sábado, 8 de setembro de 2012

Espoliados de Angola e Moçambique continuam de mãos vazias

23  ANOS  DEPOIS  DO  ABANDONO  DO  ULTRAMAR


São decorridos vinte e três anos sobre o abandono do Ultramar, e quantos perderam, em terras que consideravam portuguesas, tudo quanto possuiam, continuam a aguardar as indemnizações a que se julgam com direito.
Os Governos têm adiado uma solução condigna e justa, ao contrário dos restantes países europeus que possuiram territórios em terras africanas, que, atempada e honestamente, pagaram indemnizações a quantos tiveram que abandonar o que era seu, devido às independências, algumas delas sangrentas, dos territórios onde viviam.
Ângelo Soares é um membro activo da Associação dos Espoliados de Moçambique e, a exemplo do que tem acontecido em anteriores edições do Correio da Manhã, dá-nos mais uma vez conta da situação incompreensível em que se encontram os espoliados ultramarinos, situação que parece não motivar este Governo, nem aqueles que o antecederam. E numa entrevista, em que quase foram desnecessárias as perguntas, começou por nos afirmar:
"Os vários Governos após o 25 de Abril, incluindo o actual, esqueceram -- ou não tiveram a capacidade de claramente admitir? -- que os bens deixados pelos portugueses no Ultramar, porque adquiridos e propriedade individual de cidadãos portugueses, constituem, na realidade, um valioso património nacional."
"Segundo a Consituição Portuguesa -- prosseguiu -- em vigor até Abril de 1976, Portugal estendia-se do Minho até Timor, e os governantes portugueses não se cansaram de repetir este "slogan" durante tantos anos, que todo um povo acabou por se convencer de que era verdade. Em resultado desta política, e das dificuldades e limitações impostas às transferências de economias para o exterior, os portugueses, residentes no Ultramar, foram forçados a investir nos vários territórios então designados Províncias Ultramarinas, investimentos que foram efectuados com a ilusão de que estavam investindo em Portugal, uno e indivisível. Veio a revolução abrilista e o passado de Portugal em África pasou a ser apelidado de colonialismo, e severamente condenado como tal."
Houve realmente colonialismo?
Recordando outras intervenções suas sobre o mesmo tema, publicadas anos atrás no Correio da Manhã, Àngelo Soares acrescentou:
"Já em entrevista anterior, dada a este jornal, defendi o ponto de vista de que houve realmente colonialismo e que os cidadãos portugueses, residentes no Ultramar, foram vítimas de uma exploração colonial, como os naturais de origem africana. E até apontei alguns exemplos, disso demonstrativos. Em qualquer processo de descolonização, o país que foi potência colonizadora, e exploradora, deve assumir as consequências desse passado, o que até hoje não aconteceu em Portugal."
"Mais grave ainda -- prosseguiu: Foi publicada a Lei nº 80/77, de 26 de Outubro, cujo Artº 40 dispõe o seguinte: "Os berns sitos em território de ex-colónias, que se prove terem sido aí expropriados, nacionalizados, ou de outra forma objecto de privação duradoura de posse ou fruição, bem como os respectivos títulos representativos de direitos, estão sujeitos a regime de indemnização fixado segundo a lei do Estado de localização dos bens ou de sede ou direcção efectiva, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva nacionalização, expropriação ou privação de posse ou fruição".
"Na altura os legisladores portugueses que intervinham na Assembleia da República, da qual era presidente o dr. Vasco da Gama Fernandes, e então Primeiro Ministro o dr. Mário Soares, sabiam perfeitamente que a descolonização, a que nós chamamos abandono do Ultramar, não havia deixado em normal funcionamento, em qualquer dos novos países, um mínimo de estruturas de qualquer espécie, judiciais incluidas. Sabiam, igualmente, que a Frelimo havia implantado em Moçambique um sistema de governo marxista que não respeitava a propriedade privada. E sabiam, ainda, que os advogados em actividade em Moçambique, após um célebre discurso do Presidente Samora, no Estádio da Machava, haviam tido sentinelas, armadas de metralhadoras, à porta dos respectivos escritórios, onde não mais entraram, pois a profissão liberal e independente de advogado tinha deixado de existir em Moçambique. Por outra razão, que todos conhecem, em Angola a situação era idêntica".
