sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Guebuza terá de passar Presidência do partido Frelimo para Filipe Nyusi”

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Sérgio Vieira em Grande Entrevista
O novo Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, fez muitas promessas e assumiu vários compromissos no discurso inaugural. Que análise faz do discurso presidencial?
Tinha várias dimensões. Uma dimensão de declaração de inclusão, de querer ouvir, com aquela questão, muito forte de que as ideias não são monopólio de um partido e que precisa das opiniões daqueles que também divergem, de modo que é um discurso de inclusão, de diálogo. É também um discurso de afirmação de princípios, de que quer um governo competente e com comportamento ético. É um discurso em que reafirma, por um lado, a sua subordinação ao povo, que tem por patrão. É ainda um discurso em que, do ponto de vista internacional, reafirmou as nossas relações tradicionais.
Não foi um discurso partidário, mas em que, evidentemente, assume a sua qualidade de menbro de partido, na continuidade dentro da História de Moçambique quando menciona Mondlane, Samora, Chissano e Guebuza. Podemos ler uma certa demarcação de um passado recente, mas com muita elegância, sem hostilidade, quando ele afirma o que quer fazer: o combate ao despesismo e a necessidade de um Governo mais pequeno. Quando vemos as nomeações, tanto do Primeiro-Ministro como do Conselho de Ministros e dos Governadores, está nessa sequência.
O Presidente Nyusi prometeu uma governação inclusiva, participativa, ouvir as vozes descordantes; prometeu transparência, ética e arrancou vários elogios, até dos mais críticos. Acha que os desafios a que se propôs estão ao seu alcance?
Sim e não. A força de um governante não é apenas das suas ideias, é do apoio que recebe da comunidade. Um exemplo: o Presidente Obama, quando foi eleito, recebeu o Premio Nobel da Paz na base de promessas; até hoje, Guatánamo ainda está aberto, não teve a correlação de forças para efectivar a sua promessa. Mas compete a nós, cidadãos, membros ou não da Frelimo, darmos ao Presidente Nyusi o apoio para levar a cabo essas promessas que, no fundo, nos tocam o coração e são necessidades absolutas do país.
Que desafios concretos terá para materializar o discurso?
Muitos. O controlo e a transformação dos recursos naturais dentro de todo país e a participação dos moçambicanos nesse exercício - não é fácil; são as transnacionais que estão aí e elas não são o melhor modelo de democracia e de respeito pelos direitos humanos... - elas respeitam-se a si e aos seu lucros (1% dos mais ricos no Mundo controlam mais de 50% da riqueza mundial). Por consequência, esses desafios não são fáceis e há que levar a cabo não o interesse de Nyusi, mas dos moçambicanos. É aqui que começa a luta - garantir que ele tenha o apoio necessário para realizar aquilo que ansiamos e que ele garantiu no seu discurso.
O Presidente Nyusi prometeu fazer com que os moçambixcanos beneficiassem dos recursos naturais. O que tem de ser feito, no imediato?
Muitas coisas. Nos princípios do século XX, havia a regra dos 50/50 - 50% para a empresa e 50% para o país - princípio que foi alterado nos anos 1960, e a Rússia ficou com 60%. Do gás em Pande, recebemos 5% apenas... isso é ridículo! O mesmo acontece com o carvão...  as percentagens têm de subir substantivamente. Da parte que cabe ao Estado, pode atribuir uma percentagem às comunidades, aos distritos; pode vender aos cidadãos nacionais - individuais ou a uma empresa cuja maioria do capital seja moçambicano. São mecanismos para integrar.
No seu discurso, Nyusi focou bastante na criação e desenvolvimento de uma classe média moçambicana. Ora, num país pode haver génios, académicos e cientistas e outros, mas a coluna verterbal é a classe média. Se olharmos para o nosso país, vemos que, neste momento, há mais estudantes a frequentar as universidades públicas e privadas do que havia em 1974 a frequentar o Ensino Primário - alguma coisa aconteceu. Há uma pobreza urbana, há uma pobreza rural, mas há uma evolução muito grande.
E do ponto de vista da legislação sobre os recursos naturais?
É fraca, muito fraca. Não há uma garantia de que o Estado tenha parte significativa da claúsula de ouro, sem dispender um centavo; não há nada que garanta  ao Estado a participação efectiva de 50% ou 60%. Por absurdo, o GPZ teve os únicos acordos que se fizeram sobre o carvão com claúsula de ouro - sempre que houver subida, o subsídio sobe automaticamente sem ter de pagar nada - em que a parte moçambicana tinha 30%. Foram os únicos.
Nyusi prometeu intolerância e transparência quanto à corrupção - mal bastante enraizado na nossa sociedade. A declaração de bens dos governantes não seria recomendável, como um bom exemplo?
