domingo, 10 de maio de 2015

O "Gulag Angolano" (ii)


domingo, 10 de maio de 2015

O "Gulag Angolano" (ii)

Escrito por Miguel Bruno Duarte





«Tem a Rússia, desde os tempos dos seus grandes doutrinadores, uma política igualmente definida quanto à África: a sua subversão como meio de contornar a resistência da Europa. O trabalho de subversão e desintegração africana tem sido sistemática e firmemente conduzido pela Rússia e nesta primeira fase, que é apenas expulsar a Europa de África e subtrair quanto possível os povos africanos à influência da civilização ocidental, estão à vista os resultados obtidos.

Ora, talvez por força do seu idealismo, talvez também por influência do seu passado histórico que aliás não pode ser invocado por analogia, os Estados Unidos vêm fazendo em África, embora com intenções diversas, uma política paralela à da Rússia. Mas esta política que no fundo enfraquece as resistências na Europa e lhe retira os pontos de apoio humanos, estratégicos ou económicos para a sua defesa e defesa da própria África, revela-se inconciliável com a que pretende fazer através do Tratado do Atlântico Norte. Esta contradição essencial da política americana já tem sido notada por alguns estudiosos, mesmo nos Estados Unidos, e é grave, porque as contradições no pensamento são possíveis mas são impossíveis na acção».

Oliveira Salazar («O Ultramar e a ONU», SNI, Lisboa, 1961)


Em Agosto, o chefe do MPLA, "Iko" Carreira, desloca-se à URSS, para discutir a recepção de maior volume bélico. Dias depois, uma numerosa delegação de altos militares cubanos chega ao Congo-Brazzaville, onde é efectuada uma conferência com o MPLA. Aí decide-se que os assessores militares ainda em Brazzaville se desloquem para Angola para participar em combates. Cuba promete o envio de mais forças. Numa conferência preliminar dos Não-alinhados, que se efectua no Perú em finais de Agosto, o conselheiro cubano Isidoro Malmierca pede aos membros que actuem a fim de acelerar a descolonização em Angola. A 20 de Agosto, o Presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, autoriza uma verba de 10,7 milhões de dólares para a FNLA e UNITA, elevando o total da ajuda concedida por Washington para 24,7 milhões de dólares, a fim de manter o equilíbrio militar face à presença cubano-soviética, pelo menos até à data da independência, procurando assim a negociação entre os três movimentos angolanos.

Os soldados cubanos pertencentes às unidades de artilharia apoiam a "gendarmerie" catanguesa na ofensiva do MPLA sobre Quibala, Novo Redondo e Benguela. Aqui ocorre um feroz combate entre a UNITA e as forças do MPLA apoiadas por cubanos. As tropas da UNITA capturaram dois soldados cubanos.

Em Setembro, as tropas cubanas dirigidas pelos general Diaz Arguelles, apoiadas por tanques e "orgãos de Stalin", instalaram-se no Caxito. O exército colonial português estacionado em Angola, recebe instruções do seu Alto-Comissariado para facilitar o apoio estratégico ao MPLA, sobretudo às unidades aéreas e navais. Deste modo, o MPLA enterra o governo de transição nascido dos Acordos de Alvor. Começa a cristalizar-se a intrusão militar cubano-soviética em Angola de uma maneira alarmante, pelo menos antes da data da independência.




Lançador de foguetes Katyusha durante a Segunda Guerra Mundial

















Em Setembro, o Presidente do Congo-Brazzaville viaja até Havana, com representantes do MPLA, para precisar os detalhes de uma escalada militar cubana, uma vez que Portugal cederia o aparelho administrativo do país ao movimento angolano antes da sua independência.

O Presidente de Brazzaville, Ngouabie, concorda em dar ao MPLA e ao general Diaz Arguelles o arsenal bélico do seu exército, especialmente o material bélico de reacção que os soviéticos prometem substituir. Utilizar-se-á o território do Congo-Brazzaville como local de trânsito para os soldados cubanos. O Presidente guineense, Sékou Touré, confirma o aeroporto de Conakry como ponte de trânsito e de reabastecimentos dos aviões "Britannia" e IL-18 que Cuba utiliza como transporte militar. O Yémen do Sul oferece o aeroporto de Aden para a transferência de vitualhas provenientes da URSS.

Um oficial do exército cubano, que esteve desde o início em Angola, relata-nos como se efectuou esse triângulo militar entre a URSS, Cuba e Angola:

"Eles (os soviéticos) enviaram tropas e armas para Cuba para compensar os envios de Fidel para Angola. Para este efeito os 'assessores' russos do regime cubano forneceram dois aviões quadrimotores da União Soviética que equiparam com depósitos adicionais para garantir a provisão de combustível indispensável para a grande travessia. Devido ao peso destes depósitos, a capacidade para as tropas teve de ser limitada a 45 pessoas por avião, cada qual com as suas armas e demais equipamento bélico necessário e incluindo ainda dois canhões.

Estes 90 homens desembarcaram em Luanda sob o fogo cruzado das hostes de Savimbi e [Holden] Roberto que haviam cercado e fustigavam as tropas de Neto..."

O governo português encabeçado pelo general Vasco Gonçalves, ordena às tropas coloniais portuguesas em Angola que apoiem o MPLA, oficializando o que já era uma prática consumada. A este respeito diria Holden Roberto:

"...podemos verificar a presença de tropas cubanas e portuguesas nessas batalhas de Luanda que terminaram com a derrota temporal da FNLA e provocaram a evacuação da capital. Tudo fazia parte de um plano cuidadosamente preparado com a assistência das forças expedicionárias cubanas..."
















Vasco Gonçalves e Costa Gomes







Vasco Gonçalves, Álvaro Cunhal, Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo no 1.º de Maio de 1975





Vasco Gonçalves, Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo













































Ver aqui. Ver também Portugal e os Americanos
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A TAP antes do 25 de Abril de 1974 (Margarida Rouillé na entrada de ar do reactor dum Boeing 707, Aeroporto da Portela, 1968)






Ao centro, da esquerda para a direita: Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves





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Ver vídeos 1, 2, 3, 4, 5 e 6















Vasco Gonçalves



















































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Jornal A Rua, n.º 70, 4 de Agosto de 1977, Ano II




























Sem dúvida, o factor decisivo para a escalada Castro-soviética a favor do MPLA deve-se ao facto de que em Setembro, o governo de esquerda português, liderado por Vasco Gonçalves, cai, pondo em perigo o apoio que Neto vinha a receber das autoridades portuguesas em Angola, em especial, os desembarques impunes de material de guerra soviético e soldados cubanos.

A meados de Setembro, três navios da frota mercante cubana transformados em transporte de guerra, transportam material bélico e 480 instrutores militares de reforço para Angola, com a máxima urgência. O ex-guarda-costas de Fidel Castro, Rigoberto Milan, oferece-nos de novo uma descrição do transporte de tropas:

"...os navios mais rápidos e com maior capacidade de carga da marinha mercante cubana foram dotados de prateleiras nos porões com toldos onde se instalaram longas filas de camas estreitas, apinhadas e pouco ou nada confortáveis. Isso tornava possível o transporte de nada mais nada menos de 1800 homens por viagem, em condições sub-humanas, como as dos barcos negreiros..."

Em princípios de Setembro, o MPLA lança uma verdadeira ofensiva contra a FNLA, utilizando pela primeira vez a artilharia de 122 mm, cedida pela URSS. Os conflitos sucedem-se através do Caxito até às imediações de Ambriz. Colocadas em camiões, as armas de 122 mm são o elemento mortífero que fazem pender a balança para o lado do bando de Neto. A delicada situação da FNLA faz com que o Presidente do Zaire, Joseph Mobutu, envie com urgência, dois batalhões de reforço a Holden Roberto, que recupera Caxito e avança sobre Luanda e também sobre Cabinda, apoiando a FLEC, precipitando os choques contra os cubanos, no dia 2 de Novembro.

No sul, a UNITA enfrenta os catangueses no Luso e os cubanos no Lobito, de uma tal maneira que os faz retroceder para Nova Lisboa. O secretário de estado norte-americano, Henry Kissinger, pede que a África do Sul "responda" à solicitude da UNITA e dê sinal de presença na contenda.

A África do Sul considera que uma coluna móvel, com um alto poder bélico, apoiada por carros e artilharia, pode inclinar a balança a favor de Savimbi e Holden e, inclusivamente, com o tempo suficiente para abandonar Angola antes do dia da independência.

Jonas Savimbi, aceita a ajuda bélica da África do Sul, ao defrontar-se com uma difícil situação militar, e as pressões da Zâmbia, para que abrisse ao trânsito o caminho-de-ferro de Benguela antes do dia 11 de Novembro. Em troca, Kaunda promete a Savimbi, o reconhecimento diplomático da Zâmbia e não inicia negociações com o MPLA.

(...) A entrada em cena da África do Sul facilita grandemente ao bloco soviético a campanha que então enceta a favor do MPLA, a pretexto da "agressão racista" subjacente à escalada que se está planeando.





Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e o "Almirante Vermelho" (Rosa Coutinho)




A queda de Vasco Gonçalves em Lisboa e a entrada da África de Sul no Cunene podem ser nefastas ao projecto de concentrar o poder nas mãos do MPLA. Contra essa eventualidade, a União Soviética envia mais armamento e Cuba mais soldados. As forças cubanas pretendem derrotar e liquidar a FNLA e a UNITA como organizações militares, e aumentar o mais possível a influência do MPLA. Avançando para o norte, as tropas cubanas desarticulam a FNLA, enquanto barcos de guerra soviéticos tipo KARA abrem fogo contra as forças anti-MPLA nos arredores de Luanda.

A União Soviética apoia o plano de uma acção de maior envergadura enviando mais barcos, aviões e armamento. As unidades regulares cubanas são enviadas com mais frequência em apoio do MPLA, tornando cada vez mais possível o regime marxista de Neto em Luanda e empurrando Holden Roberto para o interior.

Havana e Moscovo estão convencidos que as potências ocidentais não dispõem de "forças de acção rápida" para contra-atacar em território africano, sobretudo por se estar tão perto do processo eleitoral norte-americano e por Washington pretender apenas uma "contenção" em África.

As forças sul-africanas movimentam-se para o norte, atacando a coligação MPLA-Cuba. O dispositivo combinado UNITA-África do Sul avança sobre as forças cubano-catanguesas, e em Novembro pouco falta para a queda do MPLA no sul.

É controverso o facto de as tropas cubanas, congolesas, moçambicanas e armamento soviético terem chegado a Angola anteriormente à insurreição em Pretória.

As tropas da África do Sul avançam contra Sá da Bandeira, Benguela, Lobito, Gabela e Novo Redondo, que haviam sido ocupadas em Agosto, por destacamentos cubanos.

Com excepção de Pequim, poucos são os que, nessa altura, denunciam publicamente a intervenção militar de Fidel Castro em Angola, a favor do MPLA.

A partir de Cabinda, Holden Roberto lança uma ofensiva contra a capital, com o objectivo de reforçar as suas forças, que ali lutam contra o MPLA, em condições desfavoráveis. Do Lobito também Savimbi envia, cautelosamente, forças suas.
















