segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A ilusão da perfeição


Deixei um dos meus telefones ligados durante o fim-de-semana, mas nada. Não tocou. Ou melhor, Nyussi não ligou. Fiquei mais consternado ainda quando vi a lista dos governadores provinciais esta manhã e notei que Gaza vai ter novo governador, e não serei eu. Bom, mais uma pessoa cujo trabalho vou sabotar com prazer… mas prontos, estou livre de falar como me der na gana. E tenho muita vontade de o fazer a propósito do novo elenco governamental. Há muito que se diga a seu respeito. Os comentários que vejo por aí dão mais destaque à questão da competência técnica duma boa parte dos novos membros do governo. Curiosamente, a competência técnica é o que o país menos precisa ao nível do governo. Sei que entre nós se venera muito esta ideia. Há pessoas que até ficam com os olhos vidrados quando dizem “fulano de tal é competente!”.
Vejo duas razões que chumbam este critério. A primeira é que um governo não é uma equipa técnica. A equipa técnica está no aparelho do Estado. É lá onde precisamos de pessoas tecnicamente competentes. Um governo é um conjunto político, cuja principal função é de definir objectivos políticos e lográ-los tendo em conta todos os interesses diferentes que fazem uma sociedade. Não basta ser engenheiro civil para ser bom ministro das obras públicas; não basta ser médico para ser bom ministro da saúde; não basta ser jovem para ser bom ministro da juventude; nem basta ser bom homem de negócios para ser bom ministro das finanças, da economia ou da terra. Este é um dos nossos maiores equívocos analíticos, creio. Um ministro só será bom ministro se for bom político e tiver uma boa dose de senso comum. Competência técnica nunca fará bom ministro, mesmo em sistemas autoritários. A segunda razão que chumba o critério é lógica. A competência técnica sempre se refere a uma área específica. Logo, um excelente cirurgião pode ter graves lacunas ao nível de questões ligadas à medicina preventiva, por exemplo. Ou um engenheiro civil pode saber armar betão, mas não entender patavina de andaimes. Portanto, mesmo que alguém fosse tecnicamente competente em alguma coisa, o ministério que vai dirigir consegue sempre ser muito maior do que as suas competências. Não há curso universitário para a área de juventude e desportos, ou mar, águas interiores e pescas, nem mesmo para educação e desenvolvimento humano. Nem mesmo em universidade privada. Quando muito há talvez num seminário qualquer da sociedade civil.
Portanto, acho engraçado que alguma discussão sobre o novo elenco insista sobre isto. Tenho um palpite, contudo. O meu palpite é que a nossa paixão pela competência técnica venha de dois legados pesados. O primeiro é o do Estado socialista com a sua ênfase no papel “dirigente” do Estado. É uma herança ambígua, pois o que a Frelimo dizia na altura era que o partido é que orientava tudo (portanto, reconhecia que a política é que mandava), mas ao mesmo tempo chamava ao Estado toda a tarefa de resolver todos os problemas do país, reduzindo desse modo tudo a um problema técnico. Samora Machel morreu com este nó na garganta. Aquela famosa Ofensiva Política e Organizacional que ele empreendeu na vã tentativa de reclamar a primazia da política estava desde logo condenada ao fracasso justamente porque toda a sua concepção de Estado tornava a política supérflua, o que criava espaço para que a tecnocracia assumisse cada vez mais o controlo das coisas. O segundo legado, sempre actual, é o da indústria do desenvolvimento com o seu discurso de solução de problemas que idealiza e romantiza as circunstâncias em que a própria Europa “se desenvolveu”. Quando exaltamos a “competência técnica” estamos, no fundo, a repetir este discurso inócuo que serve também para criar as condições de reprodução da indústria que está na base do discurso. Estamos em 2015. Não sei o que vão dizer agora em relação ao não cumprimento dos famosos objectivos do milénio e a redução pela metade de todo o problema que legitima a intervenção desses sabichões nas nossas vidas. Estou bem curioso.
Se a competência técnica não é o que está em causa, então o que está? Política, de novo. Só política. Por exemplo, eu acho que o governo ora formado suscita mais interrogações do que respostas e, por isso, não percebo os encómios que ele está a receber. Nem mesmo o facto de os G-40, essa “fata morgana” de muito aspirante a analista, não terem sido contemplados – repare-se que quem sempre disse que eles queriam ser nomeados ministros foram os seus críticos, não eles; rir-se deles por não terem sido contemplados é, no fundo, rir-se da própria piada – pode explicar este entusiasmo. Para já ele não deixa antever uma estratégia clara de abordagem de Moçambique. Parece um governo de gestão, mas no sentido normal do termo, o que no fundo até vai de encontro ao manifesto eleitoral do partido Frelimo. Tem ministérios com várias áreas cinzentas que na melhor das hipóteses vão conduzir a interessantes sinergias, mas na pior das hipóteses vão ser apenas razões para atritos que vão desgastar o executivo. Vejo isso em relação à agricultura, mar, águas interiores e pescas, terra, ambiente e desenvolvimento rural e ainda obras públicas, habitação e recursos hídricos. Gerir isso exige competência política, não técnica, e não sei se essa competência política existe. Vejo mais zonas de choque entre outros ministérios, mas vamos esperar para ver.
Notei também que estão incluídas no governo pelo menos duas pessoas que fizeram parte da equipa eleitoral de Nyussi. Refiro-me a Celso Correia e a Osvaldo Petersburgo. Não conheço o seu desempenho pessoal, mas tenho em mim que pessoas que fizeram este tipo de percurso com o eleito deviam fazer parte da sua equipa de assessores para que ele tenha sempre uma retaguarda. Funções executivas desgastam e é possível que ele se veja obrigado a demitir essas pessoas. Sem elas no governo, e fora, corre o risco de não ter o tipo de apoio que ele vai precisar para sobreviver a gestão do governo e do partido que vai ser tudo menos fácil. Isto é tanto mais importante quanto ele vai precisar de alguém bem forte para a tarefa de secretário-geral do partido, uma pessoa inclusivamente com estatura para o substituir no futuro. Aqui também, ainda que seja um pequeno detalhe, vejo mais motivos para franzir o sobrolho do que para estar esperançoso.
Por isso, penso que a discussão do que nos espera nos próximos cinco anos deveria também incidir sobre a nossa obsessão com “competência técnica”. O problema de ver tudo como um problema técnico é, para usar um termo pesado, epistemológico, isto é do pelouro da teoria do conhecimento. Para que essa visão vingue é necessário partir do pressuposto segundo o qual o mundo (natural e social) obedeceria a leis facilmente enunciáveis e que se reduzam a relações de causa e efeito. Um mundo perfeito, portanto. É uma ilusão, a ilusão da perfeição que tem vindo a ser um entrave muito grande à civilização política do nosso país.

