terça-feira, 10 de março de 2015

AGÊNCIAS FUNERÁRIAS E COVEIROS

Soaram dois disparos no início do dia. Um corpo tombou, de bruços e inerte aos olhos da multidão que rapidamente se aproximou. Telefones topo de gama registaram a imagem que célere correu pelas redes sociais. Mensagens de repúdio também não tardaram. As possíveis causas foram arroladas, mas uma sobressaiu sobre as demais e apontava para o coração de uma formação política. Falou-se de crime contra a liberdade de pensamento e de expressão. Houve, dias depois, uma marcha que só não continuou até ao local que se pretendia, depois do que estava previsto, porque a polícia cumpriu escrupulosamente a lei e não permitiu que o improviso tivesse lugar. Para não variar foi condenada de forma estridente nas redes sociais por ter respeitado aquilo que consagrou o malogrado. Este país sempre foi assim: marcha-se por tudo, mas alcança-se quase nada. Os madgermanes marcham há 'séculos' e não conseguem nada. Marchou-se pelos raptos, mas voltou-se a raptar poucos dias depois. A ideia com que se fica, depois que as marchas ocorrem, é que elas voltarão quando o próximo corpo ilustre tombar. É que elas, mais do que um espaço de reivindicação de direitos e garantias, são um lugar de busca pelo protagonismo. Um lugar onde muitos vão para ser vistos e poucos para lutar pela liberdade de seja o que for. Há, diga-se, muita gente genuína, mas tantos vão para fazer figura, armados em defensores de causas sociais, exibindo fotografias da sua presença, mas desrespeitando os direitos e garantias dos que de si dependem. Isso retira toda a beleza da indignação, retira grande parte da justeza da causa, porque parte dos reivindicadores desconhece direitos à terceiros. Porque viola liberdades e garantias de tanta gente diante do silêncio de uma multidão de pessoas que clama por mudanças. Agora lembro-me de Rute Muianga, a mãe de Hélio, aquele miúdo que morreu de uma bala de 'borracha' nos tumultos de 1 de Novembro. Lembrei-me das vítimas de Xitima e das velas que acendemos por elas, dos que tombaram em Muxungue, dos que pereceram em Montepuez e de todas as vítimas de balas perdidas, das vítimas de falta de medicamento, das vítimas das previsíveis cheias, das vítimas da cíclica cólera, das vítimas da fome de merda que não foi vergada pela revolução verde, das vítimas do abate indiscriminado de madeira. Afinal somos vítimas de tudo: ou vítimas da intolerância ou vítimas da censura ou vítimas do fundamentalismo político, esse que não nos deixa discutir as questões toldados por aquilo que convencionamos como motivação por detrás da opinião alheia, essa que nos tolda a visão e faz com que, antes do país, seja colocado em maiúsculas o nome do partido ou o nome da nossa ONG ou o nome de algo tão em voga como activismo social. Mas na verdade não activismo social nem nada que seja parecido. Só lutamos para derrubar quem pensa diferente. E como tudo é luta pelo poder, como bem argumentou o Niosta , vamos cometendo pequenos crimes contra os que pensam diferente. Mas na verdade estamos todos mortos porque é proibido ter opinião e quando escreves dizem: "o que te fez mudar", "quanto é que te pagaram", "já não te reconheço", "as pessoas mudam", "se estivesses lá o teu argumento seria outro" ou algo parecido. Essa cultura de rebanho é que nos mata. Só podemos ser ovelhas para singrar nesta selva. Estou disposto a marchar pelo direito de ser diferente ou pela emergência do indivíduo.
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  • Alcides Tamele Há gajos que quando prometem voltar a fazer barulho cumprem com a sua palavra yeah... Profundo e realístico.
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  • Niosta Cossa Permita-me uma adenda, amigo Rui Lamarques:

    AGÊNCIAS FUNERÁRIAS E COVEIROS

    Não nos devemos indignar perante as marchas que são realizadas, de tempos em tempos, por algumas organizações da sociedade civil e/ou por pessoas da classe média-rica moçambicana quando uma pessoa do seu meio é vítima de um crime bárbaro (e/ou de uma injustiça).

    Estes estão a cumprir o seu papel. Que é realizar o “ritual da indignação”; uns para mostrar/justificar a razão de sua existência (as organizações da sociedade civil) e outros para exorcizar demónios e/ou praticar catarse (os cidadãos da classe média-rica). Tal e qual as agências funerárias e os coveiros se ocupam da “cerimónia do enterro” a cada vez que alguém morre.

    Ou melhor, no fundo, estas organizações da sociedade civil amantes das marchas não se diferem das agências funerárias. E as marchas não se diferem dos cortejos fúnebres. As marchas acontecem apenas para depositar a memória do morto nas fotografias na mesma medida em que os cortejos fúnebres são ensaiados para entregar o corpo do morto ao chão. E os participantes das marchas são os coveiros, que legitimam/testemunham as marchas e fazem as fotografias que, posteriormente, são postadas pelas redes sociais (e/ou enviadas para parceiros nacionais e/ou internacionais).

