quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Na falta do melhor

Na falta do melhor
Os primeiros dias dum governo são interessantes. Tenho estado a acompanhar o nosso com algum interesse (aquelas dores de cotovelo…). Alguns pronunciamentos, senão todos eles, dos novos governantes fizeram-me recuar no tempo. Lembrei-me do meu avô materno que era curandeiro. Só tinha um remédio que servia para todas as doenças. Chamava-se “nthla-nthla ngati” (tradução literal: dilui ou liberta o sangue). O remédio consumia-se aos litros. Até dá volta no meu estômago só de pensar nisso. Quem se sentir tentado a rir por achar o meu avô curioso vá com calma, por favor. Ele não foi diferente dos europeus, uns 100 anos antes dele, que também tinham esta obsessão com o sangue. Nos meados do século XIX a França chegou a importar 40 milhões de sanguessugas que eram utilizadas nas famosas sangrias, o principal método de curar doenças durante 2000 anos… A ideia era simples. A doença tinha a ver com o equilíbrio dos líquidos do corpo (bílis, muco e sangue) que se restabelecia sugando o sangue do doente. Milhares de europeus morreram desta forma às mãos dos descendentes de Hipocrates, sobretudo barbeiros. E o curioso é o seguinte: não é que eles não tivessem consciência de que na maior parte dos casos esse método de cura fosse uma autêntica perca de tempo. Tinham. Mas não conheciam nenhum outro método melhor.
E isto traz-me de volta ao novo governo. Sistemas complexos – e o corpo humano é um sistema complexo – têm o condão de nos encorajar a desenvolvermos teorias que não abandonamos de qualquer maneira sem que haja uma melhor. Ficamos reféns das velhas maneiras de fazer coisas. Ouvi vários depoimentos dos novos governantes. O da educação diz que as suas prioridades consistem em colocar carteiras nas escolas e pagar os salários em atraso; o da ciência e tecnologia diz que a sua prioridade é de constituir o ministério, depois reconverter os desistentes da universidade para o ensino técnico-profissional e depois ajudar as universidades privadas a terem o mesmo nível da UEM, o do interior diz que vai reduzir a criminalidade e os acidentes de viação, o da terra diz que vai ajudar o povo a produzir riqueza a partir dessa importante conquista e a governadora de Gaza – que esse traidor do Jaime Langa já começou a bajular – diz que ainda vai conhecer a província, repetindo, na verdade, a exortação do seu chefe feita a todos os governadores para primeiro irem conhecer as suas províncias e aprenderem do povo, o novo patrão. Etecetera.
Tudo isto dito 40 anos após a nossa independência. Praticamente o mesmo discurso de sempre. Há 40 anos que os nossos governantes são nomeados para irem “ganhar experiência” ou “resolver os problemas do povo”. Antes que seja mal-entendido e que o texto seja compartilhado efusivamente pelos que normalmente me consideram desvairado, apresso-me a dizer o seguinte: é bom aprender e é bom se preocupar com a sorte do povo. Mas governar devia ser mais do que isto. Dum governante, não importa o sector, nem a sua experiência, nem a sua formação, devíamos ouvir muito mais do que este tipo de lugar-comum. Colocar carteiras nas escolas, aumentar a segurança, pôr a terra a produzir riqueza, etc. é o que realmente deve acontecer. Mas o mais interessante, pelo menos para mim cá do conforto da minha mesa de trabalho, é saber qual vai ser a estratégia e porquê essa estratégia. E a razão é simples. Os seus antecessores também deviam ter logrado isso. O que é que se passou? Mudaram de prioridades ao meio do caminho, ou a estratégia por eles determinada falhou ou ainda não surtiu efeito? 
E com isto volto à sangria. Os médicos primeiro cortavam uma artéria do braço e deixavam o sangue brotar, assim meio litro, até o doente desmaiar. No dia seguinte repetiam a mesma operação várias vezes até não sair mais sangue. Depois colocavam um frasco de vidro com ar quente sobre a ferida. À medida que o ar arrefecia criava um vácuo que espremia mais sangue. Finalmente, colocavam as importações francesas (as sanguessugas) na ferida que se refastelavam até nem mais. Ao fim de três meses o doente recebia alta, vivo ou morto. Mais morto do que vivo. Por falta duma teoria melhor para abordar um problema complexo.