Ao centro: Holden Roberto



Na noite de 25 de Setembro o barco cubano "Vietnam Heróico" chega a Pointe Noire, transportando 20 carros blindados, 30 camiões e 120 soldados cubanos, sendo aí tudo e todos transferidos para o navio angolano "Lunda-Luanda", com destino a Caxito, onde se espera uma ofensiva. Em princípios de Outubro, chega outro contingente de Castro para as forças armadas do MPLA, em barcos cubanos. A 6 de Outubro, as unidades de combate cubanas enfrentam as sul-africanas, em Norton de Matos, mas a artilharia anti-tanques de Pretória detém-os. As forças dizimadas pelos sul-africanos pertencem às "famosa" divisão "50", uma unidade de elite directamente comandada por Fidel e Raul Castro.

Embora existindo um apoio directo dos EUA, Zaire e África do Sul aos movimentos anti-MPLA, este é inferior quantitativa e qualitativamente ao ministrado pela União Soviética ao movimento de Agostinho Neto (400 milhões de dólares). Por outro lado, Fidel Castro expressa a intenção de ampliar a presença cubana face a um abrandamento da posição de Pequim. A 8 de Outubro, o porta-voz cubano na ONU, Ricardo Alarcon, afirma:

"...perante a escandalosa interferência dos imperialistas, colonialistas e racistas em Angola, é dever fundamental de Cuba oferecer ao povo angolano assistência efectiva de que aquele país necessita no sentido de preservar a sua independência e total soberania. Tendo em vista precipitar o processo descolonizador deverá implementar-se uma estratégia coerente com a participação de todas as forças progressistas.

Esta estratégia é essencial para enfrentar os colonialistas e os racistas nas suas maquinações contra os povos da Namíbia e do Zimbabwe, e deverá opor-se ao colonialismo em todas as suas forças e manifestações em cada canto do planeta..."

A 6 de Outubro, além de cerca de 600 soldados cubanos, desembarcam em Pointe Noire, de bordo do navio "Playa de Habana", 3 tanques, 400 camiões e artilharia. Parte das tropas são enviadas para a base de Dolissie, no Congo-Brazzaville, enquanto outros contingentes e armamento seguem para Massabi perto de Cabinda e para Banga. Uma semana depois desembarca uma representação do Partido Comunista de Cuba juntamente com uma delegação militar e mais reforços de tropas. Aquela delegação programa com o governo do Congo-Brazzaville pormenores sobre o pessoal técnico necessário para os MiG-21 enviados pela URSS.





Um dos Mig-17F enviados para Angola (1975)


















"...um ou mais barcos cubanos desembarcaram tropas directamente em Porto Amboim, ao sul de Luanda, que partem dali para Benguela a fim de se juntarem às tropas do MPLA que se estendem do Lobito até Nova Lisboa, e que necessitam com urgência de pessoal especializado em tanques".

Nas noites de 16, 17 e 18 de Outubro, dois transportes soviéticos aterram em Brazzaville com 1000 soldados cubanos e uma equipa soviética AN-12, que, juntamente a três barcos cubanos, serão utilizados na ponte aero-naval entre Pointe Noire e Angola. Simultaneamente, pelo Lobito, chagam mais de 500 soldados cubanos com seis tanques. Uma semana depois desembarca outro contingente de 750 soldados de Fidel e grande quantidade de material de guerra, desta vez em plena luz do dia.

A imprensa ocidental denuncia a constante presença de um grupo táctico naval soviético junto do teatro de operações. Mas é Cuba quem arca totalmente com as responsabilidades das operações enquanto a URSS sonda as reacções das potências ocidentais.

Existe a versão de que a URSS empurra Castro para esta operação e que este inicialmente se mostrara reticente. Outros sustentam que a operação é totalmente assumida por Havana e que Moscovo apoiara a audácia de Castro. De qualquer forma a ordem do comportamento das participações não altera o balanço final: Castro decide enviar tropas equipadas pela URSS, o Congo-Brazzaville deixa usar o seu território e como ponte deste tráfico inflamável conta-se SékouTouré, Guiné-Bissau, Barbados e Açores.

Em meados de 1975, o ideólogo do PCUS, Mikhail Suslov, no VII Congresso do Comintern, expressa-se a favor de um apoio mais activo aos "movimentos de libertação", de acordo com os princípios do "internacionalismo proletário". Também P. I. Menchka e R. Ulyanovsky, respectivamente chefe do Departamento de África do Comité Central e vice-chefe do Departamento Internacional do CC, teorizam sobre a importância de uma "estratégia revolucionária" de ajuda material directa ao processo de libertação nacional e insurgem-se contra os defensores de um "evolucionismo".











A 5 de Novembro, dia em que as tropas especiais de Castro são enviadas por via aérea para Luanda, o diário PRAVDA anunciava a decisão soviética por uma solução armada em Angola e, consequentemente, a ruptura com os acordos de Alvor que estipulava a independência negociada:

"...ao proclamarem-se a favor de negociações pacíficas e do abrandamento das divergências os maoístas pretendiam sentar à mesma mesa o povo angolano, vítima da agressão armada, e as forças fantoches treinadas por mercenários especialistas da China e da CIA em conjunto com os racistas sul-africanos e rodesianos..."

O conflito dentro do Bureau soviético entre os que defendem a invasão cubano-soviética e os que procuram uma transição "evolutiva" reflecte-se na imprensa moscovita. Em 3 de Janeiro de 1976 um editorial do diário PRAVDA e outro do EZVESTIA, três dias depois, punham em destaque os pontos divergentes sobre aquela problemática. As divergências ressaltam durante o XXV Congresso do PCUS, em Fevereiro de 1976, evidenciando-se o papel gestor da URSS na invasão de Angola. Na realidade os planos expansionistas e o cometimento militar de Castro com os soviéticos, juntamente ao interesse estratégico e aos interesses do Partido Comunista Português, são os elementos actuantes da invasão de Angola. Em meados de Outubro, quando os sul-africanos tinham entrado em cena, já havia cerca de 7.500 soldados cubanos no campo de batalha.

O MPLA, apesar de contar com a assistência cubana, recua face à pressão das colunas da UNITA e da FNLA. No seu avanço para o norte, a UNITA consegue arrebatar algumas cidades ao MPLA e ao longo da fronteira sul destrói unidades cubanas e limpa a zona entre Pereira d'Eça e Porto Amboim. O MPLA sem a protecção da artilharia e dos blindados cubanos é dominado por Savimbi. No norte, a FNLA inicia a ofensiva a partir de Ambriz, fazendo recuar os cubanos e catangueses até às imediações de Luanda, deixando pelo caminho mais de trezentos mortos. A 23 de Outubro, uma força sul-africana e efectivos angolanos comandados por Daniel Chipenda iniciam o avanço do sul após ter facilmente ganho Sá da Bandeira e derrotado os cubanos quatro dias depois em Moçâmedes.

Estão envolvidos na luta mais de 4000 soldados cubanos, parte deles colocados entre Caxito e Lobito e 2500 estacionados em Luanda e Quifandongo.

Entre 26 e 29 de Outubro transportes aéreos soviéticos chegam à base aérea de Maya-maya, no Congo-Brazzaville, com mais de 1000 soldados cubanos e material bélico procedente da Guiné-Bissau com destino a Angola.




















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Bandeira da UNITA







































A coluna UNITA-África do Sul, composta por 2000 homens, inicia uma ofensiva a partir da Namíbia em Outubro e enfrenta forças superiores de cubanos, catangueses e combatentes do MPLA. A 28 de Outubro, a UNITA toma Mocâmedes, a 12 de Novembro, Novo Redondo. Lobito e Benguela caiem a 16 e um dia depois Malange. Outra força da UNITA faz recuar os catangueses, expulsando-os do Luso, para depois se dirigir a Teixeira Sousa, tirando a estação ferroviária das mãos do MPLA. A operação "Zulu" parece conseguir os seus fins. Savimbi prossegue-a até ao norte.

A impossibilidade das tropas cubanas (comandadas pelo general Diaz Arguelles) e dos artilheiros catangueses deterem a coluna móvel UNITA-África do Sul, assim como as grandes baixas que sofrem, determinam a decisão de Fidel Castro e da URSS no que respeita a uma escalada militar em Angola. Numa reunião entre Castro e Henrique dos Santos do MPLA, realizada em Havana, é decidido declarar a independência unilateral que conceda a cobertura jurídico-política à escalada militar soviético-cubana. Nessa altura já todos os actores do drama angolano se acham presentes (Cuba, URSS, África do Sul, Zaire, EUA) para ajudar o "seu" protegido.

Na primeira semana de Novembro as forças de Holden Roberto aproximam-se de Luanda atravessando as planícies de Quifandongo apoiadas por peças de artilharia sul-africanas. O MPLA conserva uma estreita franja costeira ao norte e sul de Luanda e os seus dirigentes começam a evacuar a capital. Entre Caxito e Luanda os cubanos e os soldados do MPLA preparam a defesa. Há notícias da presença de Mig-21, tanto no Congo-Brazzaville, como em Luanda. As forças cubanas e do MPLA são colhidas por uma pinça mortal do norte ao sul. A coluna sul-africana, depois de derrotar os agrupamentos do MPLA no sul, corre para Benguela, onde choca com a artilharia cubana, que leva de roldão até Lobito, subindo depois para Luanda, ao longo do caminho-de-ferro de Benguela.




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A rapidíssima ajuda das unidades cubanas que formam as tropas especiais de Fidel Castro (saídas de Cuba a 5 de Novembro, via Cabo Verde) com o apoio das forças do general Diaz Arguelles, dificultam primeiro e imobilizam depois o avanço desta coluna sobre a capital, enquanto em Cuba se preparam outros meios de transporte para completar um primeiro contingente.

Rigoberto Milan, oficial do exército cubano e ex-guarda-costas de Fidel Castro revela que o dirigente cubano mantinha comunicação permanente com Angola mediante as instalações facilitadas pelos soviéticos:

"...os serviços de informação cubanos advertiram o general Diaz Arguellez que várias colunas de guerrilheiros e civis provenientes de Cabinda, num total estimado entre oito e dez mil pessoas avançavam sobre Luanda. Havia também sido detectado outro grupo, mais pequeno mas melhor organizado, formado pelos homens de Savimbi, que vinha do Lobito. O alto-comando cubano compreendeu que a capital ficaria entalada numa operação-pinça entre as colunas de Holden Roberto, pelo norte, e os homens de Savimbi, pelo sul. O seu papel de espectador havia terminado. Começava agora a verdadeira batalha de Luanda.

Era preciso conservar a qualquer preço o controlo da capital, até chegarem os primeiros navios com reforços. O general Diaz Arguellez comunicou a situação a Havana: a capital seria atacada dentro de poucos dias e os homens de Neto eram incapazes de manejar o armamento moderno que haviam recebido. Em resposta à sua mensagem, anunciaram-lhe a partida imediata, por avião, de especialistas em artilharia pesada de 122 mm. Por outro lado, os comandantes dos cargueiros cubanos que transportavam mais tropas receberam ordens para acelerar a marcha..."

