segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Os 20 anos de Paz em Moçambique - Uma Reflexão Filosófica (conclusão)


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O ACORDO Geral de Paz define os indicadores de avaliação da paz e da estabilidade social em Moçambique. O Protocolo I apresenta o método de diálogo e método de colaboração mútua.[1] No Protocolo II, encontramos a implementação da democracia multipartidária e a participação democrática dos cidadãos na governação do país.[2]
Maputo, Quinta-Feira, 3 de Janeiro de 2013:: Notícias
Alguns desses indicadores vêm mais explicitados no Protocolo III quando fala dos princípios da lei eleitoral, como a liberdade de imprensa e de acesso aos meios de comunicação, liberdade de associação, expressão e propaganda política, liberdade de circulação e de domicílio no país, “um sistema eleitoral que respeite os princípios de voto directo, igual, secreto e pessoal”, “garantias de equilíbrio, objectividade e independência da Comissão Nacional de Eleições em relação a todos os partidos políticos”.[3] Finalmente, no Comunicado Conjunto, assinado em Roma, no dia 10 de Julho de 1990, lê-se:
“Tendo em consideração os superiores interesses da nação moçambicana, as duas partes concordaram que é necessário que se ponha de lado aquilo que as divide e que se concentre, com prioridade, a atenção naquilo que as une, com vista a criarem uma base comum de trabalhoPARA, no espírito de compreensão e entendimento mútuos, realizarem um diálogo no qual debatem os principais pontos de vista.”
Noutro parágrafo, lê-se:
“As duas delegações afirmaram estar prontas a empenhar-se profundamente e no espírito de respeito e compreensão mútuos, na busca de uma plataforma de trabalho PARA pôr fim à guerra, e criar condições políticas, económicas e sociais que permitam trazer uma paz duradoura e normalizar a vida de todos os cidadãos moçambicanos.”[4]
Nesse comunicado, põe-se de lado a lógica dialéctica que dominou muitos anos no país, adopta-se o diálogo, o espírito de compreensão e entendimento mútuos como indicadores da convivência democrática.
A esses indicadores constantes do Acordo Geral de Paz devemos acrescentar, aliás, são especificações os indicadores de avaliação de estabilidade social, e que orientam as políticas internacionais modernas de desenvolvimento, que são a longevidade (ou seja, a possibilidade das pessoas “viverem uma vida mais longa e saudável”), o conhecimento (a possibilidade e oportunidade de as pessoas “serem instruídas”) e um padrão de vida adequado, ou seja, a possibilidade e a oportunidade de elas “gozarem dum nível de vida adequado”, que constituem o conteúdo do Ìndice do Desenvolvimento Humano (IDH).[5] Ao assinar o Memorando dos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, Moçambique aceitou esses indicadores.
A outra questão é: como está a paz moçambicana, se a avaliarmos utilizando esses indicadores?
Não tenho resposta acabada nem pré-construída. Apenas posso dizer que a paz é um desafio, é um processo de construção permanente. Pode uma sociedade ter comida e emprego e não estar em paz. Uma sociedade pode estar recheada de tecnologias de ponta e não estar em paz. Adorno mostra quão “a relação com a técnica é tão ambígua, quanto aquela, aparentada, com o desporto.”[6] Sócrates mostrou que, não obstante a cidade de Atenas exibir estradas, muralhas, portos e arsenais militares, os atenienses não estavam em paz. Bastou uma parte da sociedade estar descontente com a governação da cidade, sentir-se excluída e andar marginalizada do processo de desenvolvimento, foi suficiente PARA ela sentir-se instável. Hoje, a Grécia volta a sentir a instabilidade pelas medidas de austeridade impostas pelas potências financeiras internacionais. Por isso digo que a paz é um processo de construção permanente e de forma cooperativa.

Eleições elevam a tensão política

Maputo, Quinta-Feira, 3 de Janeiro de 2013:: Notícias  
Retomemos de novo Adorno PARA responder à pergunta. Pessoalmente, o que me preocupa, quando analiso o jogo de interesses, é aquilo que Adorno denominava de “volta ao sujeito”.[7] Justifico essa preocupação.
A partir de uma certa altura, por exemplo, as eleições passaram a constituir um problema, elevando a tensão política. É assim que um dos pontos mais polémicos do Parlamento é o alcance de uma lei eleitoral consensual. Esperamos que o bom senso prevaleça em todas as três bancadas. Recordamo-nos das mortes de cerca de 100 concidadãos nas celas de Montepuez, no ano 2000, resultantes da tensão gerada à volta das eleições presidenciais e legislativas de 1999. A mesma tensão veio a subir com as eleições municipais de Mocímboa da Praia, em 2003. Mais recentemente, estão o fenómeno Marínguè, o fenómeno 8 de Março de 2011 em Nampula, e agora o fenómeno Gorongosa. A tensão política é, hoje, agravada pelas expectativas que cada um deposita no boom de recursos minerais e hidrocarbonetos que vão sendo descobertos e na ilusão do fim da pobreza de um dia para o outro. Citei apenas alguns fenómenos que denunciam certo distanciamento dos dois assinantes do Acordo Geral de Paz, ao longo desses 20 anos. É um distanciamento que não é passivo. É activo, na medida em que é acompanhado de ameaças de retorno à guerra por parte da Renamo e de demonstração de força policial e da força da lei (a lei é sempre ideológica) por parte do Governo. É um distanciamento activo, porquanto cada um parece fechar-se em si nas suas auto-razões. Estaremos perante a “volta ao sujeito” pré-AGP, dos anos 80 e início dos anos 90? O sujeito dessa época pensava na lógica dialéctica de separação, de exclusão e de eliminação do Outro. Dá a entender que a paz conquistada está suspensa, podendo voltar à situação anterior, hoje detestada pelo povo.
Este distanciamento é tão evidente que nos leva a interrogar sobre o tipo de diálogo que foi adoptado em Roma. Na linha de Habermas, temos dois tipos de diálogo: diálogo estratégico e diálogo comunicativo. O diálogo estratégico é importante a partir do momento em que se alcança o consenso e busca-se mecanismos para implementar a acção acordada. Denominá-lo-ei de diálogo estratégico activo. Há aquele que denomino de diálogo estratégico passivo, através do qual um se erige em locutor e reduz o outro a ouvinte, não se estabelecendo entre eles nenhuma relação de empatia, mesmo quando aparentemente os dois se considerem estar na posição de sujeitos locutores, em que um ouve o outro. Neste tipo, o diálogo é de surdos e propenso a ilogicidades. No diálogo comunicativo, os dois interlocutores estão na posição de sujeitos livres e iguais. Um está na disposição de ouvir o outro e capaz de aceitar os argumentos racionais diferentes. Ninguém traz para o diálogo decisões preconcebidas. Ambos constroem a decisão final que os satisfaz e aceitam caminhar de forma cooperativa. A partir daí, caminham para o diálogo estratégico activo na busca de mecanismos para a sua implementação.
Os factos acima apontados dão a entender: por um lado, que o Acordo Geral de Paz foi construído num misto de aproximação antropológica com o diálogo estratégico passivo, pois é difícil de entender como um dos ex-beligerantes ou os dois, decorridos 20 anos de Paz, pretendam rompem com o compromisso de privilegiar o método de diálogo e de colaboração mútuas na solução dos problemas do país, constantes dos Protocolos I e II do Acordo Geral de Paz. Por outro lado, dão a entender que o diálogo não foi necessariamente comunicativo. O desafio é de construção ou consolidação de confiança mútua.
Que conclusões podemos tirar da experiência de vida nesses 20 anos de paz, período sem guerra fratricida?