E repito: não estou a criticar (apesar de estar). Eles estão a agir de acordo com o que sabem e na melhor das intenções. Portanto, o que estou a dizer é que se queremos mesmo que os nossos governantes sejam melhores teremos que os interpelar a um outro nível. Não ao nível dos resultados finais que eles deviam alcançar, mas sim ao nível do que eles pretendem fazer para alcançar esses resultados. Seria por aí que a discussão iria animar. É claro que quem aborda os assuntos politicamente vai sempre chamar a atenção dos governantes para os resultados. E isso é legítimo, ainda que não seja tudo. Mas se queremos ser mesmo parte do processo – já que fomos declarados patrões – devemos interpelar os nossos governantes a um outro nível. E recusarmo-nos a ecoar declarações, em minha opinião, vazias de sentido. Carteiras, sim, menos crime, sim, riqueza da terra, sim, melhor formação, sim, mais conhecimento da província, sim, mas COMO e porquê ASSIM?
É a falta deste tipo de interpelação que leva muita gente a pensar que também pode governar, basta fazer uma lista enorme dos resultados que espera alcançar. E é isso que empobrece a nossa política.

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  • Amorim Bila Mano Sérgio, o Elisio once again!
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  • Lindo A. Mondlane "É a falta deste tipo de interpelação que leva muita gente a pensar que também pode governar, basta fazer uma lista enorme dos resultados que espera alcançar. E é isso que empobrece a nossa política."...pensando eu em muitos dos quais 1..mais nao disse..
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  • Inacio Chire Caro Elisio Macamo, falta diagnosticar as causas "desse comportamento".
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  • Elisio Macamo só bebendo mais nthla-nthla ngati, Inacio Chire, mas com esta história do phombe pode ser complicado...
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  • Inacio Chire Okay...mas a volta do phombe se garante a continuidade de geracoes (tirando esse incidente terrível). Se faz a passagem de visão, liderança e muito mais. A mim me parece que muitas vezes faz falta uma passagem "efectiva" (smooth e genuina) de testemunho.
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  • Elisio Macamo sem dúvidas. o problema é que alguns pronunciamentos até sugerem "descontinuidade" quando não me parece ser o caso...
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  • Alfredo Chambule Quando mais novo, "fui curado" com o "mutlan tlha ngati" depois da fenomenal sova que apanhei do meu defunto pai por ter reprovado no terceiro ano. Andava eu no Liceu de António Enes em Lourenço Marques.
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  • Elisio Macamo há males que vêm por bem, Alfredo Chambule!
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  • Eusébio A. P. Gwembe Fiquei inconsolado quando escutei de alguém que foi ministra do trabalho enunciando como prioridade «conhecer o terreno». Quer dizer, ainda vamos aprender fazer fazendo, isto é, vamos ao terreno sem método de modo que o terreno é que determina o método. É altura de exigirmos dos nossos governantes o método para a materialização das suas boas intenções que também são o desejo de todos nós. Mas isso, Elisio Macamo, é um problema que parte mesmo da forma como os manifestos eleitorais são elaborados. Por exemplo, o MDM - só para convidar um exemplo - criticou a falta de carteiras nas escolas, denunciou a exploração e posterior exportação da nossa madeira para à China, mas nunca foi claro em dizer como ia fazer para inverter o cenário. Igualmente, o manifesto da Frelimo está cheio de boas intenções e muito genérico - somos por isto, somos por aquilo - sem observar o «como» chegará aos resultados. Como consequência, torna-se difícil que se faça uma avaliação final quando os governantes estão de saída porque não se sabe de facto como quantificar as metas, por ausência do método. Dai que lhes seja fácil dizer «saio de cabeça erguida, missão cumprida». Boa reflexão, sua! 
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  • Elisio Macamo pois, Eusébio A. P. Gwembe. mas a questão que eu quero levantar refere-se a nós mesmo como comentadores. é isso que devemos interpelar e deixar a discussão política para quem age politicamente.
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  • Hermes Sueia É cedo demais Professor Macamo.....cedo demais.
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  • Alexandre Devissone Sei que não é a idade dos governantes que produz resultados esperados mas também governar provincia de Gaza e Cabo Delgado não é pra aventureiras na função pública pra aferirem experiência. A provincia de Gaza por estar adormecido no desenvolvimento e...See More
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  • Elisio Macamo bom, Alexandre Devissone, apesar de eu estar sempre a dizer que quero ser governador de gaza a minha opinião sobre este assunto é de que os governos provinciais, e na sua actual estrutura, são das instituições que o país menos precisa. considero os governos provinciais altamente supérfluos e quanto mais cedo a gente acabar com eles melhor. olha que temos um governador nomeado pelo presidente e que vai trabalhar com administradores nomeados pela ministra da função pública e com directores provinciais nomeados pelos respectivos ministérios... não faz nenhum sentido isso. penso que a municipalização é o caminho mais certo e a criação de gabinetes regionais de fomento ou qualquer coisa assim. só espero que acabem com isso depois de eu ter sido governador de gaza, claro...
