segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Caso da Igreja Católica em Moçambique



Canal de Análise
por Prof. Dr. Luís Benjamim Serapião1

O Caso da Igreja Católica em Moçambique

Pretória (Canalmoz) - Acabo de ler a entrevista que o Canal de Moçambique/ Canalmoz teve com o Professor Dr. Eric Morier-Genou. Achei, por isso, oportuno escrever uma breve recapitulação do caso da Igreja Católica em Moçambique.
Um estudo da Igreja Católica em Moçambique demonstra que houve dois tipos de Igrejas católicas no país – Igreja Católica Colonial, e Igreja Católica Nacional/Moçambicana. A Igreja Católica Colonial teve a sua origem nos séculos quinze e dezasseis, na era da expansão portuguesa em África. O papado aplaudiu, concedeu o poder de posse, e remunerou Portugal por meio de bulas tais como a Illius Qui Se, de Eugénio IV (19 de Dezembro de 1442), a Romanus Pontifex (8 de Janeiro de 1454), a Eaquae Pro Bono Pacis de Júlio II (24 de Janeiro 1507), só para mencionarmos alguns exemplos. Nesta altura, o papado usou Portugal para expansão da cristandade em África. É assim que se iniciaram as boas relações com a Igreja Católica.
Em 1940, Portugal, aproveitando da já existente amizade, procurou usar a Igreja Católica na administração das suas colónias. Ambos assinaram os documentos: a Concordata, e o Acordo Missionário. Estes documentos, principalmente o Acordo Missionário deram muitos privilégios a Igreja Católica nas colónias. Os bispos tinham de ser portugueses e eram reconhecidos como oficiais do governo. Os padres que, em princípio, tinham de ser portugueses, eram também oficiais do governo. Todos eles recebiam salários do governo, e foi-lhes incumbida a responsabilidade de educar e portugalizar os nativos africanos. O governo colonial além de pagar salários a bispos e padres, tinha também a responsabilidades de construir igrejas, escolas, e outras instituições sociais que beneficiavam os nativos africanos. A educação dada aos nativos africanos, era limitada aos primeiros quatro anos da fase do “ensino primário “ e era conhecida como escola rudimentar. O ensino primário que aliás abrangia também os primeiros quatro anos de ensino, mas de melhor qualidade, era reservado aos filhos dos colonos, como também para outros não considerados nativos africanos.
Portanto, a Concordata e o Acordo Missionário fundiram bem o interesse missionário com o interesse colonial. Como disse o Professor Adriano Moreira, então ministro das colónias, ”o trabalho Missionário não podia ser separado do interesse colonial”. D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Patriarca de Lisboa, acrescentou que o Acordo Missionário era um documento importante da ocupação colonial cristã. O Primeiro-ministro António de Oliveira Salazar explicando perante a Assembleia Nacional o sentido da Concordata e do Acordo Missionário, disse que o fim da Concordata e do Acordo Missionário era a aplicação do Acto Colonial, como remuneração espiritual concedida pela Santa Sé, e que incluía a nacionalização dos objectivos missionários que deveriam ser integrados para sempre no processo da colonização portuguesa.
Neste processo os bispos nas colónias eram privilegiados como oficiais superiores coloniais com a mesma categoria de governadores, e os padres eram considerados também oficiais coloniais, mas na categoria de administradores. Portanto, em princípio, todos eles tinham de ser portugueses. Porém, havia uma excepção para os padres/missionários. Se um bispo tinha carência de padres/missionários para cobrir as necessidades da sua diocese, era autorizado a recrutar um número reduzido de missionários estrangeiros.
Em resumo o que acima descrevemos constituiu o que chamamos Igreja Católica Colonial em Moçambique.
Entretanto, o papado, na década de cinquenta, principalmente com a independência de Gana, sentiu a necessidade de formar um clero africano que haveria de tomar conta da Igreja Católica africana. Por isso, escreveu encíclicas, tais como Evangelii Precones (2 de Janeiro de 1951) e Fidei Donum (2 de Abril de 1957) ambas redigidas pelo Papa Pio XII exortando os bispos nas colónias a formar um clero africano. Esta exortação, não inquietou muito os bispos nas outras partes de África, pois eram estrangeiros nestas colónias, interessavam-se em propagar a religião católica como tal, e não tinham interesses nacionais/coloniais.