  • Euler Gente De Mocuba Meus caros, estão convidados a lerem. Eu de cada vez que vejo análises assim, começo a colocar interrogações a vida útil desta equipa que já apelidei de Galácticos (Os de Madrid só tiveram sucesso em 1 ano, dos 3 ou 4 anos da era Galáctica). Gostaria de ver uma análise do Professor sobre a primeira gestão do país bicefala.
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  • De la Casa Olha, não tive a oportunidade de ler os discursos, mas tenho acompanhado a onda de encomias. Já que agora ainda só podemos jogar às especulações, calculo que o presidente esta a ser ovacionado devido à diferença discursiva para com o seu antecessor cuja fama era de mortal arrogância e autoritarismo...as massas sentiam Saudades de rever no seu presidente, um ente aparentemente acessível e que supostamente se coloca como servidor e não patrão.
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  • Filipe Ribas Nós temos alguma tendência de pegar em expressöes que dispensam argumentação, porque criam a sensação de que estamos a falar tecnicamente. E, então, acontecem aquelas conversas prolongadas entre ignorantes, todos unânimes, porque não dá para deixar que se entenda o que säo.
    Nem temos tempo para descobrir o que seja necessário para aferir da tal competência técnica. Politicamente me lembrei que quem montou a máquina de guerra de Hitler, em termos de equipamento foi um médico
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  • Jorge Djedje O prof. Amainou as minhas emoções, desconstruiu a nossa crença colectiva, Shi! Interessante é a argumentação que sustenta esse "partir de paradigma". Mas, gostaria de lembrar que o antigo Presidente Armando Guebuza, foi severamente criticado quando colocou o Engenheiro Jose Pacheco como Ministro de Interior e tantos outros em áreas que não tinham competência técnica. Hoje, o presidente Nyusi, talvez influenciado pelos acontecimentos que fiz referência, buscou quadros com competência técnica e surpreendentemente temos esta crítica clássica! Caso para dizer, "o mundo ralha de tudo".
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  • Niz Combe a figura incopetente estara muita apta para fazer milagre desde que o Nyuse esteja atento as suas capacidades tambem.Bom, e um presidente moderno a tentar comandar de forma juvenil um pais de velhotes a espera do gaza mutine.Eu acho que o governo foi bem montado para nao deixar escapar incopetencias. O nosso amigo jovem oswaldo peterburgo parecido com guebuza fisicamente deevia envelhecer um pouco mais para esperar boas oportunidades de governacao neste pais de hidrocarbonetos.A minha afirmacao e de que gostei, apesar do epilectico estado do nosso amigo afonso macacho marceta dlhakama
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  • Elisio Macamo o mundo pode ralhar de tudo, Jorge Djedje. o que conta é se eu também ralhei quando aconteceu o que relata. se não o fiz, então tem que julgar esta intervenção nos seus próprios termos. e repare: a minha sugestão é de que competência política é mais importante, o que não quer dizer que só ela seja capaz de resolver tudo. e ausência de competência técnica não implica presença de competência política, já agora.
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  • Jorge Djedje Prof! Que tal um engenheiro mecânico ministro de saúde? Entendo que em algumas áreas competência técnica pode ajudar para definição de melhores políticas?! Não concordo ilustre Elisio Macamo?
  • Elisio Macamo acho que podia dar um bom ministro desde que reunisse os requisitos políticos que destaquei (sem, contudo, explicitar). até o próprio Jorge Djedje podia ser ministro de tudo mais alguma coisa. o único que não podia ser é engenheiro duma obra se a sua formação for sociologia como a minha. já fidel castro tinha dito isto: o único que é necessário para que haja chefe é que haja uma vaga. não é o mesmo para a vaga de enfermeiro...
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  • Jorge Djedje Perdoe-me pela generalização, o prof ponderadissimo que é, pode não ter " atirado nenhuma pedra contra Guebas", mas muitos o fizeram. Em teorias de administração, uma das fontes de autoridade do chefe é justamente o domínio da actividade gerenciada. Mas, são parcialmente aceitáveis os argumentos do prof.
  • Elisio Sabiti Em primeiro lugar o executivo recem constituido devia, em minha opinião, ser legítimado com o voto de confiança dos eleitores.