Assumir a cultura de diálogo comunicativo

Maputo, Quinta-Feira, 3 de Janeiro de 2013:: Notícias
Os vinte anos serviram apenas PARA saborearmos como foi cozinhada a paz. Todos, bebés, crianças, adolescentes, jovens e adultos, concluímos que a paz é saborosa e vale a pena comê-la porque alimenta o organismo social e as nossas mentes. Então, como é possível neste momento magicar “a volta ao sujeito” e o retorno histórico à barbárie, quando o povo se decide a comer o prato saboroso da paz, assegurando o seu metabolismo cultural por longos e longos anos? Todos, particularmente o Governo, o Parlamento e as Forças Políticas, somos chamados ao bom senso, à sabedoria, ao amor à vida e ao respeito do povo, na solução dos problemas nacionais.
Percorri sumariamente a filosofia ao longo dos tempos, desde Sócrates e Platão até Edgar Morin, passando por Cícero, Montaigne, Descartes, Hegel, Marx e John Locke, homem da Carta sobre a Tolerância, os pensadores da Escola de Frankfurt particularmente com Adorno e Habermas, como referências sobre questões de tolerância, justiça e paz.
Detive-me um pouco na reflexão de Adorno sobre a Educação após Auschwitz, que aponta os desafios da humanidade e da filosofia após as guerras mundiais. Daí, passei PARA o caso moçambicano após a guerra dos dezasseis anos. O desafio consiste em intervir na educação da sociedade para assumir e interiorizar a cultura de diálogo comunicativo na solução dos problemas do país. Apraz-nos ouvir que estão sendo encetados esforços para a volta ao entendimento entre o Governo e a Renamo para o fim da tensão política que incomoda o país, renovando o compromisso de alimentar e manter a paz. As crianças e os jovens de hoje querem e exigem de nós adultos o compromisso sério com a paz para os próximos vinte anos e paz duradoira.
Segundo Karl Popper, o problema da manutenção da paz não é apenas da responsabilidade do Governo, mas é também da responsabilidade pessoal.[8]
Eis, meus caros Estudantes da Filosofia, os desafios que tendes pela frente: alimentar, manter e consolidar a paz no país, na África e no Mundo! 
NR: os entretítulos são da nossa responsabilidade.
BIBLIOGRAFIA
COHN, Gabriel (Org.). Textos de Theodor W. Adorno: Sociologia. São Paulo, Ática, 19863.
FICHTE, Johann Gottlieb. Lições Sobre A Vocação do Sábio seguido de Reivindicação da Liberdade de Pensamento. Trad. Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1999. Grifos do autor.
HANSMA, T. (Ed.). Acordo Geral de Paz de Moçambique / General Peace Agreement of Mozambique. Amsterdam, AWEPAA,
LOCKE, John. Carta Sobre a Tolerância. Texto Integral. Trad. Berta Bustorff Silva. Lisboa, Lisboa Editora, 1999.
MONTAIGNE. Ensaios: Antologia. Trad. Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d´Água, 1998.
PLATÃO. Górgias. Texto Integral. Trad. Margaria Leão. Lisboa, ASA, 2000.
PNUD. Moçambique: Paz e Crescimento Económico: Oportunidades PARA o Desenvolvimento Humano. Relatório Nacional do Desenvolvimento Humano 1998. Maputo, 1998.
POPPER, Karl R. A Vida é Aprendizagem: Epistemologia Evolutiva e Sociedade Aberta. Trad. Paula Taipas. Lisboa, Edições 70, 2001.  
  • Brazão Mazula (antigo Reitor da UEM) nas Jornadas Científicas de Filosofia na Faculdade de Filosofia da Universidade Eduardo Mondlane, por ocasião da celebração do Dia Mundial de Filosofia, no Complexo Pedagógico do Campus Universitário, Maputo, no dia 16 de Novembro de 2012.

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