quarta-feira, 12 de setembro de 2012

“Mudanças facilitaram comportamentos negativos em alguns dirigentes”



Sérgio Vieira, em “Grande Entrevista”, fala do passado e do presente




Entrevista conduzida por Jeremias Langa

Foi o primeiro governador do Banco de Moçambique, mas foi como ministro da Segurança que se celebrizou. Nesta entrevista, conta que no dia em que Samora Machel morreu desobedeceu às ordens de segurança, que o proibiam de voar à noite; revela que foi ele que fez a instrução do processo que culminou com a execução de Uria Simango, Joana Simeão, Lázaro Kavandame e outros, mas sublinha que não foi ele que apertou o gatilho. Também fala da Frelimo, ontem e hoje, da Revolução Verde; classifica a actuação da banca privada como "frisando a agiotagem". Sérgio Vieira aborda igualmente o problema da terra e mostra preocupação com o seu açambarcamento por estrangeiros. Enfim, uma entrevista ao me­lhor estilo do homem que comandou a secreta moçambicana com "mão de ferro", nos tempos áureos de partido único.
Falta-nos saber o que queremos
-  O vale do Zambeze tem uma extensão de cerca de 225 mil km2, é a reserva mais significativa da África Austral, possui a maior reserva de energia do sub-continente, possui condições para a produção de cereais, etc. Por que é que ainda não está a acontecer esse desenvolvimento?
-   O que não está a acontecer, o que está a acontecer, é sempre difícil de falar. O acon­tecimento é o resultado e o resultado precisa de tempo, pois não é um processo espontâ­neo, é um processo que acompanha muitos factores. Há muitas coisas que aconteceram. Eu digo sempre que Moçambique é um pouco maior que os arredores de Maputo. Muitas vezes, a comunicação social está longe do desenvolvimento, porque está bastante concentrada em Maputo. Há mil juntas que foram treinadas pelos próprios camponeses e que estão a cultivar: uma junta são 4 hec­tares, 1600 juntas fazem 6400 hectares, (...); houve muito trabalho de prospecção que nós fizemos sobre hidráulica-agricola, produção de energia, etc, isso tudo para ver se aqui se pode fazer uma barragem; aqui pode fazer-se 500/600 hectares irrigados, não se nota, mas está a fazer-se.
- Mas a apreciação que há é que lá (no vale do Zambeze) há um potencial para responder a muito mais do que faz, incluindo produzir comida para todo o país. O que falta para o take-off?
-  O avião sai da placa, chega ao princípio da pista, começa a rolar e levanta.
- E onde está esse avião?
-  Começou a rolar! O vale do Zambeze é uma zona privilegiada em termos do próprio país. Não é por acaso que o Governo, já em 1995, criou o Gabinete para o Desenvolvimento da Região do Vale do Zambeze, para além de que o próprio governo colonial tinha feito isso no passado. É uma zona única, na medida em que, do ponto de vista de solo, subsolo, mi­croclimas, permite responder às necessidades do país. Em termos de solo, verifica-se que trigo, arroz, mapira, jatropha, tudo está lá, a água está lá - água em Moçambique até este momento é uma calamidade. Quando falta é seca, quando há em excesso há inundação.
Vivemos num ciclo de calamidade, ao invés de fazermos da água uma riqueza, uma fonte prin­cipal do nosso trabalho. Talvez o que nos falta seja o aperfeiçoamento das nossas definições, do que queremos.
- E acha que não sabemos o que quere­mos?
-  Temos muito que aperfeiçoar. Direi de uma maneira muito mais simples: em termos de país, nós, por exemplo, já dizemos que as quotas de recursos renováveis estão fixadas. Agora, quando vamos para o subsolo estamos perante recursos não renováveis. Então, temos que dizer quanto é que queremos produzir de carvão, urânio, ferro, e produzir o quê? Carvão ou coque, ferro ou aço, e onde está o valor acrescentado? Porque se o valor acrescentado está no ferro, estou condenado a ficar com os restos, os outros com os proveitos e vou com­prar o aço lá fora.
-  Como é que definimos o vale do Zambeze como estratégico para o
desenvolvimento, enquanto não temos tudo isso claro?
- Tudo é um processo. A própria experiência, aquilo que vamos fazer, vai orientar-nos. O
vale do Zambeze, neste momento, e com o investimento necessário, é capaz de responder
às necessidades totais da África Austral em arroz. Neste momento, a África Austral está a
usar cerca de 800 a 900 milhões de dólares na importação de arroz.
