Lendo uma afirmação atribuída ao nosso Chefe de Estado lembrei-me dum paradoxo na filosofia. Tem o nome de paradoxo do crocodilo. Vai assim: se um crocodilo rouba uma criança e promete aos pais dessa criança que devolverá a criança na condição de eles adivinharem correctamente o que o crocodilo vai fazer, ele envolve-se numa situação paradoxal se os pais adivinharem que o crocodilo não vai devolver a criança. Isto por uma razão simples. Se o crocodilo decidir manter a criança ele próprio viola as suas condições; se decide não devolver também viola as suas próprias condições, pois os pais adivinharam mal.
O nosso Presidente é citado pelo jornal O País como tendo dito que “… o grande factor gerador de impasses prende-se com a inconstitucionalidade das exigências de Dhlakama, dado que não pode violar a Lei-Mãe sem o consentimento do ‘povo’, uma vez que jurou fidelidade à Constituição”. Bom, acho que o jornalista podia ter sido mais conciso e preciso. Vamos supor que o que o Presidente disse foi o seguinte: “Por ter jurado fidelidade à constituição não a posso violar sem o consentimento do povo”. Não percebi muito bem porque o jornalista colocou “povo” entre aspas, mas não é relevante por enquanto.
Mas, prontos, temos uma situação aqui. Num primeiro momento, é como se o Presidente estivesse a dizer que há momentos em que a constituição pode ser violada, nomeadamente quando se tem o consentimento do povo para tal. Aqui levantam-se problemas de ordem logística, naturalmente, pois seria necessário decidir como obter esse consentimento do povo e se faz sentido falar de “violação” nesse caso. Através duma campanha porta-a-porta, talvez? Por favor, posso violar a constituição para acomodar as exigências da Renamo? Mais ou menos nesse estilo. Num segundo momento, porém, é como se ele estivesse a dizer que se não tivesse jurado fidelidade à constituição não precisaria do consentimento do povo para a violar. Esta interpretação é problemática, pois sugere a ideia de que constituição é um documento que pode ser violado e que ser Chefe de Estado confere essa prerrogativa. Voltamos à estaca zero. Num último momento, é como se ele tivesse arranjado uma maneira bastante hiperbólica de dizer que não pode acomodar as exigências da Renamo porque a constituição não se pode violar (por ter jurado fidelidade e por isso carecer da aprovação do povo).
E é neste ponto onde se levanta o paradoxo. O consentimento do povo é uma exigência democrática e jurídica. Com o consentimento do povo qualquer tipo de acomodação de exigências inconstitucionais deixa de constituir “violação” porque essas exigências já não seriam “inconstitucionais” (pressupondo que essa consulta ao povo implicasse a revisão da constituição). A pergunta que me coloco desde que vi esta afirmação ontem é a seguinte: o que é que o Presidente queria dizer? Conhece o significado desse documento? Foi mal citado? Não é isso que queria dizer?
Não considero estas perguntas triviais (senão nem as colocava). Remetem-me para muitos equívocos em relação a este assunto na nossa discussão pública sobre o pesadelo da Renamo. A tendência foi sempre de reduzir o nosso problema à opção entre defender a constituição como um documento sagrado que ficará assim para todo o sempre ou ignorá-la completamente como um documento sem nenhuma validade por se considerar que esteja a ser violentado pelo partido no poder. Isto produziu entre nós o princípio segundo o qual os fins justificariam os meios. Se a constituição, tal e qual está a ser observada pelos outros, não resolve as minhas questões, então mando-a para o diabo. Poucos procuraram refúgio na própria constituição e no suporte ético e normativo que ela nos confere não só para torcermos o nariz perante a sua violação pelo partido no poder (quando é o caso) como também para condenarmos aqueles que a querem colocar a aguardar novas ordens. Curiosamente, o paradoxo do crocodilo não está apenas patente na afirmação do nosso Chefe do Estado. Está também no discurso da Renamo que diz que viola a constituição para respeitar a constituição. Está também patente no discurso dos “independentes” e “neutros” que consideram justificado que alguém atente contra a constituição para lograr equilíbrio na sua interpretação.
O nosso problema é mesmo sério. Acho até a metáfora do crocodilo mais do que apropriada se tiver em conta algumas das crenças que fazem o nosso Moçambique. Refiro-me às matanças ou marginalização de idosas sob a acusação de serem crocodilos que andam aí a comer as crianças da aldeia. Um país que não fala direito dificilmente vai ser capaz de produzir descrições úteis de si próprio. E isso costuma ser receita para o desastre como diriam os ingleses.
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      • Chengui Jaime Que contraste!
        GostoResponder1 h
      • Reginaldo Mutemba Que fazer entao? O uso daconstituicao para os menos poderosos. A constituicao nao serve para as altas entidades politicAs. Serve para outros; estes outros nao sei como Ee que a constmituicao os mede. Ou melhor, a violacao da lei ee legitima quando sao Detentores de cargos publicos como por exemplo: ser antigo combatente de reconhecido merito na praca publica, ser ministro, ser governador; ser administrador, ser ocupante de um dos cargos de instituicoes soberania, TS, TA, CC, procurador; etc. Quando ee lider da renamo, tambem pode se violar. Falo isso pela ausencia de casos que envolva essas pessoas. Apesar de sucessivas violacao da constitjuicao., por Dhlakama. Nao ha casos de acusacao da grande. Currupcao, embora seja um facto que a procuradoria tem se queixado. Quem sao os os nao intocaveis na perola do ondico? A constituicao ee assumida para se fazer de conta. Mas o seu respeito, num paiis cheio de ondividuos imunes as leis, sera com o tempo.
      • Hermes Sueia Haveria que encontrar uma forma legal de acomodar a Voz e o desejo do povo: a vontade do Povo é sobejamente conhecida: do Rovuma ao Maputo, o povo pede Paz. Caberá aos juristas encontrar a melhor forma de dar o enquadramento devido necessário para harmonizar vontades e anseios da nação Moçambicana. Apenas uma questão jurídica.........e temos juristas com capacidade para dar cobertura juridico-constitucional à viabilização da PAZ. Uma constituição que nos faz nascer, crescer e morrer num barril de pólvora, não consolida a nossa cidadania.........