Penso que é necessário. Até porque o partido fez uma norma, mas cada declaração ficava guardada. Mesmo no Estado, faz-se uma declaração que fica guardada e só é aberta quando houver necessidade. Essas declarações têm de ser públicas. Tem que declarar e, quando cessa ou quando termina o mandato, tem de renovar, mesmo para verificar se não há aquilo que se chama enriquecimento ilícito. É necessário que seja pública não para a especulação dos jornalistas, mas porque é uma informação necessária - garante a idoniedade daquele dirigente.
A transparência é fundamental em Democracia, principalmente na gestão da coisa pública. O Presidente Nyusi convida os moçambicanos a participarem activamente na fiscalização do Governo. O que lhe sugere este convite? Uma governação transparente?
Creio que sim e não é apenas um Governo transparente. Quando pede a opinião dos que divergem, está a pedir um chocar de ideias. Quando diz que não há monopólio das boas ideias, está a dizer alguma coisa. É evidente que numa sociedade democrática, o principal papel de fiscalizador compete ao Presidente, à Assembleia, aos órgãos eleitos. Mesmo nos países em que recebe a competência da Assembleia, compete à Assembleia e, sobretudo, à oposição, a fiscalização - é necessário: até numa empresa há um Conselho Fiscal.
Foi anunciada a composição de um novo Governo e a remodelação dos Ministérios. Os ministros tomaram posse e assumiram o compromisso de servir fielmente a pátria moçambicana, inspirando a confiança do povo. O presidente Nyusi desafia os ministros a responderem aos anseios do povo de forma realística. O Governo Nyusi estará perto ou longe de realizar as promessas?
Olhando o poder político, imagine-se uma governação  com muitos degraus, com interesses contraditórios. Um exemplo simples: quero promover o número de mulheres; há-de haver uma parte que se vai levantar e questionar: ‘E nós, que somos homens?’ Há essas coisas todas e, quanto mais se aproxima do topo, mais se aproxima dos interesses contraditórios que existem nesse degrau. Não são contradições internistas, mas são interesses pessoais. Ora, essa gestão é muito complexa. Quanto mais as bases na pirâmede tiverem um pensamento comum, mais fácil é ao topo fazer a gestão. Assim, independentemente da boa vontade de Nyusi, quem tem que dar força somos nós, os cidadãos.
Mas que análise é faz do Governo Nyusi à luz do discurso da meritocracia?
Penso que o Governo não traiu as declarações que deu. É óbvio que a maioria da juventude dos membros do Governo ou é membro ou está próxima da Frelimo. Mas, se formos ver, quantos membros do Comité Central há no Governo? Muito poucos - o Pacheco é o único... O Primeiro-Ministro, até porque era embaixador, não podia estar em nenhuma função partidária. De modo que é um Governo bastante aberto. Vamos ver também o percurso de cada um deles - é interessamte: uns vêm da academia e outros da vida profissional. O próprio Nyusi vem dos Caminhos-de-Ferro (CFM); o Primeiro-Ministro esteve na governação da Zambézia, esteve na agricultura antes de ser embaixador, Maleane era governador do banco, e muitos outros. Temos um bom leque de calo profissional neste Governo e bastante competência.
Qual o risco ético e quais os benefícios de termos empresários como ministros?
Se não  me engano, a lei requer que se um empresário se torna membro do Governo, que congele a sua participação na empresa. De modo que, se forem cumpridas as normas, sempre que aparecer uma decisão sobre aquela empresa em que o governante tenha interesse, ele não poderá ser decisivo.
A cultura de prestação de contas no nosso país está muito enfraquecida. O Presidente Nyusi enfatizou no seu discurso a ideia de servir o povo, o que implica prestar contas. Acredita que o Governo constituído por Nyusi vai beber esta recomendação e servir o povo com transparência de facto?
A bola não está no campo de Nyusi, está no nosso campo. Uma das fraquezas do nosso país é a própria fraqueza da estrutura e organização da sociedade civil, que ainda é muito incipente, e vê-se isso em reuniões de pais nas escolas, reuniões de condomínio em que não há rigor no cumprimento das obrigações.
Num artigo de opinião, sugere que o ex-Presidente da República, Armando Guebuza, entregue a liderança da Frelimo a Filipe Nhyusi, e sabe-se que ele prometeu mudanças. Apesar de Filipe Nyusi prestar contas ao povo na qualidade de Chefe de Estado, também tem de prestar contas ao partido. Como poderá lograr sucessos na sua liderança sem ter a liderança do partido?