Como bem observa Juan Vives na sua passagem sobre a invasão angolana, o bloco soviético retira dividendos da retirada norte-americana no Vietname, portanto os EUA limitam o seu apoio a Angola com a contribuição de 32 milhões de dólares para a UNITA e a FNLA, o que também se manifesta insuficiente face às injecções soviéticas. Esta limitação norte-americana no plano financeiro resulta da recusa do senado em Washington de ampliar em mais de 28 milhões a magra ajuda.

A rapidez e o segredo destas operações impedem inicialmente qualquer reacção ocidental, ou o reforço do campo contrário. Conhecedor deste detalhe táctico, Castro cuida apenas de não irritar os franceses no que respeita ao Zaire ou ao Gabão.









A decisão de intervir em Angola promete mais vantagens do que possíveis desvantagens a Castro. Além de aumentar o seu prestígio aos olhos dos soviéticos, Fidel sabe que Cabinda se apresenta como uma fonte petrolífera e que Angola é rica em minérios. Castro abranda o seu pesado aparelho burocrático, aplica a profilaxia ideológica e paralisa o processo descentralizador que evidentemente reduziria o seu poder.

Uma vitória em Angola significa uma base estratégica cubano-soviética no flanco sul-africano e a eventualidade de pressionar, com a sua presença militar, o Zimbabwe e a Namíbia. Por esta altura, o governo norte-americano estuda a possibilidade de desenvolver um programa com a FNLA e a UNITA a fim de modificar a situação no plano militar, considerando o envio de mísseis terra-ar "Redeye", anti-tanques, artilharia pesada, apoio aéreo táctico, etc. Ao mesmo tempo é também considerada a presença de assessores e unidades militares norte-americanas, o envio de um dispositivo naval e a realização de intimidações militares sobre Cuba para limitar Castro. Mas a administração não acolhe a ideia.

Sob a cobertura portuguesa em Angola, as forças de Castro são abastecidas por via aérea, a partir da URSS, em AN-22 que sobrevoam o espaço aéreo africano pelo corredor Argélia-Mali-Guiné, saindo para o Atlântico para fazer a escala final em Brazzaville. Como expressaria Mário Mesquita acerca do valor estratégico dos Açores:

"...No inverno de 1975-76, o aeroporto de Santa Maria, onde aterravam os aviões comerciais da Cubana Airlines, ao abrigo do acordo bilateral de navegação aérea entre Portugal e Cuba (assinado em Junho de 1951), terá servido de escala ao transporte de tropas cubanas e material de guerra rumo a Angola com paragem na Guiné-Bissau ou Cabo Verde. Reconhece-se no entanto que a maior parte do transporte de homens e armamento para reforço do MPLA se processou por via marítima...

...Enquanto os cubanos aproveitavam as infra-estruturas aeroportuárias de Santa Maria, na vizinha base das Lajes reabasteciam-se aviões americanos em trânsito para a África com auxílio militar à FNLA e à UNITA. Este exemplo, de dupla utilização dos Açores para intervenções militares antagónicas em Angola demonstrou a relevância estratégica do arquipélago na perspectiva do confronto soviético-americano em África..."

Em Novembro de 1975, a URSS incrementa o volume do material de guerra que armazena em Porto Amboim e Quizama. Por outro lado, intensificam-se esforços para formar uma pequena força aérea. No dia 24 desse mesmo mês o Departamento de Estado norte-americano afirma que há em Angola 15.000 soldados cubanos.









Arkady N. Shevchenko, o alto funcionário soviético que rompe com Moscovo em 1978, quando desempenhava as funções de secretário das Nações Unidas, oferece o seu testemunho sobre o problema angolano a partir de conversações com altos funcionários da "Nomenklatura" soviética sobre os assuntos africanos. Shevchenko revela que Moscovo considera a África o ponto mais débil e vulnerável do Ocidente. Shevchenko confirma o envolvimento da URSS com o grupo pró-soviético do MPLA muito antes de estalar a guerra. Assinala que Moscovo procedeu ao transporte das tropas cubanas e que juntamente com elas seguiam especialistas militares soviéticos. Revela ainda que no Outono de 1975 Neto solicitou a Moscovo mais ajuda militar.

De acordo com Shevchenko a operação militar do final do ano efectua-se pelo entendimento entre Moscovo e Agostinho Neto, pela ajuda em equipas militares, assim como pela informação de Castro à URSS quanto à sua disposição de enviar tropas para Angola. Segundo a mesma fonte, a URSS utiliza Castro no seu expansionismo em África.

Shevchenko relata a versão de Vasili Kuznetsov (alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros soviético) segundo o qual Agostinho Neto, apesar de estar totalmente controlado pela URSS, não oferecia o perfil ideal como dirigente de Angola, pelo que havia sido decidido escolher um melhor candidato, possivelmente "Iko" Carreira. Kuznetsov informou ainda Shevchenko de que os grupos pró-soviéticos no interior do MPLA tinham anteriormente, e segundo parece a instâncias do KGB, tentado eliminar Neto.

Face à escalada cubano-soviética, a CIA continua a pressionar no sentido de uma acção conjunta com a África do Sul, apoiando os pedidos de Pretória quanto ao envio de armamento sofisticado, aviões e combustível para desencadear um ataque surpresa através do Zaire, sobre Teixeira de Sousa. O receio de uma escalada internacional e o síndroma do Vietname paralisam a máquina do poder norte-americano, que deixa isolada a África do Sul.

A 10 de Novembro de 1975, o Alto-Comissário português para Angola, Leonel Cardoso, transfere oficialmente as funções governativas para o MPLA que, em Luanda, declara unilateralmente a independência. Por seu lado a FNLA e a UNITA declaram também a independência do país. Como explicaria Álvaro Vasconcelos:

"...No período que antecedeu a data fixada para a independência de Angola, 11 de Novembro de 1975, o PCP, através de uma sistemática campanha de desestabilização, torna o governo e as forças armadas portuguesas completamente inoperantes para impor, a quem quer que seja, o respeito pelos acordos de Alvor. É o período da Frente Unida revolucionária (FUR) e da aliança do PCP com a extrema-esquerda, que levaria à tentativa de golpe de 28 de Setembro de 1975..."

(...) Sem a logística, os serviços secretos e o consentimento soviético, Fidel Castro não se teria lançado numa operação militar de tão grande envergadura como a de Angola. Apesar de velada a profunda implicação de Moscovo existem provas de que o Alto-Comando militar soviético desenhou os planos estratégicos executados por ordem cubana, na sua ofensiva contra a FNLA. Posteriormente, tornou-se mais visível o papel da União Soviética, a qual ordenou por duas vezes uma paragem na ofensiva cubana contra a UNITA, visto que os seus serviços secretos, via satélite, mantinham informado o comando militar cubano e determinavam o rumo das operações no sul, tentando evitar confrontos com as forças da África do SUL.





Gabriel Garcia Marquez e Fidel Castro












Saragago e Gabriel Garcia Marquez



A versão oficial cubana dos sucessos em Angola está explícita num extenso artigo, escrito pelo Nobel da Literatura, Gabriel Gárcia Márquez, amigo íntimo de Castro, a quem o próprio Fidel forneceu os detalhes. Consciente ou inconscientemente, Márquez escreve um artigo desinformativo sobre a acção cubana em África, que serviu não só para aumentar a confusão cronológica, o número verdadeiro de soldados postos em Angola antes de 1975, os objectivos da operação, como também a natureza da ligação, que existia desde 1974, com a URSS:

"...O acto de solidariedade de Cuba com Angola esteve longe de ser um acto impulsivo ou casual, foi até ao fim, o resultado de uma contínua política em relação a África pela revolução cubana...

...Os Estados Unidos tinham acabado de se libertar do Vietname e do escândalo Watergate. Tinham um presidente que ninguém tinha eleito. A CIA encontrava-se sob fogo e muito por baixo na opinião pública. Os Estados Unidos precisavam de evitar parecer (não só aos olhos dos países africanos, especialmente aos olhos dos Negros Americanos) ter-se aliado com a racista África do Sul. Além do mais, encontravam-se no meio de uma campanha eleitoral, no seu bicentenário...

...A pedido de Neto, Castro tinha mandado previamente um contingente de 480 especialistas, os quais tinham seis meses para instalar quatro centros de treino, organizar dezasseis unidades de infantaria, e reunir vinte e cinco morteiros e baterias anti-aéreas. Uma brigada médica, 115 veículos, e uma equipa de comunicações faziam parte do primeiro contingente, o qual deixou Angola em três improvisados navios de carneiros..."»

Juan F. Benemelis («Castro, subversão e terrorismo em África»).


«Dizem que Agostinho Neto anda por aí, pela boca dos seus fiéis, a protestar contra os que "injustamente" falam mal dele; contra os que o acusam de graves violações éticas cometidas no período de luta de emancipação nacional e por sistemáticos atentados ao direito e à legalidade enquanto chefe de Estado. Dizem ainda que a mais aberrante das acusações com que o pintam é a de ditador, uma vez que destruiu os últimos resquícios de liberdade existentes em Angola antes da Independência e que instituiu uma cultura totalitária e de violência sobre os cidadãos.

De acordo com a razão dos seus sectários, nenhum destes absurdos resiste à contraprova da história que mostra o presidente desde muito cedo [nos tempos de estudante de Coimbra e em Lisboa] um activo paladino dos valores democráticos e um defensor das causas da paz no mundo, pelos quais, de resto, veio a expiar às mãos da PIDE. Mercê da sua coerência de pensamento, mercê do seu elevado grau de humanidade para com os companheiros de luta, a quem sempre reservou uma palavra de alento, e mercê especialmente da sua certeza na vitória final, foi possível chegar ao glorioso dia da Independência nacional.























[Em] A Sacralização de um Déspota, julgo ter exposto com a máxima clareza e com factos históricos concretos o verdadeiro rosto deste político. Os seus glorificadores, ao invés, vão mais longe e repudiam as minhas asserções, carimbando-as de meros equívocos ditados, segundo eles, pelo ressentimento que me vai na alma por causa do 27 de Maio. É lícito perguntar: que equívocos escrevi eu que não possam ser testemunhados por ex-dirigentes que lidaram de perto com o "rei" e vieram a ser alvo de expurgos ao tentarem contestar a excessiva concentração dos seus poderes?

(...) que argumentos aduzi eu que não possam ser histórica e documentalmente confirmados sobre o que foi a conduta do "grupo de amigos" e áulicos de Neto que, com inteiro conhecimento deste, reduziram outros militantes, desde os tempos da guerrilha, a processos inquisitoriais, os mais ignóbeis? Que disse eu estar em contradição com o falar de milhares de cidadãos anónimos de Luanda, Malange, Carmona, Moxico, Bié e Benguela que, a seguir à Independência nacional, foram brutalizados e ainda hoje se calam por medo? Se houve o 27 de Maio e se fuzilaram tantas pessoas inocentes e se mantiveram outras ilegalmente encarceradas em campos de trabalho e em prisões, como poderia eu declarar o contrário sem mentir?