-  Está a faltar investimento?
- Sim. Ainda há falta de investimento.
- Ainda há pouco, acompanhámos que três empresas chinesas iam desenvolver negócios no vale do Zambeze...
-  Até agora, não tenho conhecimento de ne­nhuma empresa chinesa que vai entrar através da Geo-capital. Nós estamos a trabalhar com uma empresa chinesa para o fornecimento de equipamentos agrícolas e fábricas. É um cré­dito negociado entre os presidentes Hu Jintao e Armando Guebuza. Posso dizer que estamos numa fase adiantada, possivelmente nos finais deste mês, ou no princípio do próximo, serão assinados acordos nesse sentido. São cerca de 50 milhões de dólares para maquinaria agrícola e três fábricas: uma fábrica para o processamento de milho que estará situada em Ulónguè, distrito da Angónia (Tete); uma fábrica para o processamento de arroz que es­tará situada em Maganja da Costa, província da Zambézia; e uma fábrica para o processamento de algodão, que estará no distrito de Guru, na província de Manica.
Revolução Verde é um guisado
- Qual é o enquadramento do vale do Zambeze na Revolução Verde?
Nós estamos a trabalhar nisso. Mas a Revo­lução Verde é um guisado, porque é a combi­nação de vários ingredientes. O objectivo é a Revolução Verde, mas é preciso preparar os diferentes ingredientes.
- E como é que está a ser esta combina­ção de elementos nessa perspectiva?
-  Algo está a fazer-se. Eu direi que daquilo que é ò meu gosto e minha vontade, ainda se faz lentamente, mas também é preciso saber em que país estamos, quais são os meios de que este país dispõe. Pode dizer-se investimento, mas o investimento tem muitos significados. Eu direi, e sobretudo disse isso quando estive a discutir com os investidores no estrangeiro, que quem sabe muito bem o que quer somos nós. Eu tenho que saber o que quero para atrair investimento...

-  E será que nós sabemos o que quere­mos?
-   Tenho a impressão que sim.
-  Por que só é uma impressão?
-  Bom, há certeza de que houve erros que nós cometemos, mas há coisas boas que fizemos. Houve facilidades que demos, talvez não sejam as melhores.
 - Está a falar de isenção fiscal?
- Não, isenção fiscal faz parte de um pacote para o investimento. Refiro-me, por exemplo, ao saber valorizar devidamente as nossas matérias-primas, das quais a energia. Ela é uma matéria-prima e, segundo o acordo que foi feito no tempo de Maria Cachucha, Marcelo Caetano, nós temos que dar energia à Africa do Sul, industrializar a África do Sul. Cahora Bassa não foi feita com objectivo de industrializar Moçambique.
- Mas há outros produtos, como o gás, que podíamos ter controlado de outra maneira…
- Provavelmente. Eu não conheço bem o dossier.
- Continuamos a exportar o gás como matéria-prima...
- A conclusão é sua. Eu não conheço bem o dossier do gás.
- Nós exportamos o gás para a África do Sul e vamos comprar os derivados do mesmo gás à Africa do Sul...
- De alguma maneira, parece-me que, se for isso, não está correcto, porque o gás é maté­ria-prima e nós com o gás fazemos tudo: agro-químicos, produzimos energia, etc.
Sem crédito agrícola não há agricultura
- É possível fazer Revolução Verde sem crédito nem seguro agrícolas?
-  Eu penso que das actividades produtivas, a agricultura e a pecuária são actividades de alto risco. Em toda a parte do mundo, há um crédito agrícola e há um seguro agrícola. De algum modo, o fracasso total que ocorreu em Genebra, nas negociações sobre o crédito, já lá vão sete ou oito anos, tem a ver com o crédito para a agricultura.
Fala-se muito da agricultura da Africa do Sul, da agricultura da antiga Rodésia do Sul (actual Zimbabwe). Já nos anos 30, havia o crédito e seguro agrários; havia cursos por correspon­dência para melhorar a tecnologia, não havia faculdade de agricultura neste país, aliás, a primeira faculdade de agronomia surgiu nos anos 70, portanto, é esta diferença toda.
Banca privada frisa à agiotagem
- Foi governador do Banco de Moçambique e tem sensibilidade para estas matérias: como explicar que o ratio dos lucros ban­cários em Moçambique seja superior aos dos países da SADC e dos próprios países onde estão as sedes dos bancos?