Em Moçambique, como em todas as colónias portuguesas, como vimos acima, o caso era o outro. Formar um clero moçambicano implicava dar o ensino para além do ensino rudimentar. Isto constituía o perigo de formar moçambicanos nacionalistas que poderiam questionar a Concordata e o Acordo Missionário. Foi exactamente o que aconteceu com os seminaristas do Seminário Maior da Namaacha quando começaram a questionar a prédica dos padres coloniais nas igrejas. O bispo Custódio Alvim Pereira, de Lourenço Marques, reagiu vigorosamente contra os seminaristas. Deu-lhes princípios escritos que explicavam a posição da Igreja Colonial em Moçambique. Os princípios explicavam claramente que a Igreja colonial rejeitava a teoria de independência para Moçambique e que os bispos não haviam de ordenar padres que constituíssem um problema para o governo colonial, e assim forçou os cabecilhas seminaristas a abandonar o seminário. Porém, enganou-se, pois nem aqueles em quem ele confiava e que se deixaram ordenar, tardaram mostrar o seu descontento para com a Igreja Colonial depois de ordenados sacerdotes. É de notar que o sentimento nacional contra a Igreja Colonial era comum entre todos os sacerdotes moçambicanos. Por isso, organizavam reuniões onde discutiam a situação da Igreja colonial. Naturalmente, os bispos resistiam a estas reuniões e juntamente com a PIDE tentavam frustrá-las. Porém, não conseguiram, dado que o papado ficou ciente disso.
Em 1976, O Cardeal Mazzoni com a bênção do Papa Paulo VI veio participar na reunião do clero moçambicano que teve lugar em Guiua, Inhambane (26 de Agosto de 1974). Esta conferência foi muito importante na história da Igreja Católica de Moçambique por ter rompido oficialmente com a Igreja colonial, e dado início à Igreja Nacional/Moçambicana. Nesta reunião, os sacerdotes insistiram na identidade do clero e do povo moçambicano. Rejeitaram o conceito do “homem novo” imposto do exterior como, por exemplo, o sistema colonial que insistia em portugalizar os moçambicanos. Os sacerdotes queriam manter a moçambicanidade genuína. Esta atitude custou-lhes muito caro, por que os que rejeitavam abertamente o conceito colonial do “homem novo” eram presos e postos nas cadeias. Este foi caso do Padre Domingos Ferrão de Tete e outros. Os Padres estrangeiros que também comungavam com as ideia dos sacerdotes moçambicanos foram também parar à cadeia. Este foi o caso do Padre André de Bels, professor do seminário menor de Zóbuè, e do Padre Celio Rigoli um missionário italiano na arquidiocese de Lourenço Marques. Com a intensificação da Guerra colonial, a PIDE, como também os bispos, tornaram-se muito vigilantes em relação às actividades dos padres. Foi assim que a PIDE e os bispos foçaram certas comunidades religiosas estrangeiras a abandonar Moçambique. Entre as organizações que tiveram de abandonar Moçambique conta-se a sociedade dos Padres Brancos, a sociedade dos Padres de Burgos, a sociedade dos Padres Cambonianos e a sociedade do Padres do Sagrado Coração.
Os sacerdotes moçambicanos que já sofriam a perseguição dos bispos e da PIDE, e rejeitavam todo o sistema da Igreja Colonial exigiram a transferência da hierarquia religiosa colonial para a hierarquia dos sacerdotes moçambicanos. As demandas foram submetidas ao Cardeal Mazzoni que tinha vindo participar na conferência dos sacerdotes moçambicanos em Guiua. Foi assim que nasceu oficialmente a Igreja Nacional Católica/Moçambicana no País. Mais uma vez, afirma-se que a Igreja Nacional/ Moçambicana rejeitou todos os privilégios contidos na Concordata e no Acordo Missionário, e todas a características que faziam parte da Igreja Colonial. Portanto quando a Frelimo assumiu o poder no Moçambique pós-colonial, encontrou a Igreja Nacional/Moçambicana.