Alguns desses campos serviram, como é sabido, de depósitos de morte. Os métodos de assassínio aí praticados revelaram-se, é certo, pouco dispendiosos na medida em que bastava crivar as vítimas de balas e regar os seus corpos com amoníaco antes e a seguir enterrá-las. Um dos maiores campos foi o de Kalunda, no Moxico [distante da capital da província 800 km], inicialmente concebido como campo de trabalho. Era circundado por uma alta vedação de arame farpado, por guaritas e holofotes. Segundo testemunhos recolhidos, ao centro ficavam

[...] os dormitórios e a cantina, a cozinha, a sanita ao ar livre, o cheiro nauseabundo dos esgotos [misturava-se] com o odor forte dos cadáveres em decomposição. Depois, um pouco separado do resto do campo, a casa do chefe e do seu adjunto, que dispunham [...] de poder [...] de vida e de morte [sobre os presos].

Para despejar os intestinos ou a bexiga os prisioneiros iam ao ponto de se humilhar, tinham de pedir licença aos guardas; estes autorizavam ou não consoante o seu estado de humor. As matanças ocorriam diariamente, às dezenas. Abatiam-se as vítimas a tiro ou enterravam-nas vivas dentro de valas abertas por elas próprias. O principal agente carniceiro era um tal Mainga, responsável do campo, que se fazia acompanhar nessas orgias de sangue pelo seu adjunto, João Negro. Calcula-se terem perdido a vida em Kalunda cerca de 15.000 pessoas, entre civis e militares, todos do MPLA. Até adolescentes se sacrificaram, sendo de recordar a figura de António Ambriz, de quinze anos de idade -, o qual, segundo os seus assassinos, se tornara culpado em virtude de, num comício, não ovacionar Agostinho Neto com o necessário fervor.








































Mas adiante mais uma vez: que disse eu da destruição económica do país que possa estar em contradição com o que os economistas mais abalizados e probos não tenham já analisado?

(...) No fim de contas o que restou dessa deificação revolucionária - de confisco e expropriação de terras, fábricas e outros bens dos antigos colonos - traduzia-se em menos direitos para a colectividade humana, que se via assim acorrentada, sem nenhuma opção individual de escolha, a um cabaz de compras garantido todos os meses pelo Governo. A quantidade de comida distribuída beneficiava toda a gente por igual, quer se tratasse de uma família de duas pessoas, quer de oito, situação que trazia a população presa aos aguilhões da fome. De posse de uma ração tão escassa, os consumidores eram obrigados a recorrer ao mercado negro, ao passo que os principais dirigentes políticos, e até ministros e comissários, recebiam nas suas casas todas as semanas provisões opulentas de carnes, peixe, ovos, frutas importadas, verduras e vinhos de mesa das melhores marcas, além de whisky e bebidas licorosas. Recordo-me de entrar um dia na residência de um governante em Benguela e, perplexo, não saber se me encontrava numa sala de estar ou numa adega, tal a profusão de garrafas de whisky [da melhor qualidade] espalhadas pelo aparador e outros móveis. Comia-se à tripa-forra. Lá fora o povo formava filas intermináveis para conseguir um pedaço de pão.

Além disso, a deificação revolucionária na Angola de Neto traduzia-se numa maior concentração da propriedade privada dos meios de produção e de troca nas mãos dos novos senhores vindos da guerrilha. A fim de zelar por esta apropriação e esbater o alcance de tamanho crime contra o interesse público, criou-se um sistema rígido de controlo sobre toda a sociedade; aparelhou-se o Estado com uma burocracia tentacular cuja função era espiolhar os mínimos gestos dos cidadãos. A melhor caricatura desta burocracia e do seu papel omnipresente repousa no seguinte exemplo: ninguém podia deslocar-se de uma província para outra ou de uma cidade para outra, a menos que estivesse superiormente autorizado e munido de uma guia de marcha. Infringir tal norma acarretava prisão.

(...) Ao maquilhar-se Neto com as cores de um novo "revisionismo" pós-estalinista, pretende-se apresentá-lo como um construtor exemplar do Estado pós-colonial, um estadista preocupado com as "camadas mais exploradas" e ainda um amante da liberdade e da democracia. Ou seja, um indivíduo de esquerda e inspirador de políticas impregnadas de princípios humanitários.






Chegada de um contingente de cubanos a Angola


(...) Esta liturgia em torno das suas qualidades superiores é falsa e, acima de tudo, imoral quando se tenta humanizar a sua figura e o seu regime. Como é possível colar a Neto a imagem de humanista quando sob o seu império, e em nome da utopia socialista, se pulverizaram todos os axiomas de justiça e se ofereceu ao país o espectáculo da morte, da ruína e da barbárie? Pelos vistos, os seus aduladores desconhecem ou desprezam deliberadamente o que aconteceu no segundo semestre de 1976, quando um corpo de expedicionários cubanos, auxiliado por tropas angolanas, devastou povoações inteiras no Huambo, no Moxico e no Bié e sacrificou cerca de 150.000 pessoas. Esta acção militar ficou conhecida pelo nome de código Operação Tigre. Matar em Angola, como lembra o jornalista cubano Ulises Carbó Yániz, equivalia a uma façanha desportiva:

Aldeias inteiras desapareceram alegremente passadas a ferro e fogo pelos chamados "neocolonialistas" cubanos, representantes dos interesses pan-africanos da União Soviética, que ocasionaram o saque e o assassinato colectivo mais intenso e silencioso de que há memória na história do Continente. Ali também se experimentaram as primeiras armas bioquímicas. Às mais remotas aldeias arrasadas pelos castristas sequer chegaram os repórteres. Nem a CNN, nem a Associated Press, nem os serviços internacionais da Reuters ou da Interfax. Só a morte campeava. Um genocídio quase oculto, que terá de passar à história. Os generais de Castro apoderaram-se das minas de diamantes, do marfim e dos elefantes desmembrados [...].

Isto não é tudo: contra inúmeras aldeias usou-se o napalm, confirma o etnólogo cubano Carlos Moore, e foi tanto o sangue vertido por civis inocentes que milhares de soldados caribenhos enlouqueceram. Lamentavelmente, estes crimes de lesa-humanidade não estão certificados pela Amnistia Internacional e por outros grupos internacionais defensores dos direitos humanos.

(...) Neto descuidou da sua missão primordial que seria governar para a pluralidade, ou seja, para todas as vertentes do país e não para os da sua família partidária. Uma das suas primeiras disposições foi abolir todas as formas de associação sindical livre e impor um sindicalismo de cunho partidário. As estruturas da Igreja Católica em todas as arquidioceses, dioceses e paróquias foram atacadas pelo MPLA, sendo os seus padres molestados e as suas instalações e oficinas confiscadas.

Veja-se o caso da Rádio Ecclesia. O seu silenciamento ocorreu em 1978. Para a Igreja Católica angolana este facto representou inegavelmente um dos momentos mais fatídicos nos dezasseis anos a seguir à Independência nacional, já que durante este largo período ela viveu desterrada num "silêncio forçado e vigiado" e privada de meios para fazer ouvir a sua voz a favor da paz. O processo de devolução das suas estruturas, que incluía tipografias, só viria a ter lugar na década de 1990, se bem que até hoje ela continue a ser objecto de tácticas intimidatórias por parte do regime do MPLA.















(...) O MPLA, com efeito, colocou-se nos antípodas de tudo quanto havia proclamado no tempo da luta de emancipação, isto é, de que "[...] na Angola independente haveria lugar para todos os credos religiosos". Uma promessa indecorosa que os altos responsáveis do Movimento à partida não se dispunham a cumprir; somente os movia a preocupação de mobilizar as massas rurais e "[...] destruir nelas os preconceitos e os mitos". Destruição, entenda-se, exercida por métodos de força. Nem a actividade missionária nas aldeias, nomeadamente a assistência aos camponeses necessitados, escapou à cegueira do regime político, ao submeter as populações à sua "verdade" e ao seu pétreo controlo ideológico. Além de ameaçar, prender e espancar sacerdotes, a polícia secreta de Neto também os raptava. Idênticas violências se moveram contra outras confissões religiosas distintas do catolicismo. E também contra os grupos de consciência.

As Testemunhas de Jeová são, porventura, dos exemplos mais marcantes de uma minoria que experimentou sofrimentos inauditos. Por defenderem uma posição ética de rejeição da guerra e se negarem a alistar nas Forças Armadas, as instituições do poder perseguiram-nas implacavelmente, não lhes reconhecendo o direito à protecção física cidadã nem à liberdade de crença. As atrocidades cometidas pela DISA, a polícia secreta, e pelos demais corpos policiais, incluindo as milícias da ODP, são inenarráveis. Cada vez que esta última corporação descobria um prosélito daquela comunidade cristã não-trinitária, golpeava-o com facas e catanas e lacerava-lhes as carnes e as vestes. Em 1977 a penitenciária de São Paulo, em Luanda, acolheu uma centena e meia destes presos de consciência que foram submetidos às mais bárbaras condições carcerárias. Em menos de vinte e quatro horas despojaram-nos de toda a sua humanidade: torturaram-nos com uma malvadez insana e reduziram-nos a sangue e a farrapos. Além de os obrigarem a comer em latas imundas, impediam-nos de cuidar da higiene corporal. Pareciam espectros, tal a imundície que os cobria. Por fim, uma noite embarcaram-nos em camiões da Polícia de Fronteira e levaram-nos para a morte.

(...) Apenas a Igreja metodista Unida se salvou destas perseguições. Sem qualquer dúvida, uma benevolência do regime. Primeiro, devido à formação protestante de Neto; segundo, devido ao auxílio prestado pelas igrejas protestantes dos Estados Unidos ao MPLA no período da luta armada; terceiro, devido aos gestos de servilismo do seu bispo, Emílio Júlio Carvalho, naturalmente propenso a deleitar o ego do príncipe.

Os poucos jornais que sobreviveram depois da Independência acabaram por ser encerrados e apenas sobrou o Jornal de Angola, de imediato transformado em orgão de propaganda do aparelho do Partido e do Governo. A delação e a vigilância sobre os mínimos gestos dos cidadãos tornaram-se traumáticos e todos os dias a televisão e a rádio expeliam ameaças contra os que apelidavam de "reaccionários" e"bandidos ao serviço do imperialismo internacional". Vivia-se um clima social de permanente intimidação e censura a todos os níveis, bastava pronunciar uma palavra tida por oficialmente heterodoxa para se ser crismado de "inimigo do povo" e preso. A ração de terror era tal que até, em assembleias alargadas do MPLA, os militantes [mesmo discordando de directivas superiores] se calavam por medo. Um dia, um alto dirigente tentou espicaçar este medo, dizendo: "Falem, falem que ninguém vos prende".

Passividade e resignação perante todo o tipo de desumanização, eis numa palavra o que se sentia no reino de Neto. (...) O terrorismo de Estado, com todo o cortejo de prepotências e homicídios, trazia os súbditos escravizados ao jugo do MPLA; possuídos de um espírito maligno, os dirigentes tentavam reduzir ou alterar a consciência dos homens.

















