quinta-feira, 14 de maio de 2015

Patrão, tenho “petisco cru”!

DIALOGANDO - Patrão, tenho “petisco cru”!
Quinta, 14 Maio 2015

NUMA das minhas estadias num dos locais de hospedagem de referência e “famoso” em várias coisas, lá nas bandas da vila de Nacarôa, estava eu sentado num banco do jardim do referido local, uma espécie de pensão, a debater-me entre o dilema da necessidade de repousar depois de uma longa viagem cansativa para recuperar as forças e o de arranjar um melhor tempo para uma entrevista com o administrador distrital.

O dia estava bonito e o barulho de fundo da principal e muito poeirenta estrada da vila de Nacarôa, que continua desprovida de infra-estruturas para o funcionamento de instituições públicas, que as leve igualmente a ostentar uma beleza particular, tornando-a encantadora, parecia não me incomodar. Até porque está dito que não era pela primeira vez que me deslocava em serviço àquele que é um dos novos e menos desenvolvimentos distritos da província de Nampula.

Após o jantar, para fazer a digestão e alguns exercícios, decidi sair do quarto. Pouco tempo depois vejo um homem a atravessar a estrada para o lado onde me encontrava, levando um garrafão de água. Era um dos trabalhadores da pensão que tinha ido à procura de água. A escassez de água é um dos grandes problemas que Nacarôa se debate, apesar dos esforços que estão sendo desenvolvidos com vista à correcção da situação preocupante. Depois de o homem chegar perto de mim, com um olhar de quem está muito preocupado em resolver algum assunto ou deseja dizer algo de importante e que interessa ao hóspede, disse: patrão, tenho um “petisco cru” que nunca provou.

Aliás, lembro-me ter ouvido outros hóspedes da pensão que bebiam cervejas no bar a oferecerem-se para pagar um valor por um “petisco cru”. Sem perceber exactamente o que era isso de “petisco cru”, dei comigo a “cambalear” para saber, o que não consegui. Face à isso, ou à minha “ignorância”, foi o próprio homem que explicou, dizendo que quando falamos de “petisco cru” referimo-nos as tantas crianças que todos os dias prostituem nesta pensão, algumas delas com o envolvimento dos seus progenitores que procuram clientes, principalmente nas casas de hospedagem da vila, como forma de combater a pobreza nas famílias, como é o caso dele. Fiquei escandalizado, por isso não aceitei a nojenta “oferta”.

Curiosamente, depois de Nacarôa deparamo-nos com a mesma situação noutros distritos da província de Nampula. Por exemplo, há bem pouco tempo fomos “exibido” muitos “petiscos crus” na cidade de Angoche, onde ocorrem situações de abuso sexual e prostituição de menores, nalguns casos com o envolvimento dos pais que alegam dificuldades financeiras nos seus lares. É um problema generalizado, particularmente nas zonas rurais de Nampula.

Para alguns poderão eventualmente não perceber facilmente porque é que este tema foi de eleição para esta crónica. Foi de eleição para este escrito para manifestar a indignação que devassa o nosso sentir de cidadão, o facto de o abuso sexual e prostituição de crianças envolver pais que deveriam estar na dianteira e sobretudo exemplo de prevenção e combate deste mal social.

Há certamente muita gente, neste caso pais, que nesta altura atravessam dificuldades financeiras para poder proporcionar as suas filhas uma educação condigna e que merecem, mas fazê-las de “petiscos crus” não é a melhor solução para o problema da pobreza. Mas, a preocupação tem que ser de nós todos, sob pena de estarmos a contribuir para a evolução de situações como esta, que podem levar à anulação de valores morais conquistados.

E é por causa desta nua e crua realidade que desejamos neste momento expressar a nossa indignação e revolta perante tamanha imoralidade a que são exemplos e vítimas as crianças do nosso país. É urgente repensar o futuro baseado em condições saudáveis e particularmente morais das nossas crianças. As crianças moçambicanas merecem que lhes proporcionem tratamento necessário para a sua afirmação social e moral.

Quem no futuro julgará as más “obras” do país vão ser os que hoje crianças, devem adquirir uma forte consciência moral e os pais devem fazer os possíveis para que isso aconteça, usufruindo igualmente uma melhor formação cultural.

A inércia manifestada na falta de aposta, por parte de quem de direito, incluindo a sociedade civil, na prevenção e combate ao abuso sexual e prostituição de menores, tem tido como consequência o aumento do número de crianças que se envolvem nessa prática. Porém, acreditamos que num dia que houver um desejo de resolver e de enfrentar sem hipocrisia de qualquer índole, este problema, tudo se conseguirá.

Mouzinho de Albuquerque

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