Uma atitude...totalmente cínica
Exposta esta situação, Ângelo Soares não poupa comentários:
"Empurrar os cidadãos portugueses, espoliados no Ultramar, para o "regime de indemnização fixado segundo a Lei do Estado de localização de bens", como se pretende com o Artº 40º é uma forma cinicamente clara de alijar responsabilidades, atitude indigna de um Estado que se pretende de Direito. E, quanto a nõs, inconstitucional, além de outras por estas razões:
Em Outubro de 1977 estava em vigor a Constituição Portuguesa promulgada em 1/4/76, que no Artº 62º dispunha: 1) -- "A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição". E no Artº 14º a mesma Constituição era clara, quando se referia aos portugueses residentes no estrangeiro (caso de Angola e Moçambique independentes): "Os cidadãos portugueses que se encontram ou residam no estrangeiro gozam da protecção do Estado para o exercício dos direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país".
"Durante os 23 anos decorridos --prosseguiu--  o Estado nada fez para defender, junto das instâncias internacionais os interesses dos seus cidadãos espoliados em Angola e Moçambique. Esquecendo-se de que assinou (como os seus parceiros na ONU, os vários PALOP) a Carta Internacional dos Direitos do Homem, cujo artº 17º é claro: " 1 --Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade. 2 -- Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade".
"Além disto -- continuou -- acresce, no caso particular de Moçambique, que o Acordo de Lusaca, além de ter sido negociado e subscrito entre os representantes portugueses e os de um simples partido político, a FRELIMO, não contem uma única palavra a defender os interesses dos cidadãos portugueses depois da independência. E até hoje o Estado português não se preocupou em conseguir que o Estado de Moçambique ratificasse o Acordo de Lusaca, o que bem demonstra o pouco valor que tal acordo merece aos Governos que temos tido".
"Por alturas de 1976/77  foram publicados, nos principais jornais, anúncios em termos idênticos ao que a seguir transcrevemos, saído num semanário de Johanesburg: "O Consulado Geral de Portugal em Joanesburgo informa todos os interessados, que tenham deixado bens e dinheiros nos antigos territórios portugueses, que deverão enviar uma relação dos mesmos directamente ao Instituto de Cooperação Económica e Direcção Geral de Economia, organismos dependentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Largo de Rilvas, Lisboa. Essas relações, que terão de ser acompanhadas de fotocópias dos documentos comprovativos de propriedade desses bens e dinheiros, destinam-se apenas a obter uma tipificação e quantificação de casos concretos a apresentar em eventuais negociações.
Joanesburgo, 6 de Dezembro de 1976. O cônsul geral, Luís Navega".
E Ângelo Soares prossegue:
"Em resultado deste Aviso (era o título do anúncio) foram entregues até agora cerca de 95 mil reclamações em vários departamentos estatais, desde o Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Instituto de Cooperação Económica e ao Gabinete de Apoio aos Espoliados. E, quanto a nós, o número subirá acima das cem mil reclamações, quando os descrentes e os descuidados resolverem reclamar. 
E aqui se coloca a primeira pergunta: teria sido possível, em qualquer tempo destes vinte e três anos decorridos, cada um dos espoliados pôr a sua acção reivindicativa da indemnização nos tribunais dos Novos Estados nascidos com a descolonização? Através de que advogados? E onde estariam os juízes para julgar? E onde arranjariam os espoliados dinheiro para as despezas?"
Ângelo Soares não tem dúvidas de que competiria ao Estado português cumprir as suas obrigações e afirma-o com estas palavras:
"Numa situação destas reafirma-se não poder o Estado português deixar de cumprir a obrigação constitucional de defender os seus cidadãos. Lamentavelmente, os vários Governos que tivemos pós-25 de Abril pouco ou nada fizeram para tentar resolver o problema das indemnizações. Alguns políticos, poucos, que têm levantado a voz em defesa desta causa depressa se calam, impotentes para movimentarem os orgãos do poder. Ficam restando as muitas promessas, especialmente em períodos eleitorais. Deverá o Estado português assumir, clara e frontalmente, a responsabilidade pelas indemnizações. Quando as pagar entrará na posse dos bens indemnizados, e então poderá negociar com os chamados PALOP, em termos globais, em que condições será ressarcido. A Comunidade Económica Europeia mantém acordos com Angola e Moçambique através do Tratado de Lomé, situação da qual os nosses governantes nunca quiseram, ou souberam, tirar proveito".