Ver aqui

















































Umas das lições primordiais de Nelson Mandela está condensada no seguinte pensamento: "um nobre desígnio não se pode almejar por meios ignóbeis. Processos práticos, sim, venais, nunca"».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«O historiador angolano Carlos Pacheco escreveu numa obra publicada em 2000:

Com efeito, no campo da Kibala, no Kuanza-Sul, chegou a preparar-se naquele ano [1977] com valas previamente abertas, o extermínio de quadros técnicos angolanos - médicos, engenheiros, professores e outros -, todos partidários activos do MPLA. Outros jovens passaram também por esse campo, alguns deles portugueses, que não sendo embora militantes daquela facção política, tomaram partido por outros grupos de esquerda, aparentemente autónomos. Também eles suportaram sofrimentos indescritíveis até serem libertados em 1980, sem que jamais as autoridades portuguesas tivessem esboçado qualquer gesto para os resgatar ou minorar a sua situação.

Conheci-o num calabouço infernal angolano. Falei com ele num dos piores períodos da minha permanência nas prisões angolanas, aquele em que fui violenta e repetidamente interrogado e torturado. Recordo bem aquele dia em que estava a conversar com Carlos Pacheco à porta da cela quando apareceu um grupo de soldados gritando com ar de gozo o meu nome. Pensei tratar-se de uma brincadeira, mas o Carlos avisou-me de que aquilo era para ser tomado a sério.

Fui levado para uma sala de interrogatório onde estava o agente Carmelino e o torturador Limão. O cenário era brutal. Ainda estavam lá o Manuel Campos e o Fernando Correia. O calibre da pancadaria era tal que as suas cabeças feridas pareciam agora ter o dobro do tamanho. Tinha chegado a minha hora. Foi uma hora eternizada de agressões múltiplas com um cano estriado. Cada golpe inundava o meu corpo de sangue e hematomas - a camisa azul que o Costa me tinha dado ficou em farrapos.






Américo Cardoso Botelho na prisão



Fiquei em tal estado que já só pude falar com o Carlos Pacheco no dia seguinte. A propósito do que me tinha acontecido, Carlos Pacheco referiu-se a um episódio da sua estadia ali na Cadeia de São Paulo. Chamaram-no ao Comando. O capitão Carlos Jorge estava lá para o receber. Carlos Pacheco pensou que a gentileza do acolhimento o livrasse do pior, mas bastou uma resposta não esperada para o verniz estalar. Carlos Jorge ordena a violência. Os torturadores de serviço despejaram-lhe nas nádegas e nas costas violentos golpes com uma barra de ferro. Deixaram-no descansar um pouco, para depois avançarem com um cavalo-marinho, vergastando todo o seu corpo.

Estas narrativas de violência, mesmo se as razões da nossa prisão correspondiam a histórias diversas, irmanavam-nos no juízo de que estávamos perdidos nas entranhas de um regime que repetiu durante anos crimes contra a humanidade.

O Natal de 1978 coincidiu com um período de encruamento das acções repressivas. O famigerado Pitoco veio a São Paulo tratar, pessoalmente, do caso de alguns ocas. Soube que nesses interrogatórios estiveram presentes: o Pereira, o Gunga, o Inácio e Onambwe. O insuportável começou no dia 23 de Dezembro, mas a noite de 24, véspera de Natal, foi a das maiores barbáries. Vi regressarem às celas corpos de jovens com o tronco cilindrado pela mais indescritível violência, a carne viva, banhada em sangue; os rostos amassados pela violência torpe dificilmente se podiam identificar; alguns traziam os testículos com marcas de queimaduras.

E ali ficavam pelas celas, gritando as suas dores, sem qualquer auxílio. Da vizinhança não podiam esperar ajuda pois, em muitos casos, os próximos padeceriam do mesmo. Aos outros, situação em que estava incluído, estava vedada a possibilidade de entrar naquele corredor da morte. Como tinha a porta da minha cela aberta (Vasconcelos, enfermeiro que dormia ao meu lado, tinha convencido o Comando de que sofria de claustrofobia) pude, no entanto, ver as vítimas carregadas pelos "conduzes". Vasconcelos ao meu lado, não se atrevia sequer a voltar a cabeça na direcção da porta, paralisado de medo.


(...) No dia 4 de Março de 1978, chamaram ao Comando todos os portugueses que estavam em São Paulo. Os agentes queriam comunicar a nova acerca da próxima libertação dos portugueses, em consequência de um acordo entre o Estado angolano e o Estado português. Queriam por isso identificar-nos com precisão e conhecer a relação dos nossos bens em Angola. O fito era claro, a apropriação. Mas estas intervenções junto dos portugueses mudavam frequentemente de tom.


































Luanda (1971). Ver aqui





Luanda (Avenida dos Combatentes)



Não muito tempo depois, também em São Paulo, no dia 23 de Março de 1978, mais uma vez, as minhas notas quase me condenavam definitivamente. Os soldados tinham sacado às suas celas praticamente todos os portugueses. Empurraram-nos até ao Comando para renovar um recado já conhecido: "Vocês não podem escrever papéis... ouviram? E não se esqueçam que quando forem embora ainda cá ficam outros portugueses!", vociferava o tenente Miranda.

Um outro agente, cujo nome não sabíamos, acrescentou: "O Mário Rui, o português que saiu daqui de São Paulo há pouco tempo, foi um ingrato. Aqui foi tratado com todos os privilégios, mas quando chegou a Portugal foi logo dizer mal desta merda". Um riso surdo atravessou os nossos olhares, porque estas palavras finais nos pareciam bem expressivas.

Em causa parecia estar a circulação em Portugal de informações sobre as cadeias angolanas, mas não chegámos a apurar o conteúdo dessas notícias e onde teriam sido publicadas. Temi que a vigilância sobre as escritas se tornasse mais apertada.

(...) Kundi Payama teve à sua responsabilidade os Ministérios da Segurança e do Interior. Nessa qualidade visitou, no dia 15 de Dezembro de 1979, a Cadeia de São Paulo. Naquela época, São Paulo era uma espécie de Babel onde se cruzavam proveniências muito distintas: portugueses, ingleses, americanos, sul-africanos, um italiano, zairenses, tanzanianos, nigerianos, são-tomenses, entre outros. Ao todo, posso afirmar com segurança ter conhecido nas prisões angolanas presos de vinte e oito países.

(...) Todo este livro fala de uma geografia do terror. As prisões angolanas tinham-se tornado um microcosmo onde se encontravam os rastos de um holocausto que incinerou o território angolano. Algumas províncias por razões estratégicas e étnicas foram particularmente violentadas.

Visitei Cabinda, pela primeira vez, em 1961. A província de Cabinda, abrangendo todo o enclave de Cabinda, era habitada, na altura da independência, por povos banto da tribo Bakongo, provenientes do antigo Reino do Congo. A sua riqueza, num território de 7283 quilómetros quadrados, era bem conhecida, o petróleo, a floresta do Maiombe. Foi pela mão dos padres do Espírito Santo que conheci o Sr. António Manuel Zebi Madeka, pai do Bispo Resignatário de Cabinda, D. José Paulimo Madeka, ao tempo padre em Landana. O "pai Madeka", assim o chamavam, era o melhor conhecedor da sabedoria cabinda, como se reconhece na obra Sabedoria cabinda, símbolos e provérbios (1968).

Mas este povo de tão ricas tradições conheceu de forma muito particular as agressões da política do MPLA, apoiada na força cubana. Hoje, não há um cabinda que não tenha na família um caso de perseguição política, de desaparecimento, de atentado, ou de prisão.

O MPLA e as forças militares que o apoiavam assaltaram o Quartel-General do governo colonial, em Cabinda, no dia 2 de Novembro de 1974. Foi aliás necessário enviar de Luanda um avião para libertar o brigadeiro Themudo Barata, sequestrado em tais circunstâncias. Como conta João Coito em crónica jornalística, a despedida do brigadeiro teve, entre as emoções, qualquer coisa de profético:

"Como não sentir o abraço final que lhe deu Gaspar, serviçal do palácio com nome de rei mago, a murmurar-lhe ao ouvido: 'Não vá, não vá, senhor general, que nos matam a todos, não vá, salve-nos...' Súplica profética que deixou os dois homens de lágrimas nos olhos".










(...) O nome dos cubanos misturava-se também com os acontecimentos ligados às represálias do 27 de Maio. Neste caso a notícia vinha pelo português Oliveira e dizia respeito a um Major cubano, o Gamboa. Tinham chamado de urgência o Oliveira ao Comando para fazer uma qualquer reparação. Foi nessa altura que foi confrontado com a cena: o cubano tinha as mãos à volta do pescoço do torturado, apertava-o e abanava-o até ao sufoco, enquanto o tenente Pereira carregava de socos o estômago do desgraçado. O Major ficou um pouco hesitante quando viu o português, mas não o suficiente para pôr termo à sessão de pancadaria. Segundo o relato de Oliveira, o preso saiu dali já mais morto que vivo. Foi metido dentro de uma daquelas ambulâncias de má reputação, essas que levavam os presos para os lugares de fuzilamento ou para qualquer outro sítio de execução sumária.

O Rosa descreveu-me várias situações de despacho para a morte. Depois de bem amassados, já quase nus, apenas com umas cuecas, eram enfiados na ambulância (de triste memória, mas ainda assim lembrada até em pormenores como o da marca e da matrícula - Volkswagen, AAI-88-42 -, que bateu certamente o recorde do transporte de condenados ao fuzilamento).

(...) Foi pelas palavras de Rui Castro Lopo que, pela primeira vez, ouvi falar neste enfermeiro do Hospital Maria Pia de Luanda, homem para uns cinquenta anos, filho de portugueses que nunca tinham visitado Portugal, preso e torturado na Casa de Reclusão. Segundo Castro Lopo, os seus bens eram o alvo principal, e já havia destinatário certo: o agente França. Contava-me ele que ainda tinha passado um mau bocado por causa das palavras que usou para tentar defender o que lhe pertencia: "para roubar não é preciso bater".

Muitos destes casos terminavam com a expulsão para Portugal, estratégia usada para que fosse mais fácil repartir os bens mais valiosos e as casas. Depois de expulsos, perdiam os bens, ao fim de quarenta e cinco dias, que tinham deixado em Angola. Como, antes disso, não havia qualquer possibilidade de a Embaixada conceder o visto de entrada, não havia entraves ao saque.

Este caso aconteceu em 1976. Em Outubro desse ano Castro Lopo passou para São Paulo e deixou de ter informações muito precisas acerca daquele enfermeiro: uns diziam que estaria à beira da loucura, outros que já teria sido expulso para Portugal.

(...) A desfiguração do inimigo é, desde há muito, uma estratégia de implementação da violência - é mais fácil agredir alguém que foi desfigurado e a quem se retirou o estatuto de humanidade. A esta observação corresponde um dos casos narrados por Kilombelombe.