-Bom, não sou membro do conselho de admi­nistração de nenhum banco nem sou accionista de nenhum banco, mas eu creio que nós, em termos de banca privada em Moçambique, estamos a frisar à agiotagem. Em parte, há uma responsabilidade do próprio Estado.
-Portanto, está a dizer que a maioria dos bancos está a agir como agiota?
-A frisa à agiotagem. Não disse que são agiotas. Em parte, há uma responsabilidade do Estado nisso, na medida em que o ponto de referência das taxas que os bancos aplicam é a taxa que eles têm sobre os Bilhetes de Tesouro. O que tem acontecido, e neste sentido saúdo o Minis­tério dos Recurso Minerais e a empresa ENH, porque, pela primeira vez, emitiram acções que só moçambicanos podiam comprar, é que a banca monopoliza a compra dos Bilhetes de Tesouro e das acções e, sem trabalho nenhum, ganha dinheiro. O moçambicano também tem a sua poupança, também podia comprar o Bilhete de Tesouro, mas quando o Bilhete de Tesouro fica nas mãos dos bancos, estes ficam com tudo. Ora, este ponto é que encarece o cré­dito, porque o banco tem para si como critério o que lhe rende, que é o Bilhete de Tesouro, sem fazer nada. Por outro lado, se eu for a levar crédito para a agricultura, começo por dizer que a Maibor está a 14.5/15.0. Fazer agricultura sem irrigação e sem nenhum seguro e ter de pagar 18/20 por cento, não garante retorno. Por outro lado, mesmo para fazer um investi­mento industrial, o meu retorno ronda nos 20 por cento. Agora, se eu vou entregar os 20 por cento ao banco, é melhor eu construir a minha casa. As taxas de juro são altíssimas.
Acha que um banco de capitais nacio­nais teria uma visão mais nacionalista do que bancos de capitais privados, como temos aqui quase na generalidade?
-              É uma pergunta difícil de responder.

-Ou receia que levemos, de novo, o banco vá à falência, com empréstimos sem crité­rios, como sucedeu no passado?
• O maior esbanjamento que se fez aqui na ban­ca foi quando ela esteve nas mãos dos malaios. Não estava sob controlo dos moçambicanos; não vamos fazer, como diz o Presidente Guebuza, auto-flagelação, vamos ser honestos.
-Então, é defensor de um banco de ca­pitais nacionais?
- Eu defendo que o capital nacional devia fazer um banco, e seria bom que houvesse um banco de capitais nacionais. Já o tivemos e não funcionava mal. No tempo em que tínhamos três bancos em Moçambique, os bancos não estavam a perder dinheiro e eram totalmente nacionais, e os bancos portugueses que havia na época eram dependência de Portugal, esta­vam nacionalizados em Portugal e esses bancos estavam a perder dinheiro.
Empresariado tem que estar organizado!
- Escreveu, uma vez, que “não estamos a explorar os benefícios a montante e a jusante dos mega-projectos que se instalam no país". O que queria dizer exactamente?
- Entra alumínio, sai o alumínio e não sei se temos uma boa fábrica de panelas aqui. O ponto é que também o empresariado nacio­nal tem que estar organizado e tem que ter a capacidade de responder àquilo que são os benefícios que existem, e não se pode fazer o discurso do Estado.
- Acha que o Estado já fez o seu papel?
- Eu conheço muitos moçambicanos que têm grandes facilidades em juntarem-se a sul-africanos, portugueses ou ingleses, etc, mas que têm pouca capacidade em dizer "vamos juntar-nos entre moçambicanos. Nós temos que aprender a trabalhar entre nós moçambi­canos e até fazer empresariado. Há alguns casos positivos que estão a acontecer, mas há ainda muita hesitação no moçambicano em juntar-se a um outro moçambicano.
-  Hoje em dia, discute-se modelos de desenvolvimento e papel do Estado. Não acha que, no nosso caso específico, estamos a seguir quase como um cate­cismo o modelo neoliberal?
-   O neoliberalismo já provou a sua falência e alguns de nós ainda não aprenderam que faliu. De algum modo. se você paga uma orquestra, encomenda a música. Mesmo nos países do primeiro mundo, de economia liberal e neoli­beral, há intervenção permanente do Estado. Mesmo agora, o governo dos Estados Unidos foi buscar 950 biliões de dólares para injectar no mercado e atenuar a crise financeira, isto significa intervenção do Estado, não é?
Fenómenos negativos com a terra
- A questão dos biocombustíveis tem sido um assunto polémico a nível do mundo. Será que não é um dos exemplos em que nos encomendam a música?