Será que a Frelimo não acompanhava todos estes desenvolvimentos da Igreja Católica em Moçambique? Não há dúvidas que já seguia todos os acontecimentos. Portanto, temos que encontrar uma razão por que a Frelimo tomou uma atitude especial contra a Igreja Católica. Vejo três razões principais: a natureza do sistema social político de Frelimo, que incluía a criação de um “ homem Novo”; a natureza da guerra civil; e a solução da guerra.
Comecemos com a ideia de criação do “homem novo” que significava um homem marxista ateu. Vimos que na conferência dos sacerdotes moçambicanos já insistiam na moçambicanidade; rejeitavam o conceito de um “homem novo” imposto do exterior aos moçambicanos. Não queriam nem um “homem novo” dos colonialistas, nem um outro “homem novo” de ateus marxistas. Este conceito de “homem novo” era forçado à população e tinha consequências desastrosas. No caso do sistema colonial, quem abertamente resistisse ao conceito do “homem novo” colonialista era preso e posto na cadeia colonial. No sistema da Frelimo quem abertamente resistisse à ideia do “homem novo” era preso e posto em campos de reeducação.
A nova Igreja Católica Nacional/Moçambicana não podia aceitar o “homem novo “ da Frelimo, pois o conceito não admitia a crença da existência de Deus. A Igreja Católica/Nacional decidiu resistir abertamente ao sistema sociopolítico da Frelimo. Submeteu os seguintes documentos ao Presidente Samora Machel: “Igreja Católica na Revolução Moçambicana”; A igreja Católica na Revolução”; “Um documento Sobre os Campos de Reeducação” (11 de Maio de 1976). Naturalmente, estes documentos não foram do agrado da Frelimo e contribuíram para que esta formação política hostilizasse a Igreja Católica.
A segunda razão para a Frelimo colidir com a Igreja Católica foi a natureza, origem e desenvolvimento da guerra civil. Figurativamente falando, podemos aqui citar o caso do pescador das águas turvas. A questão que se põe é esta: quem turvou as águas? E quem está a pescar Estas duas perguntas suscitam duas teorias: Uma, que defende que as águas já estavam turvas, e o pescador veio pescar; e a outra avança a teoria de que o mesmo pescador é que turvou as águas e está a pescar. A Igreja católica, liderada nesta opinião por D. Jaime Pedro Gonçalves diz que o pescador encontrou as águas turvas. São estas as razões principais da guerra civil; foram razões internas.
Quanto ao desenvolvimento da guerra civil, a Igreja Católica, nas suas pastorais, avançou a teoria de que ambos lados envolveram-se em atrocidades. Finalmente, a solução da guerra, foi um outro ponto que mais uma vez irritou a Frelimo. A Igreja Católica Nacional/Moçambicana escreveu pastorais que tentavam persuadir os líderes dos dois lados da luta para entrar em negociações de paz. Entre 1979 e 1992, a Igreja escreveu pelo menos vinte e quarto pastorais incluindo a famosa pastoral A Paz Que o Povo quer (1987).
Em conclusão, esta recapitulação da Igreja Católica em Moçambique salienta três pontos principais:
Primeiro, existiu uma Igreja Colonial em Moçambique que, logicamente, foi mais privilegiada do que qualquer outra organização religiosa em Moçambique.
Segundo, o clero moçambicano resistiu e destronou a Igreja colonial e criou a Igreja Nacional/Moçambicana, (26 de Agosto de 1974) da mesma maneira que a Igreja Católica tanzaniana, a Igreja Católica queniana, Igreja Católica ugandesa; enfim, como todas as outras Igrejas Católicas surgiram em outros países africanos.
Terceiro, a Igreja Católica Nacional/Moçambicana, nunca gozou de privilégios de qualquer sistema político no país. ( 1  Prof. Dr. Luís Benjamim Serapião é Professor de Relações Internacionais no Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Howard, Estados Unidos. Uma das  suas recentes publicações inclui, A Tainted Legacy; The Policies of Samora Machel in Independent Mozambique (Lambert Academic Publishing, 2011).


Combater as igrejas para erradicar a religião
Ouvir com webReader
João Cabrita
Na análise das relações Estado- Igrejas no período pós-independência, Eric Morier-Genoud defendeu que a política do regime da Frelimo visava pôr fim a uma suposta hostilidade da Igreja Católica para com as demais confissões religiosas, e acabar com uma espécie de monopólio detido por essa igreja.