Creio que estes assuntos são delicados no sentido em que os temos de ver sempre com muito realismo. Em Moçambique, temos uma Constituição em que o Chefe de Estado é o chefe do Governo em simultâneo. Há países em que não é assim - normalmente, é o líder do partido que chefia o Governo. Vemos isso em toda parte: a senhora Angela Merkel não é a Presidente da República, mas é a chefe do partido; o senhor David Cameron não é o rei da Inglaterra, mas é o chefe do Partido Conservador... Podemos reflectir se devemos manter, em Moçambique, o actual figurino ou avançar para um figurino, por exemplo, no modelo francês, que é semi-presidencialista, sem fazer do Chefe de Estado um “corta-fitas”. Ora bem, sendo o chefe do Governo, neste caso, não dirigente do partido, algum problema pode surgir. Eu lembro que o presidente Chissano soube compreender isso e, com muita elegância, retirou-se e tornou-se maior. Eu creio que o Presidente Guebuza também terá essa sensibilidade, por que ele é um homem realista e tem o povo no coração.
Guebuza, como Presidente da Frelimo, poderá de alguma forma ofuscar o trabalho do Presidente da República enquanto estiver no comando do partido?
Há a hipótese, pois qualquer hipótese é válida. Volto a insistir: creio que no Governo só há um membro da Comissão Política da Frelimo - o Presidente Nyusi é membro da Comité Central e não é membro da Comissão Política (pode assistir sem direito de voto), o Primeiro-Ministro Carlos Agostinho do Rosário nem  sequer é membro do Comité Central (pode assistir a reuniões da Comissão Política mas sem direito de voto)... Ora, de alguma maneira, este distanciamento pode criar dificuldades, mas pode também melhor assegurar - porque a Comissão Política está distanciada e o partido está distanciado da governação imediata - um papel fiscalizador e orientador. Tudo é possível.
Como é que analisa o facto de o Governo do Presidente Nyusi ser maioritariamente renovado, com muito poucas caras do Governo cessante? Não será também uma mensagem de que a Comissão Política está a dar-lhe carta-branca para operar segundo as suas vontades - uma mensagem de confiança?
Quero crer que sim... Lembro-me quando dizíamos, a gozar, há muitos anos, que o Bureau político do Partido Comunista da União Soviética se reunia na sala de reanimação... Estou contente que seja finalmente esta geração a substituir a geração de 25 de Setembro. A geração que vem - que é dita a de 8 de Março, grosso modo -, e daqui a uns anos será outra geração. É bom que assim seja. E, como disse, muito provavelmente a Comissão Política aceitou, e muito bem, que o Presidente Nyusi formasse o Governo do modo como ele queria e trazendo estes novos valores.
Em relação ao facto de apenas um membro da Comissão Política estar no Governo de Nyusi, contrariamente ao que se verificava nos governos passados, onde vários membros ou quase metade da Comissão Política fazia parte do Governo, que significa esta mudança: é ruptura ou continuidade?
Não podemos ver isso em termos maniqueístas - ruptura ou continuidade. Digamos que há uma passagem de gerações, há um momento em que se passa de um momento para outro. Destes membros do Governo, poucos são membros do Comité Central do partido. Está o Pacheco, que é da Comissão Política e que tem estado a dirigir até uma operação difícil, a operação de diálogo com a Renamo, e também há que ver isso, saber dar continuidade àquilo que é fundamental, dar continuidade e trazer novas aspirações. Repare: uma série de membros do Governo não era residente em Maputo - estou a ver o meu amigo Ferrão, que vem de lá, na UniLúrio, e outros que vêm também de longe para cá, e trazem sensibilidades.
Nyusi também prometeu a redução de custos e despesismo. A redução dos Ministérios será um passo para alcançar este propósito?
Certamente que é um passo; não é o passo, é um passo - ainda há outros passos.
Os novos Ministérios têm responsabilidades muito condensadas. Isto não pode suscitar a criação de gabinetes e, por essa via, manter e até elevar as despesas do Estado?
Depende da gestão de quem está à cabeça - deve saber como trabalhar! Não é preciso ter gabinetes permanentes, não é preciso ter uma legião de conselheiros. Olha - você, venha ter comigo hoje, há este assunto e eu gostaria de ouvir de ti. Eu via Samora a fazer isso - não ouvia só membros do Governo, chamava fulano ou beltrano. Samora tinha o hábito de dizer que gostava de discutir com aqueles que sabiam mais do que ele. Naquele assunto concreto, o António, ou o José ou a Fernanda sabiam mais do que ele, e ele queria ouvir; depois, chocava as ideias e discutia com outros e ia elaborando uma decisão. Não é preciso haver gabinetes grandes. Aliás, Samora até dizia que as estruturas devem ser pequenas, flexíveis e operacionais.
