terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (xi)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


"AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE"

Com o título "Aqui Moçambique Livre" publicou Ricardo Saavedra um livro que merece a pena ser conhecido e meditado, pela imagem viva que oferece da generosa revolta de Moçambique, em Setembro de 1974. Foi editado em Johannesburg e bem merecia, se possível, aparecer nos livreiros portugueses.

Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.

Quando rebenta uma revolta
Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.

No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.

De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.

Foi esse o rastilho da explosão.

O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.

Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.

Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.

Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.

A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".

O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.

Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.

Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".

Nada fora planeado e nada estava organizado.

Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago para se obter a reacção que convinha desencadear.

Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!

Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.

Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.

Mas desta vez ia ser mais sério.

Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)

Porque não entrei em Moçambique

De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.

Na imagem: Joanesburgo (África do Sul)

A permanência em Johannesburg poderia fazer crer que eu estava ligado à rebelião.

Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.

Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difícieis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.

Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.

O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos páraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.

Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.

Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagenss ao inimigo. Por isso o haviam provocado.

Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.

Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.

Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.

Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.

Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.

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Escutando o RCM, soube da compreensível mentira de anunciarem ter sido cancelado o meu mandato de captura. Pensavam no meu regresso como última esperança. Ouvi os aplausos da multidão quando isso foi divulgado. O Gonçalo Mesquitela haveria de vir a dizer-me que tal ovação tinha levado todas as recordações semelhantes que conservara.

A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.

Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.