    Nesta perspectiva, o primeiro "engenho" de sua Excia foi um sucesso.

    Um executivo meramente político provavelmenten não teria tão fervoroso acolhimento.

    Sua excelência Eng. Filipe Filipe Jacinto Nyusi é um Gestor de reconhecido mérito. Acredito que é assim que ele sabe trabalhar, com aqueles que põem "mão na massa".

    De qualquer forma, as dúvidas e incertezas existem e também são legítimas. Vamos fazer fé e apoiar como possível para que, aqueles que se esmerarem na gestão da coisa pública, consigam atingir os objectivos delimitados no emocionante discurso de tomada de posse.
  • Tomás Queface Interessante tentativa de desconstruir a ideia generalizada de que temos uma governo tecnocrata (pessoas competentes tecnicamente). Eu penso que Elisio Macamo conseguiu mostrar com base nos seus argumentos o porque a existencia de tecnicos nos cargos ministeriais não é a chave para o sucesso. Mas me parcece que pulou um nivel de análise que pressupõe perceber o que as pessoas querem dizer com "competência técnica". Uma coisa é o seu significado literário e outra coisa é o emprego inadequado do que as pessoas pretendem se referir quando falam se "governo dotado de técnica". Conforme disse Djeje no Governo anterior era normal termos pessoas dirigir areas que não tem nada a ver com a area de sua formação ou de experiencia do ponto de vista profissional. Isso pode ter obrigado Nyusi a seleccionar em parte individuos que o mesmo considera estar "dotadas" tecnicamente de competencias para dirigir as areas que irao dirigir. "Por tecnicamente competentes" com base na minha percepção as pessoas se procuram referir-se a um estado em que as pessoas conhecem a realidade a area a que vão intervir, os desafios e as oportunidades, que consigam elaborar os objectivos de modo que sejam alcancados, que consigam alocar os recursos e desenhem as estrategias, que saibam as habilidades necessarias para alcancar os fins determinados e no fim estabelecer uma ligacao entre o que se quer com o que se tem. Nas ciencias sociais somos obrigados descrever os nossos conceitos para estarmos claros daquilo que falamos para alem de evitar ambiguidades. O que as pessoas vee nessr governo se calhar é isso. Pessoas que conhecem os conceitos da area em que irao trabalhar. Nkutumula vai ter que perder muitos meses ainda a conhecer o abecedario da situacao do desporto em Mocambique. Se tivessemos alguem la de dentro, poupavamos tempo.
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  • Elisio Macamo atirei pedras, mas sobre outros assuntos, não esse, Jorge Djedje. ok, as teorias de administração referem-se à actividade gerenciada. o que gerencia um governo? a política, não o técnico. logo, os técnicos do sector é que precisam desse domínio, tão simples quanto isso.
  • Jorge Djedje Tenho mais por dizer, porém, permita-me deixar espaço para outros amigos por enquanto. Estou atento ao debate prof.
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  • Elisio Macamo mesmo sob o risco de repetir o que já disse, Tomás Queface: reconheço que haja um uso impreciso do termo, mas isso é uma razão para nós tentarmos corrigi-lo aqui no debate. naturalmente que faria bem que a pessoa indicada para um determinado pelouro tivesse alguma ideia do assunto lá tratado, mas isso é do senso comum e não me parece absolutamente fundamental para o sucesso. pode ser necessário analisarmos muito bem o que falhou na anterior administração, mas duvido que o problema tenha sido a colocação de pessoas não formadas, não formadas na área ou mesmo sem conhecimento da área. agora, há um outro sentido em que podemos usar o termo "competência técnica", nomeadamente "competência técnica" na gestão do político...
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  • Elisio Macamo sabe, Jorge Djedje, é isto tipo de confusão que leva algumas pessoas a pensarem que académicos possam, por natureza, fazer boa figura como políticos. política é um assunto completamente diferente!

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