sábado, 15 de setembro de 2012

O filho devorado de uma revolução

Há um mês e meio que não se fala de outra coisa em Moçambique. Por causa de um livro, escrito por Barnabé Lucas Ncomo, onde se desafia aquele que é o grande tabu da política moçambicana dos últimos 25 anos: a execução de antigos dirigentes da Frelimo durante a presidência de Samora Machel.
A poucos meses das presidenciais de Dezembro que escolherão o sucessor de Joaquim Chissano, o livro Uria Simango - Um Homem, Uma Causa (Edições Novafrica) poderá transformar-se num tema de campanha, tendo em conta o perfil de quem disputa o Palácio da Ponta Vermelha: Armando Guebuza, um histórico da Frelimo que está ligado a um dos períodos mais ferozes da repressão pós-independência; e Afonso Dhlakama, líder da Renamo e que acabou, de alguma forma, por herdar o património político daquilo que o reverendo Uria Simango representou.
Mesmo que observadores insistam em recordar que a Renamo também possui telhados de vidro em matéria de direitos humanos. Significativo, no entanto, é o silêncio protagonizado pela Frelimo perante a investigação de Barnabé Lucas Ncomo.
Com excepção de Sérgio Vieira, também ele identificado com os «anos de chumbo» moçambicanos, ninguém se pronunciou num sinal claro do embaraço que o tema ainda suscita.
Até porque Uria Simango não era uma pessoa qualquer: fundador da Frelimo, em 1962, foi vicepresidente com Eduardo Mondlane até 1969, e membro do triunvirato que lhe sucedeu - com Marcelino dos Santos e Samora Machel -, na sequência de um assassinato que ainda hoje está
por esclarecer.
Expulso da Frelimo, com a ascensão de Samora Machel, Uria Simango refugiar-se-ia no Cairo entre
1970 e 1974, altura em que regressa a Moçambique para tentar participar no processo que conduziu o país à independência. Só lá permaneceu entre Junho e Novembro, tendo sido obrigado a exilar-se de novo. Para trás ficaram a mulher, que viria a ser presa pouco depois com a conivência da polícia portuguesa, e os três filhos: Lutero, Deviz e Maúca. (O primeiro é hoje deputado da Renamo, o segundo foi eleito para a presidência da Câmara da Beira pelo mesmo partido e o terceiro morreria no início deste ano, em Portugal).
Atraído a uma armadilha no início de 1975, Uria Simango acabaria por ser entregue pelo Malawi à Frelimo que o levou depois para a Tanzânia, antes de o transferir, em Novembro de 1975, para o
tristemente célebre Campo de M’Telela, instalado em plena província do Niassa. Onde Sérgio Vieira
viria a ser governador, em 1983.
É aqui que o livro de Barnabé Lucas Ncomo se torna verdadeiramente interessante, tentando explicar o que aconteceu depois. Sem ser conclusivo, fornece pistas e testemunhos (a maioria dos quais ainda hoje se refugia no anonimato), que permitem indiciar que Uria Simango foi executado entre 1977 e 1978, à semelhança do que sucedeu com outros antigos dirigentes (e posteriormente dissidentes) da Frelimo. Como Paulo Gumane, Raúl Casal Ribeiro, Lázaro Nkanvandame e Mateus Gwengere, aos quais se juntou Joana Simeão.
É certo que Ncomo admite ainda hipótese de Uria Simango ter sido executado entre 1977 e 1980, invocando testemunhos e depoimentos contraditórios.
Mas uma outra testemunha ouvida por Ncomo - Manuel Pereira, que esteve preso em M’telela e chegou a conhecer Celina, mulher de Uria, igualmente executada - aponta para 1977 ou 78, uma versão que é subscrita por Lutero Simango, em declarações ao DN. «Ele esteve preso no Niassa, entre 1977 e 80, e diz que, nessa altura, só viu a minha mãe. Nunca chegou a ver, ou a conhecer, o meu pai».
Fuzilado ou queimado vivo, segundo as versões contempladas no livro e que reflectem 15 anos de
investigações, o que não parece suscitar grandes dúvidas é a motivação que levou Maputo a ordenar
essas execuções, algo que a Frelimo só veio a admitir, e apenas parcialmente, já no início dos anos
90: o receio de que Uria Simango (e Gumane, Casal Ribeiro, Nkanvandame e Gwengere) pudesse
juntar-se à Renamo, que então ensaiava os primeiros passos da sua guerrilha, dando-lhe a legitimidade e até a representatividade que André Matsangaíssa (o antecessor de Dhlakama) não possuía.
ARMANDO RAFAEL, IN "DN"(JORNAL LUSO), 26.09.2004
IMPARCIAL - 27.09.204