Esses não constituíram os factores determinantes da política do regime para com as igrejas. Em 1975 não era discernível qualquer hostilidade entre as várias confissões religiosas, nem tão pouco as igrejas regiam-se por esquemas monopolistas. Bem antes do «25 de Abril», assistia-se a uma tentativa do regime vigente de atrair para a esfera de influência do poder colonial a vasta comunidade muçulmana, sendo de destacar o papel do governador-geral, Rebelo de Sousa, junto de líderes islâmicos do norte de Moçambique.
Hindus, protestantes e outras confissões religiosas actuavam livremente. Perseguidas no Malawi, as Testemunhas de Jeová encontrariam guarida em Moçambique durante a vigência da administração colonial.
Em suma, seria um contra-senso o regime da Frelimo pretender pôr fim a algo inexistente.
A questão de fundo foi outra, e tem necessariamente de ser vista à luz do projecto político do regime da Frelimo. Tratava-se de um projecto de índole totalitária, e projectos deste tipo não prevêem poderes paralelos.
Na óptica do regime, as igrejas constituíam um poder que era preciso desmantelar, da mesma forma que se desmantelou o poder tradicional e o poder da oposição, este último uma questão simples de resolver pois aqui o regime, como que a demonstrar a complementaridade entre sistemas totalitários, beneficiou da política do Estado Novo de não permitir na colónia qualquer actividade à margem da União Nacional/ANP.
Efectivamente, o que o regime pôs em prática, como, aliás, ele próprio assim o definiu, foi um «combate» contra as igrejas, visando, em última instância, a erradicação das religiões no país, tidas como «sequelas das sociedades tradicional-feudal e colonial-capitalista», sociedades essas que também deviam ser desmanteladas e das suas cinzas surgiria o «homem novo» e um «sociedade nova» – sociedade arregimentada, em que o partido no poder permeava tudo e em que todos teriam de ter um «pensamento comum».
Um «combate» que não esperou pelo 3° Congresso dessa formação política, mas que foi desencadeado logo nas primeiras semanas a seguir à independência.
O título da «Circular» emitida pelo Comissariado Político Nacional da Frelimo em Outubro de 1975, era por demais explícito: «Combate Popular Organizado contra Estandartes do Imperialismo».
Os «estandartes» estavam claramente identificados na «Circular» – seitas religiosas e missionários – e aos cidadãos o documento prevenia de forma clara e contundente: Deviam compreender que frequentar ou cumprir as palavras desses missionários é estar a trabalhar contra Moçambique, é estar a servir as potências imperialistas. (1)
Um mês após a independência, o regime procedeu ao confisco de bens pertencentes às igrejas. Para dar ao acto um cunho legal, socorreu-se do eufemismo nacionalizações para assim legitimar a violação de um direito fundamental, o da propriedade. Em 1978, houve a intenção do regime de levar até às últimas consequências a sua acção combativa. Depois de ter privado as igrejas de meios para poderem funcionar, o regime restringiu a construção de novos templos com o argumento de que se devia dar prioridade à construção de escolas, hospitais e fábricas. A publicação e distribuição de literatura religiosa foram igualmente coarctadas. No contexto do «combate», o regime impôs restrições a quem quisesse cursar teologia, determinando que apenas poderiam matricular-se quem tivesse cumprido o Serviço Militar Obrigatório, e prestado serviço no aparelho de Estado, caso fossem provenientes de escolas oficiais. Em tudo isso não se vislumbrava o mais ténue dos sinais de que se tratava de uma intenção do regime em nivelar ou equilibrar as relações  entre confissões religiosas.
Será que o «combate» movido contra as igrejas foi de facto um desenvolvimento positivo, como defende Eric Morier-Genoud? Certamente que a mesma opinião não é partilhada por crentes que em Naisseko ficaram com os membros superiores inutilizados por acção de cordas embebidas em água e sal, apenas por não abdicarem da sua confissão religiosa.
Nem por esses, nem por padres humilhados em Unango, nem tão pouco por sacerdotes arrastados das suas dioceses em Cuamba, Tete e Manica e em muitas outras partes do país, hoje dados como desaparecidos.