No contexto do confronto entre o MPLA e a FNLA, foi divulgada a notícia de que teriam sido encontrados corações humanos nas casas abandonadas pelos membros da FNLA, em Luanda - muitos destes estavam na capital angolana dando cumprimento a alguns dos aspectos dos acordos de Alvor. O alarme foi dado pelo MPLA, com ampla divulgação, esperando, com a suspeita de antropofagia, horrorizar a população. Ora, a verdade veio a ser revelada pela denúncia que uma médica portuguesa da maternidade de Luanda não pôde calar. Fernanda Sá Pereira - casada com um engenheiro português cuja identidade não descobri - sabia que os corações tinham sido roubados dos frigoríficos dos hospitais, gesto de uma desumanidade impensável, pois, naturalmente, comprometeu o uso desses orgãos para fins terapêuticos.






















A frontalidade de Fernanda Sá Pereira valeu-lhe a prisão e, pouco tempo depois, a morte - foi enterrada no campo da Sapu. No dia 15 de Dezembro de 1979, falei sobre este caso com o Ramos, que conhecia bem o local onde tinha sido enterrada aquela médica e me confirmou a notícia de que tudo aquilo não tinha passado de uma manobra do MPLA, informação igualmente corroborada pelo Vasconcelos.

Pelo que pude anotar, também o padre Leonardo Sikufinde terá tido conhecimento destes factos. Comentava-se que ele tinha protestado de forma clara contra a injustiça que havia conduzido à morte aquela mulher e contra o boato infame que o MPLA tinha fabricado para denegrir os fnlas.

Kilombelombe, por sua vez, adiantou mais informações: que cabia a Hélder Neto - esse alto funcionário da DISA que se suicidou a 27 de Maio de 1977 -, coadjuvado por Carlos Jorge e Pitoco, a responsabilidade desta morte iníqua; mas que a ordem para o roubo dos orgãos humanos teria sido dada pelo próprio Agostinho Neto, mentor de toda a operação».

Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).


(...) Apesar de Angola respirar um clima de paz militar, nos últimos tempos passam-se ali coisas tão estranhas que a minha esperança de começar a ver o país a reconciliar-se consigo próprio e em liberdade permanece toldada de incertezas.

(...) Angola, infelizmente, está muito doente nas suas entranhas, em parte talvez por responsabilidade das suas elites políticas e culturais que se revelam incapazes de responder aos desafios vitais de como construir um Estado democrático e moderno. Quando seria de esperar nesta etapa do percurso histórico nacional uma lenta e firme aplicação de políticas liberais tendentes a reforçar e a tornar coesas as diversidades societárias [por alargamento da base de partilha de direitos entre os cidadãos], o que se vê é exactamente o oposto. Deparamo-nos com práticas que, de uma forma ou doutra, põem em causa modos de coexistência e de solidariedade entre comunidades e culturas distintas, tendência que, a continuar, acabará por ferir de morte direitos fundamentais dos indivíduos e, acto contínuo, provocará fracturas na possibilidade de unidade nacional.

São responsáveis por esta situação grupos políticos e sociais [com peso significativo na sociedade angolana] que não se cansam de forma subreptícia de apregoar na imprensa, por recurso a porta-vozes especialmente escolhidos, que os nativos de cor negra finalmente detêm a primazia sobre os indivíduos de pele mais clara no preenchimento dos lugares de maior proeminência no aparelho do Estado; e que o acesso às funções de presidente da República e primeiro-ministro deve naturalmente constituir um privilégio reservado aos "angolanos verdadeiros" [entendidos como sendo os naturais dos grupos étnicos dominantes]; enquanto os mulatos, incorporados no Estado [pois de brancos nem se fala], se devem contentar com direitos subalternos.















Estou pessimista e não vaticino nada de edificante nesta cruzada étnica absolutista contra as comunidades minoritárias em que sequer se poupam já figuras históricas da luta de libertação, embora o fenómeno não seja propriamente uma novidade. Depois da Independência nacional esta corrente ideológica - que tem na teoria da raça e da etnia o seu principal pressuposto - ganhou novos matizes e, nos anos mais recentes, cresceu com um ímpeto renovado. Os seus adeptos, talvez menos constrangidos pela política do Partido no Poder que num passado recente impunha algumas censuras a tudo quanto fossem manifestações explícitas de segregacionismo, hoje não escondem querer para Angola uma identidade histórica única, a das maiorias, que consideram ter-se interrompido com a colonização. Ou seja: sonham com um Estado nacional negro, genuíno. De acordo com a sua concepção identitária, a pátria é uma realidade assente na raça negra ou pertença exclusiva do povo negro, razão por que só aos cidadãos desta cor compete arquitectar o futuro do país e estruturar a sua cultura e identidade nacional.

Os gérmens modernos deste "mito narcisista da negritude", para usar o conceito de Homi Bhabha, remontam ao período de insurgência nacional contra Portugal (1961-1974), durante o qual nenhum dos movimentos de guerrilha - MPLA, FNLA e UNITA - ficou imune aos abalos provocados pelos atavios da pureza racial e étnica e pelo preconceito sobre as minorias. A FNLA terá sido porventura a organização que mais sofreu em defecções e perseguições [de mulatos e também de negros], justamente por causa do seu pendor genético fortemente regionalista. A UNITA, por sua vez, desde o início impôs um dique à entrada de pessoas de tez clara e empenhou-se em campanhas de detracção contra o MPLA, classificando este agrupamento de "associação de brancos e mulatos vendidos à URSS".

Ainda assim, nem o próprio MPLA, o mais plural e híbrido na sua composição cultural, deixou de enfrentar verdadeiros focos de agitação étnica e tribal, sobretudo na 3.ª e 5.ª Regiões [Frente Leste]; a tal ponto que as etnias do Centro e Sul de Angola acusavam a direcção de chamar para os cargos de cúpula pessoas de extracção euroafricana ou pessoas de etniabakongo. O próprio Lúcio Lara, figura de topo da estrutura do poder, durante a luta armada foi alvo de forte contestação por parte de chefias guerrilheiras adstritas à Frente Norte [2.ª Região] que intentaram desacreditá-lo, apodando-o de descendente de portugueses e afirmando que ele jamais iria travar a luta de libertação até às últimas consequências em virtude de não estar disposto a virar-se contra os próprios progenitores. Os conflitos interétnicos atingiram, deste modo, uma tal dimensão no final da década de 1960 que o fenómeno acabou por provocar a desagregação da luta armada na Frente Norte e também na 2.ª Região [Cabinda]. Os guerrilheiros do Norte queixavam-se de todo um somatório de injustiças que os atingiam, desde acusarem-nos de serem pouco devotados à causa de libertação nacional, assim como agentes da FNLA».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«Quando a Nação portuguesa se foi estruturando e estendendo pelos outros continentes, em geral por espaços livres ou desaproveitados, levou consigo e pretendeu imprimir aos povos com quem entrara em contacto conceitos muito diversos dos que mais tarde caracterizaram outras formas de colonização. As populações que não tinham alcançado a noção de pátria, ofereceu-lhes uma; aos que se dispersavam e desentendiam em seus dialectos, punha-lhes ao alcance uma forma superior de expressão - a língua; aos que se digladiavam em mortíferas lutas, assegurava a paz; os estádios inferiores da pobreza iriam sendo progressivamente vencidos pela própria ordem e pela organização da economia, sem desarticular a sua forma peculiar de vida. A ideia da superioridade racial não é nossa; a da fraternidade humana, sim, bem como a da igualdade perante a lei, partindo da igualdade de méritos, como é próprio de sociedades progressivas».

Oliveira Salazar («Portugal e a Campanha Anticolonialista», SNI, Lisboa, 1960).




















O "Gulag Angolano"

Aliás, note-se que, no 11 de Março de 1975, o PCP já tinha enviado funcionários, quadros e militantes para Angola na sequência de uma situação francamente favorável às forças portuguesas no período anterior à revolução comunista de 74. Por outras palavras, a entrega do Ultramar Português acabou por ser exercida por forças revolucionárias que compeliram à deserção dos militares nas três frentes de combate: Guiné, Angola e Moçambique. De resto, ressaltam alguns elementos particularmente relevantes em Segredos da Descolonização de Angola, de Alexandra Marques. Vejamos alguns deles:

1. O número de mortos em Angola, contabilizados a partir de 4 de Fevereiro de 1961, fora de 3 423, «menos de metade dos quais em combate e, entre estes, a maioria por rebentamento de minas. E não menos importante é o facto de que, após o 25 de Abril de 1974, terem morrido, entre Maio e Agosto do mesmo ano, mais soldados portugueses do que durante todo o ano de 1973 (16).

2. A entrega de armamento português ao MPLA e à UNITA (17) fora autorizada por Lisboa.

3. A entrega de Moçambique dera-se com base numa proposta redigida «pelos dirigentes da Frelimo (Joaquim Chissano e Óscar Monteiro) e por Almeida Costa, na última noite, no seu quarto de hotel com uma garrafa de conhaque». Aliás, Melo Antunes foi quem, efectivamente, delegou em Almeida Costa a tarefa de pôr por escrito a transferência de poderes para a Frelimo prevista e realizada de 7 de Setembro de 1974 a 25 de Junho de 1975 (18).

4. O descontentamento fora bem evidenciado pelos portugueses quanto à descolonização de Moçambique. Segundo o sector de Comando de Huíla das FAP, as «Forças Armadas e membros do governo provisório são repetidas vezes insultados e apelidados de “traidores” e acusados de “estarem a vender Portugal”» (19).

5. A expulsão dos trabalhadores bailundos do norte de Angola tivera por objectivo paralisar a economia e a presença portuguesas (20).

6. Incidentes terroristas no norte e leste de Angola foram cometidos contra a vida e os bens dos portugueses: tiros, catanadas, espancamentos, assaltos a fazendas, vandalização e destruição das fontes de riqueza, dispersão e depredação de instalações, saques, emboscadas, assassinatos, barragens nas estradas e entradas furtivas em residências habitadas, roubos de viaturas, sanzalas saqueadas e destruídas, apedrejamentos, mulheres brancas violadas, pessoas alvejadas, rebentamentos fortuitos de granadas e explosões de morteiro, banditismo e todos os actos de barbárie inimagináveis (21).










































Fila para comprar bilhetes na TAP em Luanda

















7. A entrada de movimentos armados em Luanda partira da autorização do almirante Rosa Coutinho: «E autorizei mais: cada um, para se sentir em segurança, se fizesse acompanhar por uma delegação, uma força militar que não poderia exceder 600 homens, o que já era bastante». Despoletara assim o «terrorismo urbano» exemplificado no seguinte trecho: «Chefiada por Wilson dos Santos, a delegação da UNITA chegou (...) domingo (10 de Novembro), sendo esperada por milhares de pessoas, incluindo uma “elevada percentagem de brancos”. A festa começara na véspera “com largas dezenas de automóveis que percorreram a cidade durante toda a noite, precedidos de outras tantas motorizadas, buzinando insistentemente, soletrando com os sons da buzina U-NI-TA”. Quando o avião proveniente do Luso parou na pista, uma mancha humana rodeou o aparelho por todos os lados “transformando-o numa pequena ilha naquele mar imenso de gente, com bandeiras e posters com o rosto de Savimbi”. “Formou-se depois um cortejo imenso que, durante várias horas, percorreu a cidade, agitando bandeiras da UNITA. Antes da chegada da comitiva, os apoiantes da UNITA foram atacados. Na Avenida de Lisboa e em direcção ao aeroporto verificaram-se correrias desordenadas das pessoas em todos os sentidos”. Fugiam das “agressões à catanada e das ameaças” dos que tentavam impedir a multidão de chegar ao aeroporto. Foram ouvidos tiros de pistola, ocorreram “os já rotineiros apedrejamentos de viaturas” e foram erguidas barricadas “na estrada do Catete, do Cucuaco e na Avenida do Brasil”. Nesse dia, Luanda foi submersa por uma onda de violência nunca vista. Tinha havido incidentes “no aeroporto, imediatamente antes da chegada da delegação da UNITA, [...] iniciados por elementos com braçadeiras do MPLA”, que negava serem “elementos seus”. A 365 dias da independência começavam os ventos de guerra que varreriam Angola nos meses seguintes. Desde o dia 10 confirmaram-se 26 mortos e 104 feridos. A violência alastrara a vários pontos da capital: “O clima de tragédia transformou Luanda numa cidade em estado de sítio, com barreiras em numerosas ruas, tiroteio cerrado em vários locais, correrias de ambulâncias, apelos a dadores de sangue, chamadas de médicos e de pessoal de enfermagem, transportes públicos paralisados, bairros isolados por razões de segurança, etc.”» (22).

