quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Moçambique: os desesperados

Os trágicos acontecimentos registados durante o mês de Agosto em Angola haviam sido ansiosamente seguidos em Moçambique. Recordemos que a par dos distúrbios em Luanda se verificaram um pouco por toda a parte em Moçambique pequenos inci­dentes, que no entanto não se revestiram de grande significado imediato. Das hipotéticas deambulações dos chamados mercenários de Jorge Jardim pelos distritos da Beira e de Vila Pery, passando pelas sucessivas paralisações dos portos de Lourenço Mar­ques, da Beira e de Nacala, até à crescente actividade de guerrilhas da FRELIMO, com especial incidência nos distritos de Vila Pery, Beira e Tete — neste último com constantes sabotagens da linha férrea abastecedora das obras de Cabora Bassa — tudo le­vava a crer que cedo ou tarde a situação poderia agravar-se.
 
Ainda no mês de Agosto, Samora Machel tornou pública a intenção da FRELIMO, em prosseguir a luta armada cada vez mais abertamente até que as autoridades portuguesas se decidissem a reatar nego­ciações à luz das condições que para tanto a FRELIMO julgava imprescindíveis. 2 de Setembro, anuncia-se, por intermédio de Samora Machel — que em Dar-es-Salam deu uma conferência à Imprensa internacional — que Portu­gal aceitava finalmente as condições impostas pela FRELIMO e que as negociações seriam reatadas em Lusaka, a partir de 5 de Setembro. Esclarecia-se assim que o Governo Português aceitava o reconhe­cimento do direito inalienável à independência mo­çambicana, com a transferência de poderes para o povo do território, e reconhecia a FRELIMO como único representante legítimo do povo de Moçambique.
 
«Não vamos negociar a independência. O nosso objectivo é o de estabelecer a forma como o poder será transferido para a FRELIMO, o que corres­ponde aos interesses tanto do povo de Moçambique, como do povo português» — afirmou Machel, nessa conferência de Imprensa.
 
Também a provável participação da FRELIMO num governo provisório em Moçambique foi rejeitada pelo presidente do movimento, que asseverou a sua certeza de que o povo moçambicano estava mais do que suficientemente preparado para uma indepen­dência sob a orientação da FRELIMO. Samora Machel, ao fazer estas afirmações, baseava-se certamente na colaboração que começara nas últimas semanas a verificar-se entre as autoridades portuguesas e elementos da FRELIMO, para a ma­nutenção da ordem nos distritos mais nortenhos do território.
 
Soube-se, entretanto, que se registavam movimentos de tropas da FRELIMO junto à cidade da Beira, suspeitando-se de que aquele grupo emancipalista pretenderia assumir uma posição de força que lhe permitisse voz mais activa nas conversações a realizar em Lusaka. Em Lourenço Marques, por outro lado, cresce a ansiedade face às declarações de Samora Machel. O Dr. Antero Sobral, secretário de Estado do Tra­balho de Moçambique, e representante do Governo do território às conversações que se irão travar em Lusaka, afirma categoricamente que negros e brancos de Moçambique confiam na FRELIMO. 
 
Em Vila Pery, durante um comício de apoio à FRELIMO, o comandante Inguala faz um violento ataque a Jorge Jardim, apodando-o de «bandido, lacaio do imperialismo, ladrão dos interesses do povo moçambicano». Miguel Murupa1, Joana Simeão e Uria Simango são também acusados de traição. Em Lisboa, é anunciada a constituição da delega­ção portuguesa às conversações de Lusaka: ministros Melo Antunes, adjunto do primeiro-ministro, Mário Soares, dos Estrangeiros, e Almeida Santos, da Coor­denação Interterritorial, além de representantes das Forças Armadas e do já citado representante do Governo moçambicano.
 
A 4 de Setembro, uma quarta-feira, Lourenço Marques apresenta todo o aspecto de um domingo, na sequência de pedidos feitos à população para que nesse dia não trabalhasse, numa manifestação de apoio aos representantes da FRELIMO nas nego­ciações. O Governo do território, numa atitude «inte­ligente e diplomática», segundo observadores na ca­pital moçambicana, anunciou a tolerância de ponto para esse dia. Fechou o comércio, não trabalhou a indústria, e apenas as repartições oficiais consideradas de necessidade imprescindível funcionaram.  E entretanto feito um convite pela Associação Académica, pelos sindicatos, pelas direcções dos bancos, pelas associações comerciais, industriais, agrícolas e de proprietários, e ainda pêlos Democratas de Mo­çambique, para que a população se concentre no Estádio da Machava, antigo Estádio Salazar, que tem capacidade para cerca de sessenta mil pessoas.
 
Chega nesse dia a Lourenço Marques o industrial António Champallimaud, para, segundo afirma, uma visita às empresas de que é principal accionista — cimentos, nitratos e adubos, companhias de seguros, Banco Pinto & Sotto Mayor: mais de três milhões de contos, em resumo. Em Londres, já a caminho da Zâmbia, Mário Soares afirma a esperança de que Moçambique se torne independente em Junho ou Julho de 1975, e revela que será a FRELIMO a escolher o Governo de Transição que até essa data funcionará, nele sendo obrigatoriamente incluído um Alto Comissário repre­sentante do chefe de Estado português.
 
Em Lourenço Marques, ainda a 4 de Setembro, é distribuído um comunicado do Partido de Coligação Nacional (formado por Uria Simango, elemento dissi­dente da FRELIMO e cabecilha da COREMO; por Joana Simeão, ex-dirigente do extinto GUMO; pelo reverendo Gwengere), no qual se produz um violento ataque aos democratas moçambicanos.  A 5, iniciam-se as negociações em Lusaka, veri­ficando-se pelas afirmações feitas então por elementos de ambas as delegações que a boa vontade para um acordo final era mútua.
 
Em Moçambique, de Norte a Sul, inicia-se a con­fraternização entre guerrilheiros e militares do exér­cito português. Ao Estádio da Machava e à praça de touros de Lourenço Marques, acorrem milhares de moçambicanos, com esmagadora predominância de negros, mas também com muitos brancos, em comícios de apoio à FRELIMO. Pelas ruas das cidades sucedem-se as manifestações. Em Lisboa, paralisam os serviços do aeroporto, à excepção dos da TAP, por terem entrado em greve geral os trabalhadores das companhias aéreas estran­geiras; e de Brazzaville chega a notícia de que Por­tugal iniciaria em 1975 as negociações para a descolonização de Angola. A 6, em Lusaka, é assinado o cessar-fogo em todo o território, e chega-se a acordo quanto à transfe­rência de poderes para a FRELIMO. O protocolo é assinado a 7.
 
Da vizinha África do Sul, surgem logo notícias de que o governo de Pretória era favorável à indepen­dência de Moçambique sob a égide da FRELIMO. Salisbúria, por seu turno, mantém silêncio, e estão ainda presentes no espírito de todos as declarações de Ian Smith, bem recentes, segundo as quais Mo­çambique correria para «o suicídio económico e político», caso não mantivesse abertas à Rodésia as vias de comunicação vitais àquele país para o seu normal abastecimento. Das conversações em Lusaka, pois, saiu o acordo total para a transmissão de poderes, e é fixada a data de 25 de Setembro de 1975, aniversário da FRELIMO, para o empossamento do Governo Transitório.
1 Miguel Murupa: antigo elemento preponderante da Frelimo. Caído em desgraça, entrega-se às autoridades portuguesas — e tem uma ascensão meteórica nas relações públicas oficiais do governo colonialista.