- A questão do biocombustível é complexa. Nós aqui já definimos um princípio essencial: não podemos utilizar terra reservada à produção de comida para a produção de biocombustível, o que significa que haverá o que se está a fazer nos países do primeiro mundo. Nós temos uma grande capacidade de produção de biodiesel, do sul ao norte de Moçambique. Ao longo da faixa costeira, quantas dezenas de milhões de coqueiros temos? E qual é o aproveitamento que nós fazemos do óleo do coco? A jatropha é para terras marginais, muito bem. Vamos jogar com aquilo que é possível, que não põe em causa a cadeia alimentar do país e da região, para a produção do combustível.
- Quando se anda pelo país vê-se quem, de facto, detém a terra; há muitos es­trangeiros a monopolizar descontrolada­mente a terra. Acha que quando chegar o momento, não haverá um "assalto" a estas terras, que até agora mal contro­lamos?
- Eu tenho um horror disso! Eu pertenço à geração que entregou a sua vida para libertar a terra e os homens, e quando libertámos a terra, não dissemos que estávamos a libertar para entregar outra vez ao estrangeiro, e creio que estão a acontecer alguns fenómenos ne­gativos nesse ponto de vista e é preciso que nós moçambicanos digamos que libertámos a terra para os moçambicanos. Há muitos países onde para fazer um investimento no solo, no subsolo e mesmo na indústria, é obrigatória a participação do capital nacional, muitas vezes a custo zero, e não são países comunistas. Nós fizemos uma transição de uma economia centralmente planificada para uma economia liberal, sem fazer a salvaguarda necessária por falta de experiência, falta de conhecimento, e também falta de investimento. Vamos falar a sério, o investimento começou a discutir-se nos últimos 10 anos.
Há deformação da história do país        
- Nos últimos tempos temos ouvido, nós os jovens, versões da história que nos remetem à dúvida daquilo que é real­mente a verdadeira história de libertação de Moçambique. Sendo um dos actores dessa mesma história, como é que reage a isto?
Posso reagir na base da experiência e, como sabe, quando há um acidente de viação e há 10 pessoas que viram, é muito provável que venha ouvir 10 versões sobre o mesmo aciden­te, porque cada espectador tem a sua própria apreciação sobre aquele mesmo acidente, porque cada espectador, cada participante, tem a sua própria apreciação da história. Há aquilo que poderei chamar de deformações de boa-fé, depois há versões e deformações de má -fé. Eu tenho ouvido versões e deformações de má-fé que obedecem a intentos determinados. Eu digo que a história é feita por historiadores e investigadores e cada um traz uma parte da verdade, as próprias testemunhas trazem outra parte da verdade.
- Colocamos-lhe esta questão porque, ainda há bem pouco tempo, entrevis­támos o general Jacinto Veloso, e este dizia que não sabia se Uria Simango era reaccionário ou não. Tendo aprendido na escola que Simango era reaccionário, confunde-nos agora ouvir das mesmas pessoas que, afinal, as coisas não eram como nos disseram...
-Não ouvi e nem li a entrevista, de modo que não me pronuncio sobre uma entrevista que não vi nem li, pronuncio-me apenas sobre o que me está a dizer. Parece-me estranha essa declaração. Houve envolvimento directo de Simango no assassinato de Mondlane; houve envolvimento directo de Simango, mais que provado, nos eventos de 7 de Setembro. Não foi ele sozinho que foi à Rodésia, à África do Sul, pedir uma intervenção das forças armadas da Rodésia e da África do Sul em Moçambique.
Se isso não são crimes de alta traição, é porque na verdade no mundo não existem crimes de alta traição.
- Quando são os actores do processo a virem agora duvidar de alguns pressu­postos dos quais eles próprios fizeram parte, o que é que nós vamos pensar?
- Verificar os factos e dizer, olhe, você enganou-se. Existe o registo da rádio do 7 de Setembro, existem os diálogos da comunicação social. Eu acompanhei de perto; eles participaram no 7 de Setembro, foram à Rodésia e à África do Sul pedir a intervenção das forças armadas, mas que recusaram por razões muito eviden­tes, então, não houve intervenção militar em Moçambique.
-E isto justificou a execução destas fi­guras, que pagassem pelas suas vidas os seus erros?
- Completamente. Ir pedir a invasão do teu próprio país... faz favor! Quando Laval foi executado na França; quando o Marchal Caetano, grande herói da primeira guerra mundial, foi condenado à prisão perpétua, não foi por coisas menores!