O problema e as Nações Unidas
O mundo conhece a situação em que se encontram os portugueses que foram espoliados dos seus bens em África e Ângelo Soares recorda:
"Em Julho de 1974, a quando da visita a Portugal do então secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, foi-lhe dada a informação de que o montante dos investimentos privados efectuados em Angola eram de 190 milhões de contos, e em Moçambique de 150 milhões de contos, valores dessa altura. Tais montantes teriam sido apurados com base no Plano Hexanal de Fomento de 1974. E aqui se deixa a segunda pergunta: qual terá sido a reacção do sr. Kurt Waldheim à situação dos portugueses espoliados nos PALOP, agora membros legítimos da ONU?"
"A resolução 1514 -- prosseguiu --  da XV Assembleia Geral das Nações Unidas, tomada na Reunião do Plenário nº 947 de 14/12/1960, sob a designação de "Declaração para a Concessão de Independência às Colónias e aos Povos", a Assembléia Geral proclamou que "todos os povos têm o direito inaliedável de completa liberdade, de exercer a plena soberania, e à integridade nacional do seu território" e "proclamou a necessidade de eliminar, rápida e incondicionalmente, o colonialisno em todas as suas formas e manifestações", e num pomto 3 termina com a afirmação: "A falta de maturidade política, económica, social, ou educacional, nunca deve servir como pretexto para atrasar a concessão de independência". Com base nesta ( e outras) Resolução, Portugal foi altamente pressionado a sair do Ultramar. Aos políticos abrilistas não terá ocorrido a necessidade de a ONU liderar todo o processo de descolonização, o que teria defendido os interesses portugueses e evitado as terríveis guerras internas que se seguiram. Decorridos vinte e três anos é altura de se saber a quem cabem responsabilidades".
As reclamações já apresentadas
O nosso entrevistado volta a referir-se às muitas reclamações já apresentadas pelos espoliados do ex-Ultramar português, e fá-lo com estas palavras:
"Voltemos às 85 mil reclamações já apresentadas. Por volta de 1985 entendeu, e muito bem, o então Instituto para a Cooperação Económica que a vaga hipótese de negociações a nível de Estados, entre Portugal e os PALOP, para resolução dos problemas dos bens espoliados precisava de ser apoiada pelo conhecimento efectivo do montante total dos vários bens, cujas reclamações já haviam sido recebidas (a tal "tipificação e quantificação" de casos concretos referidos no Aviso de que atrás falei). Num esforço digno de apreço, foi efectuada a informatização de cerca de 45 mil processos, tendo os valores sido distribuidos pelas seguintes rubricas:
1. Conversão de Moeda; 2. Descongelamento de Contas Bancárias; 3. Indemnização por Bens Imóveis; 4. Indemnização por Bens Móveis; 5. Indemnização por Despesas; 6. Em aberto; 7. Honorários por Trabalho Extraordinário; 8. Vencimentos em Atraso; 9. Suspensão de Dívidas a Instituições de Crédito; 10. Transferência de Capitais; 11. Transferência de Pensões; 12. Transferência de Rendimentos de Bens Imóveis; 13. Transferência de Juros de Obrigações; 14. Transferência de Rendimentos de Quotas e Acções; 15. Transferência de Seguros; 16. Participações Financeiras; 17. Depósitos em Empresas; 18. Depósitos Consulares.
Este trabalho, que classificamos de extremamente valioso (pois permitiria calcular, com algum rigor, os valores em causa) acabou por ficar em meio. Pior ainda: existem na posse do GAE, o Gabinete de Apoio aos Espoliados, as folhas emitidas pelo computador, mas a respectiva disquete terá desaparecido. Pelo menos o GAE não conseguiu encontrá-la. Sem a disquete não é possível obterem-se os valores totais relativos a cada uma das rubricas. O GAE, durante os cinco anos da sua existência legal, nunca conseguiu resolver esta situação. Sabemos que os seus dirigentes fizeram os possíveis, mas os meios para ser realizada uma nova informatização nunca lhes foram facultados".