A Renamo não reconhece Filipe Jacinto Nyusi como Presidente da República, os seus membros não tomaram posse nas Assembleias Provinciais e na Assembleia da República, e o líder tem feito, de forma recorrente, discursos belicistas, ameaçando dividir o país e tomar de assalto as capitais provinciais. Que consequências podem advir deste descontentamento da Renamo?
Eu diria que não estou a ouvir algo de novo - desde 1994, as primeiras eleições multipartidárias, que sempre ouvi esse discurso do presidente da Renamo: ‘fraude, fraude, fraude’... isso já é um disco rachado! Segundo: creio que a Renamo não é realmente um partido, é uma organização à volta de uma pessoa de tal maneira que, sendo normal num partido apresentarem-se regularmente as contas dos dinheiros do partido, eu nunca ouvi que, num congresso ou num conselho nacional da Renamo, isso se fizesse. Houve um Secretário-Geral, o Vaz - mudam tanto de Secretários-gerais como as pessoas mudam de camisa... - que eu conhecia bem e ele não tinha acesso às contas do partido... Isso é indicativo de alguma coisa. Agora, se não tomarem posse, perdem o mandato.
Quando Dhlakama ameaça reagir caso o Governo não satisfaça as suas vontades, as suas pretensões, que tipo de reacção se pode esperar dele, tendo em conta que, muito recentemente, nos fez ouvir o som das balas?
Pode tentar pegar nas balas, mas é difícil, sabe?! Tem homens para integrar, muito bem - o que são os teus homens?  Militares? Como? É um sargento, um oficial? O que o qualifica como tal? Lembro-me (custa-me dizer isto) que, depois de 1994, após a integração, havia um general da Força Aérea que nem sequer sabia o que é um pagagaio de papel. É evidente que isto não pode funcionar assim, há uma profissionalização.
Como acha que o Presidente Nyusi deve gerir o descontentamento da Renamo?
Tem de dialogar, ouvir, fazer a distinção entre o correcto e o incorrecto, para saber dizer isto não ou isto sim. Agora, não há muito diálogo se eu te aponto uma arma à cabeça e digo ‘acabou a sua vida’... Isso é gangsterismos. Vamos dizer quais são os fundamentos para dizer que houve fraude nas eleições? Que houve alguma coisa houve... mas vamos dizer. Quando a gente fala de fraude, é qualquer coisa que altere os resultados signitivamente. De acordo com a Lei Eleitoral, em todas as mesas de voto - não estou a falar na Comissão Nacional de Eleições, ou no Secretariado Técnico de Administração Eleitoral -, havia representantes dos partidos, incluindo da Renamo. Toda essa gente se deixou-se corromper, do Rovuma a Maputo? Toda essa gente não era capaz de contar votos? Há algo de absurdo aqui, que fere a inteligência e a lógica.
Mas qual deveria ser a estratégia de Nyusi?
Tem de dialogar, tem que se sentar com o homem. Agora, há aquilo que é razoável e o que não é razoável. Em 1994, com base naquilo que foi o acordo que conduziu às eleições democráticas na África do Sul, em que Mandela foi eleito Presidente, houve dois Vice-Presidentes, Frederik de Klerk e um outro, em que, a partir de certo momento, Klerk disse: ‘Vou sair por que é impossível ser, em simultâneo, Governo e oposição - de manhã sou Governo, à tarde vou desancar no Governo por que sou oposição’. Há um papel fundamental da oposição que tem de ser assumido, que é a análise crítica do que se faz - ou se é oposição ou se é Governo. Há coligações que se formam, mas quando nenhuma formação política tem a maioria para governar.
O que seria um Governo de gestão?
Ainda não percebi - de gestão de quê? Pergunta a quem o propõe. Eu não percebo nada...
Pode-se falar de cultura democrática multipartidária enquanto se recusa aceitar resultados oficiais das eleições?
O Mundo inteiro reconheceu os resultados. Todos os governos reconheceram Moçambique. Houve cá observadores de toda parte - do Ocidente, do Oriente, da África, da América Latina, da Europa... toda essa gente é burra, toda essa gente participa na fraude da Frelimo. Por favor... um pouco de ponderação.
Que medidas devem ser tomadas para que estes discursos  do líder da Renamo não criem instabilidade no país?
As primeiras pessoas que devem dizer isso são os próprios membros da Renamo.
Como é que analisa essa estratégia da Renamo de fazer isso no povo e não por uma comunicação formal junto do Governo?
Desculpe...o que há de novo nisso? Sempre vi isso. Sempre.
Como é que Moçambique pode preservar a Democracia?
São os moçambicanos que devem fazer isso. Cada um de nós, começando no seu quarteirão, no seu bairro, como pais, como mães, pois a Democracia não cai do céu. Temos de lutar e aprender a cuidar dos nossos interesses colectivos.

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