(1)  O texto integral da «Circular» assinada pelo Comissário Político Nacional da Frelimo, Armando Emílio Guebuza, está disponível na edição do jornal «Notícias» de 17 de Outubro de 1975 pp 2,5.
Canal de Moçambique – 15.08.2012
Canal de Opinião
Por Eric Morier-Genoud

Igrejas e Estado em Moçambique após a independência

Genebra (Canalmoz) - O Prof. Dr. Luís Benjamin Serapião e João Cabrita debruçaram-se nas páginas centrais do Canal de Moçambique de 15 de Agosto de 2012 sobre o assunto das igrejas e do Estado em Moçambique.
Isto veio porque eles queriam contestar alguns elementos contidos na entrevista que eu dei ao mesmo jornal no mês anterior.
Agradeço o contributo destes dois intelectuais e aprecio o debate que emerge assim nas páginas da vossa publicação. Queria, no entanto, esclarecer, nas linhas a seguir, algumas minhas posições que me parece terem sido mal representadas assim como trazer algumas contribuições adicionais.
Para começar, o Prof. Dr. Serapião avança o argumento de que teria havido na história de Moçambique duas igrejas católicas, uma colonial e outra nacional/moçambicana. Concordo com esta análise no geral e acho que é  um ponto importante para bem entender a história da igreja no país e a força que ela teve antes e, ainda mais, depois da independência. Pois, se tivesse havido só uma igreja colonial, como teria a igreja conseguido continuar a existir depois de 1975?
Isto dito, discordo do Professor Serapião em relação a ideia que a ruptura entre a igreja colonial e a igreja nacional teria sido absoluta e perfeita com o advento da independência em 1975. Pode ser um bom argumento didáctico e talvez político, mas a verdade é muito mais subtil e complexa. Houve muitas rupturas com a independência, em particular nas relações de poder dentro da instituição católica, mas houve também muitas continuidades, sejam elas de pessoal, na maneira de operar, ou nas ideias e na teologia.
Por isso não me parece adequado afirmar que a igreja colonial desapareceu em Moçambique em 1975 e que só ficou uma igreja nacional que não gozou “de privilégios de qualquer sistema político no país”. Tal declaração dá a impressão de que a igreja nacional era uma igreja nova sem ligação nenhuma ao passado. Ora a igreja nacional desenvolveu-se dentro, e sob impulso, da igreja colonial; ela guardou elementos desta igreja após a independência (incluindo algum pessoal colonial e colonialista); e ela quis guardar todas as propriedades que a igreja colonial tinha recebido do poder português.
No seu texto, João Cabrita vai mais longe ainda ao argumentar que a igreja católica não tinha posição dominante antes da independência e ao recusar a ideia de que havia competição entre instituições religiosas antes de 1975 – ele diz que isto foi “algo inexistente”. Ignora, assim, a Concordata e o Acordo Missionário, vigentes até 1975, que faziam com que o Estado colonial pagasse salários a todos missionários católicos, entregasse terras gratuitamente às missões católicas, e pagasse viagens à Metrópole ao pessoal católico, entre outros benefícios. Ignora também a política concomitante e inversa, de oposição a todas outras instituições religiosas no país – protestantes, muçulmana, ziones, etc. – a quem o governo recusava personalidade jurídica e fazia tudo para impedir o seu progresso.
Para argumentar que não havia monopólio católico nem competição entre religiões, Cabrita dá o exemplo da comunidade muçulmana que o Estado português tentou atrair para a sua esfera de influência antes da independência, e o exemplo das Testemunhas de Jeová do Malawi que foram acolhidas pelo governo português no fins dos anos 1960, quando perseguidas pelo Presidente Banda.
