É possível que esta carta seja lida no caminho abusivamente por terceira pessoa, pois de há muito que os ‘direitos, liberdades e garantias’ consignadas no art. 8º, nº 6 (segunda parte), da Constituição Política são palavras vãs em Moçambique, sobretudo pelo que respeita aos Bispos».
Uma conversa, por ele tida em Lisboa, com Salazar, deixou-lhe boa impressão, «mas parece-me que daí para baixo anda tudo de olhos fechados: não vêem, não querem ver ou… fingem que não vêem».
Eis, em súmula, D. Eurico Dias Nogueira, Bispo Emérito de Vila Cabral e Sá da Bandeira, um Homem na verdadeira dimensão da palavra! O Niassa e Moçambique muito lhe devem!

1 comentário:

Esta descrição fez -me lembrar o dia em que D. Eurico chegou a Nova Freixo!! Fui uma das pessoas que, de certo modo, no aeroporto lhe prestou homenagem !!
Obrigada por me ter "avivado" as minhas memórias !!
menaribeiro@hotmail.com
Responder