8. Em encontros secretos e diligências confidenciais, os movimentos armados pediram financimento e apoio bélico aos Estados não-alinhados, aos membros da NATO e do Pacto de Varsóvia. E para «além das armas roubadas dos paióis do Exército português, os Movimentos apoderaram-se das que tinham pertencido à OPVDCA [Organização Provincial para a Defesa Civil de Angola], armazenadas em locais de fácil acesso e cuja localização era conhecida por todos. E foram recebendo quantidades maciças que chegavam por via aérea, terrestre e marítima. O armamento provinha do Congo, do Zaire e da Tanzânia e era destinado ao MPLA e à FNLA. A UNITA, sem apoios externos de relevo, solicitava a Portugal que lhe deixasse o armamento» (23).

9. Agostinho Neto recebia apoio financeiro da União Soviética, da Argélia, das nações árabes, da Escandinávia e contava com «alguns apoios prestados pela Europa do leste e da OUA [Organização de Unidade Africana]» (24).

10. Segundo o director para os Assuntos Africanos no Ministério das Relações Exteriores de Cuba em 1974 – mais tarde exilado nos EUA –, os soviéticos incrementaram o seu apoio ao MPLA nos últimos meses de 1974 (25).

11. Em 1974, Portugal chegara a investir no Ultramar seis milhões de contos «em ajudas não reembolsáveis» (26).













































12. Rosa Coutinho chegou a declarar que dera dez milhões de escudos mensais aos movimentos armados de Angola. «Em 1997, o Almirante justificou a mensalidade concedida nos seguintes termos: “Atribuí a cada um dos três movimentos um subsídio mensal de dez mil contos, equivalente a 200 000 contos actuais. Quem mais beneficiou com isso foi o MPLA, pois não tinha nada”» (27).

13. A existência de um anexo secreto ao Acordo de Alvor previa a detenção, julgamento e punição dos portugueses e angolanos que tivessem pertencido às organizações de segurança e de ordem pública. Por outras palavras, os movimentos armados decidiriam dos «casos merecedores de indulgência e os que simplesmente acabariam em julgamentos sumários, tribunais populares ou esquecidos nos calabouços das prisões» (28). Este acordo, assinado entre o Governo revolucionário de Lisboa e os movimentos terroristas de Angola no Algarve, em Janeiro de 1975, «não era “afinal mais do que a confirmação do protocolo de Mombaça”: traduzia o que os líderes angolanos tinham concertado no Quénia; os portugueses tinham sido vencidos à mesa das negociações» (29).

14. Uma vez desmanteladas as Forças Armadas Portuguesas, entrariam em Angola os armamentos e as hordas estrangeiras de zairenses, cubanos e russos disseminados e infiltrados em campos de treino espalhados pelo território. Aliás, como escreveu Savimbi: «A nenhum observador atento passara despercebido o desejo de supremacia que cada um dos ML procurava obter sobre os restantes. Daí a uma corrida ao armamento foi um abrir e fechar de olhos» (30).

15. O terror e a intimidação – transportes maltratados, acessos aos centros urbanos cortados, rezes esquartejadas, circuitos de comercialização destruídos, assaltos a operários nas fábricas, disparos sobre condutas de águas, ataques a hospitais, fuga de técnicos e saneamento de elementos válidos da administração pública – tiveram por finalidade a destruição total da economia angolana (31).

16. O tiroteio alastrara-se a inúmeras povoações distritais por meio de saques, pilhagens e edifícios destruídos. A cidade de Malange, por exemplo, «tornara-se um imenso cemitério a céu aberto: “Milhares de pessoas mortas, na sua maioria africanos, que estavam ainda insepultas quando se abandonou a cidade. O Batalhão apenas conseguiu enterrar numa vala comum com cerca de 100 metros, cobrir de cal viva ou queimar no local onde se encontravam, umas escassas centenas de mortos”» (32).

17. A tropa portuguesa, por ordens de Lisboa, agia no sentido de fazer o jogo do MPLA (33). A tropa portuguesa era simultaneamente desrespeitada pelos nacionalistas e pelos civis revoltados pela situação criada: «São constantes as solicitações, quer para actuarem como medianeiras, quer para colaborarem na segurança das inúmeras colunas que se formam sempre que há incidentes em qualquer local, para evacuar as populações desalojadas, para proteger a saída dos elementos dos Movimentos dos locais em que os confrontos não lhes foram favoráveis. O mais grave é que [...] são cada vez mais frequentemente vítimas de atitudes hostis que chegam à própria agressão física, o que atendendo à forte desmotivação em relação a um processo que lhes escapa pode ter graves consequências» (34).




Henry Kissinger


18. Os americanos, perante o pedido de auxílio feito por Lisboa para transportar os deslocados angolanos, exigiam a Costa Gomes que, para o devido efeito, pusesse fim ao governo comunista de Vasco Gonçalves. Caso contrário, nada feito, até porque, segundo Kissinger, os Estados Unidos não eram «uma instituição de caridade» (35). Aliás, o director do Gabinete de Informação e Pesquisa Americano, William Hylland, teria sido muito explícito ao afirmar que o «auxílio [americano] deve estar bem amarrado aos objectivos políticos pretendidos tanto em Lisboa como em Angola, do que ser ditado por puras razões humanitárias ou por receio do criticismo dos congressistas» (36).

19. De resto, a «Associated Press estimava que tivesse morrido em Angola 10.000 pessoas nos confrontos pelo controlo do território antes da retirada das autoridades portuguesas, segundo disse o embaixador americano numa cerimónia do Rotary Club, em Telavive. O repórter polaco em Luanda relatava que a cidade se tornara uma imensa lixeira fétida e pestilenta, onde o calor e a humidade aceleravam a decomposição dos detritos e dos animais mortos. “Não havia médicos nem um único hospital ou farmácia abertos”. E no quartel dos bombeiros não se via vivalma; os bombeiros portugueses tinham partido no final de Setembro [de 1975] e os únicos 30 elementos que tinham ficado embarcariam para Portugal na primeira semana de Outubro» (37).

Enfim, tudo se resumia a uma sangrenta herança que os revolucionários de Lisboa, em conivência com os movimentos terroristas, deixariam para a posteridade com milhares de mortos pelo caminho. E de uma herança que não viera tão-só do 27 de Maio de 1977, como querem fazer crer os co-autores de Purga em Angola. Demais, o retrato que traçavam em 2007 continua em muitos aspectos actual, a saber:

«Luanda apresenta-se aos olhos do visitante, conhecedor da cidade a partir dos postais do tempo colonial, como uma “cidade desfeita”. Nos prédios, os elevadores há muito deixaram de funcionar. E os dejectos, correndo ao longo das paredes dos prédios, abrem estranhos e tortuosos caminhos.

Como que somos transportados para um burgo medieval europeu. As ruas perderam o asfalto. E, em muitos lados, os esgotos correm a céu aberto.

Jovens e idosos vasculham nos caixotes do lixo à procura de restos de comida. Impressiona a miséria desmesurada, num contraste gritante com os carros de luxo dos últimos modelos, a passarem pelo meio de deficientes de guerra, de homens e de mulheres famintos, de dezenas de jovens em idade escolar carregando nas mãos produtos que tentam vender à força a quem passa.

Ilhotas de guardados condomínios de luxo são cercadas por um mar de muceques.

O lixo está por todo o lado, e a cidade parece não poder viver sem ele. No Roque Santeiro, filas dos mais variados produtos erguem-se num mar de lixo.










Angola (1999)





























Viana, em tempos um pólo industrial, está abandonada e decrépita. E nos arredores da cidade, Kifandongo, monumento da resistência, alberga pessoas a viverem nos buracos da falésia, numa miséria confrangedora.

Muitos dos “libertadores” sonhavam com a casa, o carro, os privilégios e as posições dos colonos. Conquistaram-nas e tornaram-se piores do que estes.

Desculpar-se-ão com a guerra. Só que a guerra, que tantos matou e estropiou, alimentou um punhado de pessoas, que se tornaram insultuosamente ricas.

(...) Num país com enormes riquezas naturais e com condições agrícolas que permitiriam alimentar toda a África, mais de metade da força de trabalho está desempregada e mais de dois terços da população vive abaixo da linha de pobreza» (38).

E que mais se poderia esperar se tudo já estava, eventualmente, previsto a 10 de Novembro de 1975, quando os chefes militares portugueses, depois de arreada a bandeira «com toda a pompa e circunstância», «entraram depois numa lancha que os levou ao paquete Niassa, onde esperaram pelo anoitecer: “Jantámos a bordo com os navios fundeados e, quando faltava um quarto para a meia-noite, âncoras para cima e começou-se a andar”. Em Luanda os tiros para o ar celebravam a independência, no Quifangongo a derrota infligida ao ELNA. Para Gonçalves Ribeiro era uma “imagem dantesca” a que se observava ao largo: balas tracejantes iluminando o céu de Luanda» (39). Dava-se assim o desfecho inglório da última guerra travada pelos Portugueses (40).



Notas:

(16) Cf. Alexandra Marques, Segredos da Descolonização de Angola, D. Quixote, p. 49. «Segundo a Associação de ex-Combatentes do Ultramar tinham morrido em África 11.000 militares e sido feridos 30.000. Os números oficiais ficavam muito aquém: teriam perecido 7.674 militares, a esmagadora maioria do Exército. Em Angola (entre Maio de 1961 e 30 de Abril de 1974), tinham tombado em combate 4.788 militares, dois terços dos quais naturais da Metrópole. Mais de 1.210 teriam falecido em acidentes e 255 por doença. Quase 28.000 combatentes metropolitanos tinham sido gravemente feridos, 4.472 dos quais em Angola» (ibidem, pp. 374-375). De resto, o major Vítor Alves também referira que «”o número de vítimas provocado desde Março [de 1975] em Angola já era superior ao causado pela guerra colonial naquela ex-colónia”. Ferreira de Macedo falara em 2.000 a 3.000 mortos, mas ter morrido durante três meses mais gente do que em 14 anos de guerra colonial era um termo pouco lisonjeiro para os nacionalistas» (ibidem, p. 320).