Estes dois exemplos são bastante selectivos e apresentados de maneira muito parcial. Pois, se alguns muçulmanos foram efectivamente cooptados pelo poder colonial nos fins dos anos 1960 (após anos de discriminação), a verdade é que outros foram ao mesmo tempo presos, e alguns assassinados pela polícia política colonial, inclusive alguns Sheiks.[1] No que toca às Testemunhas de Jeová, o refúgio dado pelo poder colonial não pode ser usado como argumento de igualdade das religiões em Moçambique. Primeiro porque o refúgio dado a eles foi nas zonas fronteiriças a fim de criar uma zona tampão contra à entrada da Frelimo na Zambézia, uma vez que as Testemunhas de Jeová recusam-se (como sempre) a entrar em política. Segundo, este desenvolvimento aconteceu ao mesmo tempo que o poder colonial continuava a reprimir as Testemunhas de Jeová moçambicanas que eram vistas como subversivas por recusarem a dar apoio aos portugueses, fazer o serviço militar, e saudar a bandeira nacional, pois não queria entrar em política nenhuma.[2]
Se o período colonial não foi todo bonito, sem desigualdade e competição entre religiões, o período pós-independência também não foi todo feio. Não foi como o afirma Cabrita, anos onde a Frelimo tinha somente um “projecto de índole totalitária”. Quer se queira, quer não, a Frelimo só desencadeou uma luta aberta e total contra as igrejas a partir de 1978. É verdade que houve alguma luta contra instituições religiosas antes disso, mas não foi total e foi muita especifica e limitada – a Igreja Nazareno por causa de ligações à PIDE e ao imperialismo, às Testemunhas de Jeová por terem sido utilizadas pelos militares portugueses, etc. Não houve proibição de usar roupa religiosa em lugar público, não houve igrejas fechadas em massa, e não houve campanhas em prol do ateísmo como foi o caso entre 1978 e 1982. A viragem de 1978 tem a ver com o III Congresso onde o Partido e o Estado fundiram-se e com o afastamento dos elementos religiosos praticantes dentro da liderança da Frelimo, afastamento sem o qual a viragem não teria sido possível. [3]
Finalmente, João Cabrita afirma-se escandalizado pelo facto de eu ter afirmado que a situação religiosa no país é positiva hoje. Aliás, ele entende que dizendo isso, eu teria afirmado que o combate às religiões teria sido positivo. Há aí uma má interpretação, pois o que foi dito e escrito, e que confirmo uma vez mais, é que a situação religiosa actual no país é positiva e que as nacionalizações contribuíram para isto (não a repressão!). Temos que ver pois que, se não houvesse nacionalizações, a igreja católica teria continuado a controlar 90% das escolas no país como no tempo colonial (controlava 89.3% das escolas no país em 1964), e isto teria criado problemas num país independente onde aproximadamente 20% da população é católica, 20% é muçulmana, 30% é cristão não-católica, e a maioria adepta, parcial ou total, da religião tradicional. (Eric Morier-Genoud, Queen’s University Belfast)
[1] Edward Alpers, “Islam in the Service of Colonialism? Portuguese Strategy During the Armed Liberation Struggle in Mozambique”, Lusotopie 1999(Paris, Karthala, 1999), pp. 165–184; Michel Cahen, ‘Le colonialisme tardif et la diversication religieuse au Mozambique (1959–1974)’, Lusotopie 1998(Paris, Karthala, 1998), pp. 377–395; e Fernando A. Monteiro, O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964–1974), Porto, Universidade Portucalense, 1993.
[2] Pedro Pinto, “Jehovah’s Witnesses in colonial Mozambique”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 17, Dezembro de 2005, pp.61-123
[3] Eric Morier-Genoud, “Of God and Caesar. The Relation between Christian Churches & the State in post-colonial Mozambique, 1974-81”, Le Fait Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 3, 1996, Setembro de 1996; Eric Morier-Genoud, “L’Islam au Mozambique après l’indépendance. Histoire d’une montée en puissance”, L’Afrique Politique (Paris: Karthala, 2002), pp.123-146.

Análise
Por Luís Benjamim Serapião

A Natureza da Igreja Católica Nacional/ Moçambicana

Os médicos continuaram a usar os hospitais que os colonialistas deixaram; os políticos passaram a viver e a trabalhar nas residências que os dirigentes colonialistas habitavam. A Igreja Católica Nacional/ Moçambicana, como todas as demais instituições no país, assumiu e perpetuou as infra-estruturas religiosas deixadas pelo governo português. No entanto, nunca foi considerado como um privilégio o facto de os médicos usarem as infra-estruturas físicas de saúde herdadas do colonialismo, nem tão pouco um privilégio os governantes do Moçambique pós-colonial passarem a habitar as residências dos antigos chefes colonialistas.

