sábado, 16 de maio de 2015

Lixo debaixo do tapete


16.05.2015
DOMINGOS DE ANDRADE

Não há conta, nos últimos 40 anos, de uma tão grande transferência de funções básicas do Estado para o setor privado ou social. E esse esvaziamento paulatino tem decorrido sem que se percebam os reais motivos, embora sejam fáceis de intuir.

Convém sublinhar bem sublinhado que não está aqui em causa a capacidade de gestão das misericórdias e das ordens religiosas, infinitamente superior à do Estado. E muito menos o papel de conforto e intervenção que têm junto não só dos mais desfavorecidos, mas de uma classe média que a crise atropelou e que só aí encontra algum tipo de apoio, que tem sido essencial para evitar o desmoronamento social.

Mas vamos à história, que se conta devagarinho nas páginas deste jornal. Hoje há mais uma. O Ministério da Saúde quer, agora, entregar consultas de Psiquiatria às misericórdias e ordens religiosas que já têm esta valência na Saúde Mental. As razões são óbvias e claras: os hospitais não conseguem cumprir os tempos máximos de resposta e há quem chegue a esperar 200 dias. Mas há mais.

O Estado (leia-se o Governo) já tinha devolvido a gestão de três hospitais às misericórdias e prevê a entrega de mais duas dezenas. Pertenciam-lhes de direito. E alivia as contas do Ministério.

O mesmo Ministério pretenderá (ainda não foi claro) resolver o problema da falta de médicos de família contratualizando consultas de Medicina Geral e Familiar no setor social.

O Estado (leia-se o Governo) quer contratualizar técnicos junto das mesmas instituições particulares de solidariedade para apoiar as comissões de proteção de menores, recorrentemente alvo de notícias por falhas graves no acompanhamento de crianças em situação de risco. Contratualiza e não engrossa os números da Função Pública.

O Estado (leia-se o Governo) quer que seja o setor social a receber os idosos abandonados nos hospitais, pagando o devido.

O Estado (leia-se o Governo) entregou para as mãos da Misericórdia, diretamente e sem que se perceba porquê, o Centro de Reabilitação do Norte, construído com dinheiros públicos e fundos comunitários. E fiquemos por aqui. Para já.

O que está em causa é que à máxima prosseguida por este Governo de menos Estado, melhor Estado temos tido muito do primeiro e pouco do segundo. E temos sobretudo tido contas de merceeiro. A entrega das funções básicas do Estado não decorre de uma estratégia de futuro, mas de um problema do presente. Que tem sido resolvido não com reformas de fundo, mas com desorçamentação.

O que não se vê, não existe. Mas existe. Varre-se é para debaixo do tapete.

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