E acrescenta:
"Sem a preconizada "tipificação e quantificação" dos bens deixados no Ultramar como podem ser orientadas quaisquer negociações? Ou como poderá o Governo avançar numa solução? Os políticos contactados, a nível de ministros, secretários de Estado e deputados, frequentemente imaginam valores elevados, que dizem incomportáveis. Pessoalmente, prevemos que não será assim, mesmo admitindo que os valores de 1975 venham a beneficiar de uma justa correcção monetária. Decorreram vinte e três anos, que país é este?
A integração dos espoliados
A entrevista já vai longa, mas Ângelo Soares tem ainda algo a dizer:
"A forma como os espoliados do Ultramar se integraram na sociedade portuguesa, da qual a grande maioria havia saído há anos (calma, ordeira, trabalhadora, aparentemente desmobilizada) não tem sido devidamente avaliada pelos principais partidos políticos. Isto porque os espoliados estão politicamente bem informados e já demonstraram saber usar o seu poder de voto. Afirmamos, sem receio de desmentido, que o professor Cavaco Silva ainda hoje seria Governo com maioria absoluta se, em vez de criar um GAE--Gabinete de Apoio aos Espoliados, sem estruturas nem eficiência adequadas à enormidade dos problemas, houvesse tido em conta as reinvidicações dos espoliados, feitas com persistência durante os seus dois mandatos."
"Sem espalhafatos nem grandes parangonas na comunicação social, têm vindo a realizar-se, no decorrer dos últimos 23 anos, por todo o país, com uma regularidade e assiduidade em que os politicos não atentam, convívios, confraternizações, reuniões de esclarecimento, etc., durante os quais os espoliados de Angola e de Moçanbique se encontram, conversam, abordam os seus problemas e exprimem as suas críticas, à mistura, claro, com o natural e humano recordar do passado. Desde Fátima a Leiria, Braga, Mira, Bussaco, Parque de Monsanto e Caldas da Rainha, até aos muitos restaurantes já habituais. A tradição foi criada e tornam-se desnecessárias grandes convocatórias. Os endereços existem e, em regra, toda a gente sabe onde encontrar os amigos. Esta forma de mobilização, fora das ruas e das manifestações nascidas no pós 25 de Abril, confundiu os políticos portugueses, que até agora não mostraram capacidade para a saber interpretar correctamente".
"O actual Governo -- acrescenta ainda -- recebeu já das Associações de Espoliados os elementos necessários para estudar, com interesse e profundidade, o problema das indemnizações por bens deixados no Ultramar. Sabemos que um competente assessor do Primeiro Ministro foi incumbido de avaliar o problema e fazer o devido relatório, missão que desempenhou com a competência que se lhe reconhece. Veremos se a descrença dos espoliados nos políticos desta vez deixará de ter razão de existir".
Ângelo Soares termina, com estas palavras:
"Foi o governo socialista de Bertino Craxi quem publicou, em Itália, em 1985, a legislação que tornou possível que fossem pagas a cidadãos italianos indemnizações pelos bens espoliados em 1975 pelo Estado de Moçambique. O nosso governo socialista bem poderá proceder de igual modo para com os espoliados portugueses, atitude que até teria a virtude de remediar a intervenção desastrosa que alguns dos seus membros de cúpula tiveram em todo o processo designado por descolonização. Os espoliados do Ultramai, como bons portugueses que são, querem parar de perguntar: Que país é este?...
Perguntámos ainda a Ângelo Soares, como membro da Associação dos Espoliados de Moçambique, se àquela associação chegam muitos pedidos de informação por parte dos espoliados. Respondeu-nos:
"Somos abordados por muitos espoliados que nos pedem informações sobre a situação actual. Além disso temos arquivados no Internet as mais diversas informações, retalhos de imprensa, entrevistas, etc. que estão ao dispor dos interessados, nos seguintes sites: http://www.terra vista. pt/Bilene/1122 ou 1330.
A entrevista chegou ao fim. Mais uma vez os espoliados ergueram a voz, embora pareça que ninguém os ouve. Vinte e três anos são passados desde a descolonização exemplar. Em moçambique viviam muitos estrangeiros, italianos, gregos, ingleses, etc. Portugal dá ao mundo, mais uma vez, uma má imagem: é o único país da Europa onde os espoliados de África não receberam qualquer indemnização.
Inácio de Passos
in "Correio da Manhã"