sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Eu votava no novo Syriza

OPINIÃO


A Europa conseguiu que o Syriza deixasse de ser Syriza, e isso é muito mais importante do que a troika deixar de ser troika.
Enfim, se calhar, não votava. Mas a ideia do título é sublinhar este facto muito importante: depois de eu ler atentamente a carta que o Governo grego enviou à Comissão Europeia, sou obrigado a admitir que concordo com quase tudo, acho excelente, desejo muito que seja verdade, e que se aquilo é um programa de esquerda radical então podem começar a chamar-me Rosa Luxemburgo.
Fazendo minhas as palavras dos comunistas gregos, queria enviar aqui de Portugal um forte abraço ao novo Syriza: bem-vindo à social-democracia. Todas as propostas mais lunáticas do partido foram para o armário onde Varoufakis guarda as gravatas. O perdão da dívida não é mencionado em lado algum. O acordo pressupõe que as privatizações não sejam revertidas e aquelas que foram iniciadas não sejam anuladas. E o famoso aumento do salário mínimo passou a ser uma subida “over time”, de uma forma “que salvaguarde a competitividade e as perspectivas de emprego”, que é como quem diz “um dia destes”, que é como quem diz “mais tarde a gente pensa nisso”, que é como quem diz “provavelmente não vai acontecer”.
Mesmo aquilo a que o Syriza chama “combate à crise humanitária”, incluído no último ponto da carta, vem acompanhado destas extraordinárias palavras: “assegurar que o combate à crise humanitária não terá qualquer efeito orçamental negativo”. Como é que isso se consegue? Ninguém sabe. Mas, neste momento, também não é altura para estarmos com picuinhices. Permitam apenas que o meu coração liberal tenha o prazer de saborear numa carta do Syriza frases tão belas quanto “a Grécia compromete-se a promover um melhor ambiente de negócios” (a sério, está mesmo lá: “a better business environment”) ou a investir na “remoção de barreiras à concorrência”. Isto é tão bonito, que até fico comovido.
De resto, tudo aquilo que a carta diz sobre a reforma do Estado, a racionalização dos custos, o combate à corrupção e à evasão fiscal é absolutamente desejável, essencial e inatacável, e poderia ser assinado por qualquer Governo decente e moderado, de esquerda ou direita. Quando o novo Governo grego nos garante que uns espantosos 56% da despesa pública grega (“astounding 56%”, diz a carta) não vão nem para salários, nem para prestações sociais, então, de facto, somos obrigados a concluir que a Grécia continua a ter mais gorduras do que um prato de torresmos e os seus custos intermédios são mais elevados do que o monte Olimpo.
Se o partido de Tsipras, dada a sua vocação anti-sistema, for o melhor colocado para enfrentar este autêntico flagelo de corrupção e fuga aos impostos, ao mesmo tempo que lança a mão às faixas mais desfavorecidas da sociedade grega e arquiva as medidas de esquerda pré-1989, então não há por que embirrar com ele, nem por que não lhe dar mais quatro meses para verificar se as suas acções confirmam as suas promessas. A troika foi rebaptizada? Seja. Os governantes gregos deixaram de falar directamente com os funcionários da troika para passarem a falar com os governantes europeus que, esses sim, falam directamente com os funcionários da troika? Perfeito. A Grécia, em vez de vítima da austeridade, passou a ser co-autora da austeridade? Impecável. Se toda a gente está feliz com o acordo e com a melhoria na legitimidade democrática das “instituições”, então há que gozar a bonança, mesmo que ela só dure 120 dias. A verdade é esta: a Europa conseguiu que o Syriza deixasse de ser Syriza, e isso é muito mais importante do que a troika deixar de ser troika.

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