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  • Paulo Goque Caro Elisio Macamo, essa é das perguntas que o meu team ( sou da banca) de administração trabalha no detalhe para responder ao board sempre que apresntamos a estratégia para o ano seguinte. Esse tipo de pergunta faz muito sentido quando se responsabiliza as pessoas pelos resultados não alcançados, seja por má planificação ou por factores que estavam foroa do controlo da equipa. Neste caso quem faria o papel do board? Diria que é o povo, mas o board tem que saber qual é o seu papel e o poder que tem, o que não é o nosso caso.
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  • Elisio Macamo essa é uma analogia interessante e pertinente, Paulo Goque! o povo, de facto, pode ser esse "board", mas 5 anos é muito tempo. a esfera pública, através da interpelação crítica pode ajudar nisso. e a oposição através da insistência noutras estratégias, noutros caminhos e, claro, na interpelação constante dos governantes. o que me incomoda é que o debate na esfera pública por vezes repete o discurso dos governantes. uns vão aplaudir a colocação ds carteiras, outros vão perguntar porque não se fez antes, mas poucos vão discutir a estratégia por detrás dessa desiderato.
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  • Hermes Sueia O exercicio ainda não começou sequer........a máquina ainda está a ser montada e calibrada, num contexto em que desafios mais altos como a emergência cujo ciclo se torna cada vez mais curto, se tornaram a primeira prioridade. Nos meus tempos de escola, tive um professor que nos dizia que gostava mais de avaliar aquilo que os alunos não sabem........
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  • Paulo Goque Elisio Macamo! Estou de acordo e remete-me a uma pergunta que faço aos demais. Quais são as nossas prioridades/desafios agora? Como é que vamos superar? 
    De facto se os analistas sao indivíduos que estão a espera de repescagem para sairem da "fome", temos um grande problema. De outra forma, se continuamos a olhar para o dirigente como abençoado com a sabedoria não vamos longe! Temos que questionar sempre "how"!
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  • Paulo Goque Hermes Sueia, você não passaria numa sessão de perguntas se dissesse o que vsi fazer e não explicasse como. Como é que vamos reduzir as asssimetrias regionais? Esse é um dos pontod apresentados. Segundo o teu post, temos que aceitar sem perguntar como nao é?
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  • Elisio Macamo isso, Paulo Goque, o Hermes Sueia diz que a prioridade agora é a emergência e que como ainda estão a montar a máquina pode ser prematuro nos pronunciarmos. é evidente que não concordo com isso. se a coisa mais inteligente que um governante me pode dizer quando alguém lhe pergunta qual é a sua prioridade é a colocação de carteiras, talvez esse indivíduo não esteja no lugar certo.
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  • Alcídes André de Amaral So esperemos que interpelemos mesmo... O processo (os meios) nao `e muito levado a serio por muitos de nos... E nao notamos que `e nas falhas do processo (o nao conhecimento das estrategias) que nos zangamos e nos frustramos com um governante, com o governo so porque nao vimos a solucao (imediata) dos problemas alistados pelos governantes enquanto suvam nas ruas, ao sol em tempos de campanha eleitoral! Portanto, enquanto candidatos! Deve ser por isso que tem-se aplaudido tanto os pronunciamentos de Afonso Dhlakama, e queremos que ele seja dirigente, e nunca perguntamos como ele iria governar e muito menos o que ira fazer enquanto estiver na governacao... So queremos que ele governe e prontos!
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  • Hermes Sueia Paulo Goque, continuo a pensar que a melhor forma de passar numa sessão de perguntas é fazer aquilo. O que nós pretendemos é capacidade de realização. As estratégias foram já todas documentadas e divulgadas. É tempo de dar lugar à prática. O jogo tem noventa minutos. O melhor jogador só é eleito depois do apito final. Não é o jogador que melhor responde aos jornalistas,antes da partida começar, mas aquele que melhor interpreta a estratégia e a táctica definida durante o decorrer do jogo, e assegura resultados que é eleito o melhor. E o apito só agora acabou de soar.
  • Hermes Sueia Portanto, mãos à obra que por uma questão de cidadania estaremos aqui para avaliar o decorrer do jogo......

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