terça-feira, 24 de março de 2015

Tanta esquerda, tão pouca direita


OPINIÃO

JOÃO MIGUEL TAVARES

24/03/2015 - 06:01


A esquerda automutila-se, enquanto à direita os verdadeiros liberais não têm um único partido que responda às suas preocupações.

A extrema-esquerda portuguesa parece um óvulo fecundado pela crise, em pleno processo de divisão celular: só da barriga do Bloco de Esquerda já nasceram o Livre, a Associação Fórum Manifesto, que deu origem ao movimento Tempo de Avançar (ex-Manifesto 3D), mais o novo Juntos Podemos, que entretanto se cindiu no novíssimo Agir, que por sua vez se fundiu no novérrimo PTP/Ag!r, com ponto de exclamação e tudo.

É bem possível que haja mais diferenças entre um coelho e uma lebre do que entre todos os partidos e movimentos citados na frase anterior, mas a esquerda é mesmo sim: sempre empenhada em salvar a pátria, só que de uma maneira muito, muito específica.

Já a direita é o contrário disto: mantém-se numa assinalável coesão, ainda que uma fatia razoável do seu eleitorado possa não se sentir representada pelo actual espectro partidário. Deixem-me dar-vos um exemplo de uma pessoa que conheço bastante bem e com quem nenhum partido português parece ser capaz de encetar uma conversa decente – eu próprio. Eu sou um cidadão que acha a austeridade inevitável, tendo em conta que as únicas alternativas seriam a saída da União Europeia ou uma estratégia suicida à grega. Portanto, compreendo e acompanho o apertar de cinto promovido pelo Governo, e até celebro a forma como em quatro anos a máquina fiscal conseguiu pôr quase toda a gente a pagar impostos. Mas depois há o outro lado, que é a enorme falha do Governo de Passos Coelho: o vasto conjunto de reformas estruturais que nunca chegaram a acontecer.

Entendo que o breve ímpeto reformista que existiu foi travado com a saída de Vítor Gaspar das Finanças e com o papel acrescido de Paulo Portas nas relações com a troika. Entendo que a seriedade com que Portas encarou a reforma do Estado está bem expressa no seu patético guião a dois espaços e corpo 14. Entendo que a ausência de uma verdadeira reforma laboral perpetua os níveis altíssimos de desemprego. Entendo que o elevado endividamento, sobretudo no sector privado, nunca foi enfrentado como devia. Entendo que o Estado continua a ter uma incompreensível tolerância para com as rendas no sector energético e nas PPP. Entendo, em resumo, que o grande pecado do Governo ao longo destes anos não foi a imposição da austeridade nem o aumento dos impostos, mas o desaproveitamento de uma oportunidade de ouro para reformar profundamente o país.

Ora, quem é que em Portugal verdadeiramente defende isto? O PSD acha que fez tudo bem, excepto algumas coisas que não conseguiu fazer, por culpa do CDS. O CDS acha que nem tudo foi bem feito, mas que se não estivesse no Governo tudo teria sido bem pior, por culpa do PSD. O PS acha que o problema esteve na austeridade, que foi mal aplicada. O PCP, o Bloco e as respectivas divisões celulares acham que o problema esteve na austeridade, ponto. Quem é que, afinal, critica o Governo por aquilo que ele realmente merece ser criticado? Eu digo-vos quem: Subir Lall. Sim, Subir Lall diz o que precisa de ser dito quando passa por cá, de seis em seis meses. Mas eu não posso votar em Subir Lall, e o FMI, por quem o actual Governo já chegou em tempos a parecer tão apaixonado, é hoje o punching bag de toda a classe política, Governo incluído. E acontece isto: a esquerda, que na substância concorda entre si, automutila-se, enquanto à direita os verdadeiros liberais não têm um único partido que responda às suas preocupações e dirija ao Governo as críticas certas. Curioso – e infeliz – paradoxo.

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