(17) Ibidem, p. 18.

(18) Ibidem, pp. 51-52.

(19) Ibidem, p. 69.

(29) Ibidem, p. 69.

(21) Ibidem, pp. 80-87.

(22) Ibidem, pp. 97-101.

(23) Ibidem, p. 141-142. Quanto à UNITA, as FAP chegariam a dar «”1.800 espingardas G-3, alguns morteiros, armas semiautomáticas e uma variedade de outro tipo de armamento, juntamente com tonelada e meia de munições de uma base do Exército nos arredores de Luanda”» (ibidem, pp. 320-321).

(24) Ibidem, p. 146.

(25) Ibidem, p. 150. «O MPLA beneficiava do “apoio de vários países comunistas: União Soviética, Jugoslávia e Checoslováquia através da Zâmbia, Tanzânia e do Congo”, concedido em armamento e em frequentes cursos de especialização: “A necessidade de aumentar a curto prazo a sua capacidade militar, a fim de fazer face à posição de força da FNLA, parece ter determinado uma nova aproximação do MPLA à URSS”, o que era comprovado pelo “recebimento de vários carregamentos de material de guerra provenientes não só da União Soviética como de outros países comunistas”, como a Jugoslávia e a Checoslováquia. A ligação excessiva a Moscovo poderia, no entanto, acorrentá-lo a “um enfeudamento demasiado pesado” e restringir a sua “independência política”, além de poder inibir o auxílio “de outros países que embora progressistas não querem ser aliados da URSS neste tipo de apoio”, referia a CCPA. Brazzaville (que pouco apoio lhe dera durante a guerra) “procurou a partir do 25 de Abril que [o MPLA] transferisse os seus efectivos para o interior de Cabinda”. O Congo continuava “a permitir o desembarque de material de guerra no porto de Ponta Negra” e que tivesse um “importante centro de treino em Dolisie”. A Tanzânia facilitava a passagem “de armamento e equipamento destinado ao Leste de Angola” e a Argélia era “uma espécie de mentor revolucionário do MPLA, proporcionando-lhe apoio político e diplomático”» (ibidem, p. 292-293).

(26) Ibidem, p. 149.










Assinatura do acordo que fixou a data da independência de Cabo Vede. Da esquerda para a direita: Mário Soares, Melo Antunes , Vasco Gonçalves, Pedro Pires, Almeida Santos e outros dois representantes do PAIGC.


(27) Ibidem, p. 160. «Em 1961 [o “Rosa Vermelha”] tinha sido preso pela UPA (liderada por Holden Roberto) e sujeito às mais ignominiosas sevícias. Almeida Santos justifica a “simpatia” do Almirante pelo MPLA não só devido às “afinidades ideológicas” com Agostinho Neto mas pelo profundo desdém que nutria pela FNLA: “Tinha sido aprisionado por soldados de Mobutu e tratado sem o mínimo respeito pelas leis da guerra que protegem os prisioneiros”. Capturado durante uma operação em curso na bacia hidrográfica no rio Zaire, foi passeado completamente despido pelas ruas. Dentro de uma jaula ou nu com uma corda ao pescoço – os entrevistados referem ambas as situações. A humilhação pública dos prisioneiros nativos capturados (despidos, de pulsos amarrados e atrelados por uma corda) era uma prática habitual das autoridades coloniais no Quénia e no Congo Belga. Os combatentes nacionalistas faziam, por isso, o mesmo aos seus prisioneiros. Preso por suspeita de espionagem ao entrar no Zaire sem visto, foi durante o cárcere sujeito a constrangedoras flagelações corporais.“Estive, quatro meses, preso. É claro que por vezes tive receio porque a minha vida esteve ameaçada. Fui exibido quase como uma presa de guerra pelas ruas... Foi humilhante e também foi uma lição que até teve consequências psicológicas”. Esta experiência justificaria (segundo Almeida Santos) que Rosa Coutinho sempre tenha aceitado “mal o risco de uma Angola sob a égide de Holden Roberto, cunhado do ditador Mobutu”. Orgulhava-se “de ter tirado Angola das garras de Mobutu”» (ibidem, p. 75).

(28) Ibidem, p. 210.

(29) Ibidem, p. 212.

(30) Ibidem, p. 218.

(31) Ibidem, p. 359.

(32) Ibidem, p. 388.

(33) Ibidem, p. 397.

(34) Ibidem, pp. 415-416.

(35) Ibidem, p. 419.

(36) Ibidem, p. 422.

(37) Ibidem, p. 482.

(38) Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, op. cit., pp. 184-185. Ainda sobre esta questão atente-se no seguinte: «A 17 de Agosto de 2012, num comício feito semanas antes das eleições, José Eduardo dos Santos admitia percalços na condução do país e fazia promessas. “Sei que a espera por esta Angola que vai crescer mais e distribuir melhor foi longa, mas de uma coisa podem estar certos: agora que vencemos a etapa mais difícil de reconstrução do nosso país, os novos avanços serão muito mais rápidos”.

As boas intenções do presidente de Angola são, contudo, questionadas pelos críticos. Um deles, porventura, o mais notório, tem sido o angolano Rafael Marques, jornalista, activista, director do site Maka Angola e autor do livroDiamantes de Sangue – Corrupção e Tortura em Angola (Tinta da China, Lisboa, 2012), que sem rodeios acusa o MPLA de saquear Angola para investir em Portugal. Numa entrevista publicada na edição de 16 de Setembro de 2011 do Jornal de Negócios, traçou um retrato demolidor do poder angolano. “O que se investe em Portugal não tem retorno em Angola. É um processo mais limpo para o Estado português, que facilita estas operações, embora grande parte delas sejam ilegais. As empresas portuguesas têm sociedades com dirigentes angolanos para investirem em sectores controlados por esses mesmos dirigentes, contra as leis angolanas e portuguesas e não há um caso único de abordagem legal sobre esta promiscuidade. Não há. E fazem-se grandes artigos, na imprensa portuguesa, sobre os luxos de Angola, sem pensar nos milhares de cidadãos que morrem à fome, porque não têm assistência básica ou educação, porque os recursos são desviados”.










Um analista político angolano, sob anonimato, acrescenta outros elementos. “O poder em Angola é unipessoal. Está concentrado em José Eduardo dos Santos, nos aspectos políticos, militares, económicos, sociais e até culturais. A Constituição aprovada em Fevereiro de 2010 veio apenas ratificar em lei o que já acontecia na prática. Trata-se de uma lei feita à medida, só e exclusivamente para José Eduardo dos Santos legitimar o seu incomensurável poder e serve-se do partido que domina sem qualquer oposição visível. Tudo passa por ele: desde os generais que ganharam a guerra contra a UNITA e Savimbi, devidamente recompensados; aos juízes, deputados e governantes. Para controlar tudo isto, constituiu um grupo de colaboradores, conhecidos vulgarmente por 'futunguistas' [antes do Palácio da Cidade Alta, a residência oficial do presidente angolano era na zona do Futungo de Belas], que exercem poderes paralelos, pois são temidos por parecerem ser os olhos e ouvidos do chefe”» (in Celso Filipe, O Poder Angolano em Portugal. Presença e influência do capital de um país emergente, Planeta, 2013, pp. 36-37).

Quanto ao investimento de Angola em Portugal, leia-se: «No primeiro semestre de 2012, de acordo com dados do Banco de Portugal, os angolanos aplicaram em território nacional 130,7 milhões de euros, enquanto os investimentos em Angola se ficaram pelos 118,5 milhões de euros.

(...)A concretização deste poder resulta, em boa parte, da conjugação da fragilidade financeira de Portugal, por contraponto à opulência revelada por Angola. E é assim que se instalam sintomas de uma inversão de papéis: o colonizado transforma-se em colonizador e passa a ser um alvo constante de escrutínio em Portugal. Hoje, os ricos e poderosos angolanos são pessoas sem rosto, que cultivam a discrição e às quais são atribuídas compras astronómicas em Portugal, nas lojas de luxo na Avenida da Liberdade, ou de casas nas quintas da Marinha e do Lago. Uma investigação feita pelo site Maka Angola (maka quer dizer conflito, discussão, problema, no dialecto angolano kimbundu) baptizou o condomínio de luxo Estoril Sol Residence, onde os apartamentos custam entre um e cinco milhões de euros, como o “prédio dos angolanos”. A António Domingos Pitra Neto (que foi ministro da Administração Pública, Emprego e Segurança Social), é atribuída a propriedade de cinco apartamentos. Fátima Giacomety, mulher do general Kopelipa, é dona de dois e o antigo ministro das Finanças, José Pedro Morais, é proprietário de quatro. Entre muitos outros compradores angolanos, destaca-se também Álvaro Sobrinho, presidente não executivo do BESA e irmão de Sílvio e Emanuel Madaleno, sendo o primeiro presidente da Newshold, a empresa que é dona do semanário Sol, tem 15% do capital da Cofina (Correio da Manhã, Sábado, Record, Jornal de Negócios), 2% da Impresa (Expresso, SIC), um contrato de gestão do i e já anunciou o seu interesse em participar na privatização da RTP, entretanto adiada. Sobrinho tem seis apartamentos no Estoril Sol Residence, e os seus irmãos três.

Neste contexto de criação de uma elite financeira e empresarial angolana, as palavras e os actos de José Eduardo dos Santos funcionam como faróis, iluminando o caminho de quem o rodeia, validando ou interrompendo estratégias. “Ele é o árbitro e o jogador. O dono da bola”, afirma quem conhece os meandros de Angola. Apesar do “desgaste do tempo”, o poder continua a gravitar à sua volta e todos os grandes investimentos angolanos em Portugal, o da Sonangol no BCP e na Galp, ou o de Isabel dos Santos na Zon, são debatidos no Palácio da Cidade Alta, a residência oficial do presidente da República, num círculo restrito que integra o actual vice-presidente da República, Manuel Vicente, o chefe da Casa militar, Kopelipa, e o marido de Isabel, o congolês Sindika Dokolo, entre outros, referem em uníssono empresários portugueses e angolanos» (ibidem, pp. 31-32).


(39) Alexandra Marques, op. cit., p. 486.

(40) E com ela, na qual os Portugueses sofreram a dureza da luta, as inclemências do clima, as agruras da vida em campanha, o afastamento da família e a interrupção dos estudos e das respectivas carreiras, o fim da existência histórica de Portugal. E tudo isso devido à deserção de militares dispostos a tolerar e a protagonizar, não obstante o sacrifício e o sangue da juventude já derramado em prol do altar da Pátria, a traição ou a defecção na retaguarda. Em suma: Salgado Zenha, Otelo Saraiva de Carvalho, Melo Antunes, Costa Gomes, Rosa Coutinho e seus congéneres jamais foram, pelos hediondos crimes cometidos, portugueses dignos desse nome.





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