terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (iii)

Correspondência secreta

Só em 1965 consegui, influenciando um e outro, estabelecer contacto directo, por escrito, entre Banda e Salazar. Servi-me do desejo comum de se construir a ligação ferroviária de Nacal com o Malawi. Tudo se processava à margem dos canais diplomáticos.

Na imagem: Oliveira Salazar

O Doutor Salazar, em 7 de Maio, assegurava o seu interesse pelo projecto e que iria determinar um estudo para poder ser tomada uma decisão final. E acrescentava:

"Concordo inteiramente com V. Ex.ª de que, entretanto, é do nosso comum interesse que seja mantido o conveniente segredo. Posso assegurar de que pela nossa parte o faremos."

O Dr. Banda respondia, sempre por meu intermédio, em 29 de Agosto, numa longa carta em que apreciava o problema criado pelos refugiados moçambicanos que afluíam ao Malawi, por milhares, nas zonas de Likoma e de Milange ocupando-se as autoridades portuguesas de proverem à subsistência dessas populações deslocadas.

Comentando o assunto, o Dr. Banda referia:

"A este propósito gostaria de informar a V. Exª quanto têm sido extraordinariamente auxiliadores e cooperantes o Sr. Jardim e o Dr. De Sousa. Têm sido extremamente úteis para o Governo do Malawi não apenas na resolução dos problemas dos refugiados moçambicanos na Ilha de Likoma como também, ao tratarem outros problemas melindrosos que afectam as relações entre Moçambique e o Malawi ou entre Portugal e o Malawi. Estes senhores são verdadeiros patriotas portugueses com excelente conhecimento e prático senso comum da diplomacia, que se opõe à diplomacia teórica e profissional que, em muitos casos, é um desastre".

Ao entregar esta carta, em Lisboa, o Doutor Salazar nem esboçou um sorriso, mas aceitou a minha recomendação para receber Pombeiro de Sousa com quem conversou longamente.

Quando ficámos a sós disparou-me a pergunta inesperada "Mas, afinal, como é esse seu amigo Banda que parece tê-lo conquistado?"

Foi, então, que lhe dei a resposta que correu Lisboa, em indiscrição que não me pertenceu: "Tal e qual V.Ex.ª, mas em preto".

Poucas vezes vi o Doutor Salazar rir-se com tanto gosto.

Mas era inteiramente verdade.

A mesma tendência para o recolhimento, a mesma devoção ao interesse nacional, o mesmo gosto pelas janelas fechadas, a mesma ausência de contactos íntimos influenciadores e até a mesma austera vida pessoal servida por devoções semelhantes. Só que o Dr. Banda exteriorizava a sua autoridade e realizava sem constrangimento as aparições públicas com notável poder de arrastar as massas.

O Doutor Salazar nunca se esqueceu daquela minha comparação. E por ela terá medido a minha estima pelo Dr. Banda.

Por isso, em 24 de Setembro, lhe respondia:

"Foi-me grato ler as palavras que V. Ex.ª escreve a propósito da acção do Eng.º Jardim e do Senhor Pombeiro de Sousa. Também pude receber este, na sua passagem por Lisboa, recentemente, e só podia ser-me agradável ouvir o que me disse a respeito dos contactos com o Governo de V. Ex.ª e dos problemas comuns em que ambos, porém, sem esquecer o seu país, revelam a maior fidelidade e dedicação a V. Ex.ª e ao Malawi."

Para concluir, referindo-se à visita do Dr. Banda a Madagáscar:

"Espero confiadamente que à volta de V. Ex.ª, do Presidente de Madagascar e de outros chefes que vêem pelo mesmo prisma os problemas de África, se erga uma barreira contra a demagogia e os extremismos que ameaçam lançar no caos tantos países, com prejuízo para o seu desenvolvimento económico e estabilidade política. Não posso senão fazer votos para que triunfe a política traçada por V. Ex.ª e felicitá-lo pela coragem com que a tem defendido."

A troca de cartas foi-se tornando cada vez mais frequente e não é este o momento próprio (porque disso me ocuparei em próximo livro) para publicar toda essa volumosa correspondência secreta de alto nível).

Nas minhas andanças, entre Banda e Salazar, diligenciava fazer entender os respectivos pontos de vista na evolução que se impunha e ia sendo progressivamente realizada.

Em vésperas do Natal de 1965 era Salazar quem escrevia:

"Creio que vai soar a hora dos moderados, dos homens ponderados e realistas que não estão dispostos a sacrificar a paixões desrazoáveis o bem estar dos povos que lhes estão confiados. Pressinto que haverá ainda alguns apelos à violência de que será preciso os responsáveis defenderem-se com prudência, para disporem de possibilidades de acção quando se quebrarem as últimas ondas das agitações estéreis."

Na imagem: Lago Malawi

Passando sobre os problemas emergentes da declaração de independência unilateral da Rodésia com a consequente necessidade de apoio da Zâmbia, que o Dr. Banda sempre defendeu e adiante referirei, as minhas maiores dificuldades resultaram, nessa altura, da acção das tropas portuguesas e da falta de senso da representação diplomática no Malawi.

A este propósito escrevia o Presidente Banda a Salazar em 9 de Junho de 1966:

"Nem eu pessoalmente, nem o meu governo temos objecções a que a Embaixada de Portugal celebre privadamente o Dia Nacional português como até agora tem sido feito. Mas ponho em causa, seriamente, o bom senso de celebrar o Dia Nacional português publicamente como a Embaixada de Portugal está a fazer este ano. Nas presentes circunstâncias em África, isto é uma desnecessária provocação, para já não me referir aos embaraços que causa ao meu governo. Não é certamente no interesse das boas e amistosas relações entre o Malawi e Portugal. Por isso peço a Mr. Jardim para informar V. Ex.ª imediatamente."

Esta foi, aliás, apenas uma das complicações que me resultou da acção da embaixada que parecia arder em ânsias nacionalistas que vieram a acentuar-se, depois, com Futcher Pereira.