Hoje, há interesse entre o mundo académico em investigar a diferença entre a Igreja Católica Colonial e a Igreja Católica Nacional/Moçambicana que surgiu no período pós-colonial. A corrente teórica defendida pelo Professor Dr. Eric Morier-Genoud sustenta argumentos que sugerem que houve uma certa continuidade da Igreja Católica Colonial na nova Igreja Católica Nacional /Moçambicana Depois de admitir que houve alguma rotura da Igreja Católica Colonial em relação à Igreja Católica Nacional/Moçambicana, Morier-Genoud acrescenta que ʺhouve também muitas continuidades, sejam elas de pessoal, na maneira de operar, ou nas ideias e na teologia”.Tenta persuadir o leitor quando adianta: ʺNão me parece adequado afirmar que a Igreja Colonial desapareceu em 1975 e que só ficou uma igreja nacional que não gozou ‘de privilégios de qualquer sistema no país’”. Por fim, realça que ʺela (a Igreja Nacional/Moçambicana) guardou elementos após a independência (incluindo algum pessoal colonial e colonialista); e quis guardar todas as propriedades que a Igreja Colonial tinha recebido do poder português.
O que acima se disse é o resumo dos argumentos de Morier- Genoud em apoio da tese da continuidade. Porém, contradizendo os argumentos acima citados, é um facto que houve uma rotura total e completa da Igreja Nacional/Moçambicana com a Igreja Católica Colonial. Primeiro, o argumento que houve pessoal colonial/colonialista na Igreja Nacional/Moçambicana é contradito pela acusação da Frelimo contra a Igreja Nacional/Moçambicana quando alega que ela é racista porque não tinha indivíduos de descendência colonialista no seu pessoal.  É também de notar que o pessoal que integrou a nova Igreja Católica conformou-se com a ideologia pastoral da nova hierarquia. Quanto à maneira de operar, ou nas ideias e na teologia  a que Morier-Genoud se refere para provar a tese da continuidade, bastava nós reflectirmos sobre o princípio filosófico que os escolásticos defendem: operari sequitur esse.
Se um indivíduo é colonialista terá de operar/agir como um colonialista. Isto explica porque é que a teologia pastoral do tempo colonial era uma teologia colonialista. Note-se que os seminaristas do Seminário Maior da Namaacha acusaram a Igreja Católica Colonial, (especialmente da arquidiocese de Lourenço marques), de pregar o colonialismo nas Igrejas. (Serapião, 1972). Felizmente, na Igreja Católica Nacional/Moçambicana houve rotura completa com a teologia pastoral colonialista. Isto é, nunca mais se fez a apologia do colonialismo nas igrejas.
Quanto à referência de que a Igreja Católica Nacional/Moçambicana quis guardar as propriedades que a Igreja Colonial tinha recebido do poder português, não se pode descurar uma outra realidade concreta: o procedimento adoptado em relação às infra-estruturas físicas que o governo colonial deixou no país. Os médicos continuaram a usar os hospitais que os colonialistas deixaram; os políticos passaram a viver e a trabalhar nas residências que os dirigentes colonialistas habitavam. A Igreja Católica Nacional/Moçambicana, como todas as demais instituições no país, assumiu e perpetuou as infra-estruturas religiosas deixadas pelo governo português. No entanto, nunca foi considerado como um privilégio o facto de os médicos usarem as infra-estruturas físicas de saúde herdadas do colonialismo, nem tão pouco um privilégio os governantes do Moçambique pós-colonial passarem a habitar as residências dos antigos chefes colonialistas.
Em toda a África os governos e as sociedades civis continuaram a fazer uso das infra-estruturas físicas deixadas pelos colonialistas. Em Moçambique a ocupação e destruição das igrejas tinha mais como finalidade erradicar aquilo que era o símbolo da espiritualidade do povo moçambicano. É dentro deste contexto, que a Igreja Católica Nacional/Moçambicana reagiu negativamente. Não se tratava de uma questão de defender privilégios herdados do governo colonial, mas antes defender os símbolos da espiritualidade do povo moçambicano. (Canal de Moçambique)