    Quando acaba marcha ou a cerimónia, a vida volta ao normal.

    Logo, indivíduos como Rui Lamarques não se deveriam indignar por as marchas moçambicanas serem estéreis e/ou não levarem a lado algum e/ou serem acontecimentos isolados: em verdade, não há intenção de levar coisa alguma adiante. As marchas são apenas cerimónias. São “mhambas” (missas tradicionais) para “phahlar” (prestar respeito) às memórias dos mortos. Não são pontos de encontro para concertação de ideias e/ou conjuração de futuras acções para melhorar as coisas cá na terra.
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  • Zé Martins Sinceramente gostava de te ver a substituir o TVM no " Pontos de Vista ".
    Jerry Jeremias Langa uma proposta so .
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  • Rui Miguel Lamarques Zé Martins, eu não tenho arcaboiço para substituir tão ilustre figura. Ainda sou miúdo eu
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  • Ximbitane Na Lenha A minha vénia!
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  • Shchuka Vybrat Clap clap.
    Vénia
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  • Zé Martins Mas este País precisa de pensamento de putos inteligentes. 
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  • Júlio Mutisse Rui a minha vênia sincera. Leio seus escritos há muito tempo e neste chegaste lá onde se eu tivesse a sua ossatura intelectual chegaria. Parabéns bro. A Adenda do Niosta Cossa completa o seu ponto. Quando em dose menor escrevi o que dizem após a morte de CC quase fui trucidado. Aguardem o que segue, se não forem condenados a serem ignorados numa qualquer mensagem pelo Whatsap.
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  • Mauro Manhica hehehe. Nice. Bom texto.
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  • Manuel Viriato Muito bem Rui. O mundo precisa de miudos como voce. Pena que não tem as mesmas oportunidades que alguns que nada dizem e pensam que tudo sabem. Thanks por fazer parte do seu circulo de amigos nesta rede social...
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  • Silvia Soares Valeu a (galinha inteira) pena ter decidido ler o texto. ...parabéns.
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  • Germano Milagre Ou seja deixemo-nos de marchas que nada atingem, pior se firmos de classe média/rica ( por o sermos nem devíamos reclamar pois enquanto vivos já eramos priveligiados ) e ignoremos o facto em si de um professor com peso na academia e não só ter sido suprimido ( fora o facto so assassinato em si ) e deixemo-nios estar quietos ou a pensar no que deveríamos fazer ou não fazer, mas sobretudo quietos sem fazer ondas que um dia como somos todos medíocres e nunca nada conseguimos, algo irá mudar pela divina natureza talvez. Ou então deixemos a coisa correr no marasmo dos informadamente escravizados. O importante será lamentar e mais nada fazer, pois nada vale a pena ... quando a alma fica mesmo pequena ( na contramão do poeta ).
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  • Edgar Barroso Texto soberbo. Falta agora apresentar a sugestão, as alternativas. Ou achamos que vamos mudar o estado das coisas com mera literatura?
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  • Rui Miguel Lamarques Pelo menos não será com marchas, ó Edgar.
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  • Edgar Barroso Será com o quê, Rui?
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  • Dennylson Machava Lgdry #Rui escreves meu caro. Salute, muito realistico seu point of view. .. salute
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  • Edgar Barroso Cidadãos e organizações sociais têm saído à rua para reivindicar, reclamar, protestar ou demonstrar indignação perante desvios inaceitáveis de conduta, crimes, instabilidade política e demais injustiças sociais. Tais acções não têm supostamente surtido efeitos. Porquê, porque tais indivíduos são fracos ou impotentes demais perante os detentores do poder político e económico? Ou simplesmente porque são hipócritas?
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  • Edgar Barroso O que é mais útil ao país, assistirmos impávidos e serenos à gangsterização do Estado, à delapidação de suas riquezas e recursos por interesses oligárquicos estranhos e lesivos ao bem público e ao colapso do sistema de administração da justiça, por exemplo? Ou escrevermos textos lindos a atacar aos supostos actores do teatro da indignação?
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  • Rui Miguel Lamarques O mais útil é marchar. Vê-se pelos efeitos que tais episódios geram.
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  • Edgar Barroso É mais útil em relação a quê?
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  • Sérgio Fernando Sera que um mocambicano-frances que tem ideias diferentes com as dos outros eh levado para o mesmo destino??? Estamos a alimentar as políticas de fuzilamentos que eram implementadas no período da criação daquele partido, onde uns eram fuzilados para, quando o pais se tornar independente, não serem destacados como sendo combatentes da luta de libertação. Muito mau isso...
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  • Leonardo Costa Bem retratado. a minha venia
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  • Marcelo Machava Mas trata se de uma pratica universal tipica de democracias. O que se deve fazer no lugar da marcha? Eis a questao.
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  • Edgar Barroso Talvez ficar em casa à espera também do "eterno retorno",Marcelo Machava: aguardar que aconteça qualquer coisa que leve cidadãos às ruas, para voltar a escrever outro texto bonito sobre o "teatro" dos outros.
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