- Recentemente, o jornal "Canal de Moçambique" veiculou num documento que depois da execução dos ditos reac­cionários, ficou decidido que se nomeasse um comité para preparar uma comuni­cação pública da execução destes. Esse documento iria ser assinado por Jacinto Veloso e a tal comissão integrava várias pessoas, de entre as quais o coronel Sérgio Vieira. Chegou a ser feita essa comunicação?
-  O que posso dizer é que eu fui designado, quando eles foram presos. Eu dirigi uma comis­são de inquérito que continuou o trabalho com dois objectivos principais: o esclarecimento sobre o assassinato do presidente Eduardo Mondlane e as questões relativas ao 7 de Setem­bro. O relatório foi entregue ao órgão próprio, que era a comissão político-rnilitar, e sobre isso o presidente Joaquim Chissano, na Assembleia da República, até fez uma declaração pública, há uns anos, já não me lembro quando.
- Quem foi que executou estes ditos reaccionários?
- É difícil responder sobre quem faz parte do pelotão de fuzilamento, porque o pelotão de fuzilamento, falo com experiência própria é uma secção composta por 12 homens, aos quais seis levam balas verdadeiras e outros seis levam balas não verdadeiras, mas que fazem mesmo barulho.
- Referimo-nos à execução em si, senhor Sérgio Vieira é que dirigiu esse processo?
-Eu fiz a instrução.
- E quem mais tarde dirigiu o processo de execução?
- A comissão político-militar decidiu. Não sei quem deu ordens. Nunca me transmitiram.
- Sobre a execução, os dados são contraditórios. Como e onde é que ocorreu?
- Eu não tenho dados contraditórios ou não contraditórios. O que eu tenho é que entreguei o relatório e a partir daí não tive nada a ver com o assunto. Nem nunca fui informado directa ou indirectamente sobre a matéria Porque também não tinha nada que ser informado directa ou indirectamente sobre matéria.

COM A MORTE DE SAMORA MACHEL. VIRAGEM!

- Jorge Rebelo deu uma entre­vista recentemente ao jornal Sa­vana e disse que quando Samora morreu, o nosso comportamento mudou. O que estava em nós re­primido veio à superfície. Na sua opinião, a morte de Samora pôs fim, de facto, a uma era e marcou o princípio de outra?
-  Posso dizer que sim, posso dizer que não. Um dirigente máximo marca sempre as pessoas com quem está. De alguma maneira, também influencia nos comportamentos. Eu lembro-me do meu amigo, o arquitecto José Forjaz, ter dito que abandonámos um sistema bom com erros, para um sistema errado com algumas coisas boas. Bom, posso também dizer que quem paga a orquestra determina também a música. Houve uma vi­ragem que ocorreu na organização económica do país que facilitou o surgimento de fenómenos negativos, nomeadamente, a corrupção, o açambarcamento de bens do Estado, etc.

-   A questão é que a Frelimo ensinou os seus quadros a não usarem as suas influências para tirarem vantagens pessoais e agora parece ter-se esquecido desses seus ideais...
-     Até dizíamos, e para mim ainda continua, ser um princípio funda­mental: primeiro no sacrifício e último no benefício.
-   Mas as coisas parecem ser exactamente ao contrário...
-  Desde quando os humanos deixa­ram de ser humanos? Os humanos sempre foram humanos, têm os seus apetites e certos condicionamentos. Esses apetites são refreados e são reorientados. Nestas circunstâncias, o burro é que rebenta a corda.
-  Uma das questões que, recor­rentemente, algumas pessoas levantam é que "se Samora estivesse vivo, isto não teria acontecido". Concorda?
-   Há uma coisa que eu sei. Samora Machel não era um homem de querer bens. Era um homem completamen­te desinteressado, desse ponto de vista.
-  E acha que as pessoas que o ro­deavam também eram assim?
-   Creio que dois meses antes de Samora morrer, tive uma cópia de um relatório dos embaixadores da União Europeia em que diziam que é muito difícil fazer certas coisas em Moçambique, que o governo de Moçambique era incorruptível. Espe­ro ter respondido à tua pergunta.
-  Acha que isso seria possível dizer-se actualmente?
-   Creio que não!
-  Nessa mesma entrevista, Jorge Rebelo disse que não sabia qual era a ideologia que a Frelimo estava a seguir agora. Ainda faz sentido falar de socialismo democrático nos dias de hoje, como foi no passado?
-   Penso que sim, e como marxista que sou...
-  Continua marxista?
- Absolutamente! Porque os princí­pios de economia política, os prin­cípios do materialismo político, do materialismo dialéctico, ainda não foram ultrapassados como instru­mentos científicos. Não estou a falar como Bíblia. Há alguns pontos em que nós todos errámos. Irei começar pelo próprio Lenine, que foi o salto de uma sociedade pré-capitalista para uma sociedade avançada como era o socialismo, sem a criação prévia de toda uma série de camadas médias que são indispensáveis. Esse erro ocorreu. De alguma maneira, os ca­maradas chineses, vietnamitas estão a corrigir isto, estão a tentar estabelecer as camadas médias que permitem que depois se possa estabelecer os proces­sos. Marx dizia que não se passa de um modo de produção para o outro por mera boa vontade. Cada era de produção tem que se esgotar para se passar para a etapa seguinte.
-  O que nos surpreende é que aquelas figuras que serviam de valores, viraram predadores...
- Estás a falar de muita gente ao mes­mo tempo. Diz "algumas das figuras", não sei quais são essas figuras que viraram ou não. Não é verdade, não são todas as figuras.
-Está a dizer que não se sente parte dessas figuras?
- Dos predadores?
-Sim.
-           Vai ver as minhas contas bancárias. Estou disposto a pôr isso em público, (risos...).
Não há alas na Frelimo
- Jorge Rebelo dizia também que é inegável que haja grupos dentro da Frelimo. Jacinto Veloso tam­bém se referiu a esta questão no seu livro. Partilha desta ideia?
- Eu digo que há pontos de vista dife­rentes entre pessoas e talvez a mesma pessoa possa mudar de posição nesta ou naquela questão. Eu diria que a Frelimo é uma família constituída há mais de 40 anos. É normal que nesta família haja pontos de vista diferentes, mas ainda existe boa vontade de man­ter esta família unida.
- Mas sente que há grupos locali­zados com esta e aquela visão?
-  Creio que é exagerada essa afir­mação.
-  Não concorda que haja alas dentro da Frelimo...
-Não!
-Jacinto Veloso diria que a maior oposição neste país está dentro na própria Frelimo...
- Eu direi que dentro da Frelimo há sempre uma discussão forte, e não é de hoje, mas esta discussão é uma dialéctica da vida.
5 de Fevereiro" foi orquestrado
- Que avaliação faz do aconteci­mento de 5 de Fevereiro deste ano?
- Bom, o 5 de Fevereiro deveu-se, por um lado, a uma acumulação de erros e, por outro, a uma exploração da si­tuação. Acumulação de erros, porque foi no mês de Janeiro, acabávamos de sair das festas e nas festas as pessoas gastam muito dinheiro, à espera do 13o vencimento. E logo a seguir, é preciso comprar sapatilhas novas para as crianças, livros, etc E na série de despesas, naquele momento, e, de repente, sobe o preço do combustível e, consequentemente, o do trans­porte semi-urbano aumenta em 50 por cento. 7.50 Mt durante 22 dias representa quase metade do salário. Toda a gente ficou perturbada.
- Acontece que eu estava, nesse dia 5 de Fevereiro, em Maputo, e o escri­tório que tenho aqui em Maputo está no nono andar. De repente, vejo na praça da OMM, da Av. de Angola até à Rua da Resistência, um grupo de 20 a 30 crianças e cerca de dois terços de adultos com paus. Chegavam a uma montra e partiam, diante de um caro e partiam os vidros - isto não foi a população, os assaltos a lojas não têm nada a ver com o custo de vida. Combinar que no dia X vamos fechar todos os acessos à capital, isto é uma operação organizada. Tu não fechas o acesso a uma capital sem o mínimo de organização.
- Mas onde é que estava a Inteligência do Estado?
- Não esteve.
-Por que não esteve?
-Porque toda a gente foi apanhada de surpresa, de alguma maneira.
- Incluindo a Inteligência do Estado?
- De alguma maneira.
- No seu tempo, seriam capazes de serem apanhados de surpresa com um evento desta enverga­dura?
- Posso dizer que nunca fui apanhado de surpresa com um evento desta en­vergadura. É o que posso dizer. Agora, se seria ou não, estou a especular.
- Mas isto não será consequência de uma distribuição desigual e não inclusiva da renda no nosso país?
-  Obviamente que a nossa sociedade tem uma grande disparidade de gente teoricamente influente, digo teorica­mente, porque existe um fosso entre os que têm e os que não têm alguma coisa, e isto, evidentemente, é um factor que contribui para a instabilidade social.

O País  - Maputo 15 Agosto 2008 pp 2-5