segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Morrer pela paz: limitar os danos que publicações irresponsáveis como o Canal de Moçambique, o Savana e a Verdade estão a causar


Maputo está cheio de xingondo, é por isso que a cidade está uma porcaria”. Vamos imaginar esta frase em várias circunstâncias: numa conversa entre amigos, num debate na televisão, num editorial dum jornal, num comício popular, num debate no município, numa sala de aulas, etc. Que tal? Aceitável? Para quem não conhece o alcance das palavras: “xingondo” é o termo que se usa no Sul de Moçambique para classificar moçambicanos do Norte do país. Não conheço a origem do termo, só cresci a usá-lo como designação dessas pessoas. Pode ser onomatopeico, embora não me ocorra nada que sugira isso. O termo ganhou uma conotação progressivamente negativa ao longo do tempo de tal maneira que hoje ninguém, no Sul de Moçambique, o usaria de qualquer maneira. O que reforça o seu conteúdo negativo é a percepção de desigualdade que caracteriza a relação regional no país. É um pouco a mesma coisa com termos como “preto” e “branco”. “Preto” parece ser mais insulto quando usado por um branco do que “branco” é quando usado por preto.

Intuitivamente, muita gente diria que o pronunciamento em questão não é aceitável. Os mais liberais entre nós diriam, talvez, que esse pronunciamento só pudesse ser feito no espaço privado. A questão, contudo, é porque não deixar que as pessoas digam aquilo que pensam. A lei não proíbe isso expressamente. Existe um artigo na constituição (artigo 39 crimes contrários à unidade nacional) que pode ser interpretado como uma proibição a este tipo de pronunciamento, mas não tenho conhecimento de haver uma lei específica a operacionalizar isso. Portanto, para todos os efeitos, não parece haver nada, do ponto de vista jurídico, que impeça, digamos, um jornal de escrever um editorial nesses termos. Ora, é justamente esta ausência de proibição que nos leva ao cerne da questão que quero colocar neste “post”: a liberdade de expressão refere-se apenas ao que não é expressamente proibido por lei?

A questão é bicuda. Na tradição democrática existem duas abordagens fundamentais. Uma é a americana, a mais liberal, consubstanciada na famosa primeira emenda constitucional que impede o governo de promulgar legislação que limite a liberdade de expressão. Há toda uma carga histórica que é especificamente americana por detrás disso e que assenta em dois pilares. O primeiro é o valor instrumental da liberdade de expressão, isto é a crença na ideia de que a América só pode progredir se criar espaço para que todas as opiniões sejam ouvidas. A segunda é constitutiva, isto é parte da ideia de que a liberdade de expressão reconhece a maturidade e responsabilidade dos cidadãos para decidirem por si próprios o que querem acreditar e dizê-lo em público. A outra abordagem é europeia e presta muito maior atenção à necessidade de protecção da dignidade individual e de grupos. É em nome desta preocupação que se justifica a existência de legislação anti-rassista, anti-sexista e por aí fora. Em ambos os casos, não é a liberdade de expressão que deve se justificar, mas sim a prerrogativa do Estado de com ela interferir.

Sendo assim, a abordagem americana tem uma resposta clara à questão enquanto a abordagem europeia é menos directa. No caso específico do nosso país, que me parece mais próximo da abordagem europeia, não existe legislação específica acerca do assunto. Significa isso que podemos falar como quisermos? Creio que sim. É bom? Bom, não é mau. Devemos fazer alguma coisa? Sim. Legislar? Não. O quê, então? Devemos fazer uso da nossa boa educação cívica e moral. Ora, isto é mais simples dito do que feito, pois por detrás de algo tão vasto como “boa educação cívica e moral” pode albergar-se todo um fundamentalismo religioso, político e cultural que pode, no limite, cercear todos os ganhos que se esperam da liberdade de expressão. Isto é particularmente válido para casos em que em nome da “boa educação cívica e moral” alguns de nós gostariam de ver limitada a liberdade de certos pronunciamentos com teor político.

Na verdade, esta é a minha questão. Há uma certa maneira de comentar questões relacionadas com a tensão política que se vive que me parece ter o efeito de a exacerbar. Do lado dos jornais hostis ao partido no governo estes comentários caracterizam-se pela celebração dos desaires militares sofridos pelas forças governamentais, pela insistência na responsabilização única do governo pela falta de progressos no processo negocial e pelo seu silêncio cúmplice em relação às violações latentes e manifestas da ordem constitucional por parte da Renamo. Do lado dos jornais favoráveis ao governo os comentários caracterizam-se pela diabolização dos líderes da Renamo e pelo seu apoio tácito a actos que violam a constituição (por exemplo, ausência de posicionamento claro e inequívoco contra tentativas de eliminação física de políticos da oposição). Dito doutro modo, acho que vivemos uma situação política em que os meios de comunicação de massas se tornaram, na verdade, factores de guerra, não de paz. Aí me pergunto: que valor tem a liberdade de expressão nestas circunstâncias? É mesmo um valor?

Duvido que nestas circunstâncias a liberdade de expressão seja um valor. Não obstante, não tenho a certeza se estaria disposto a pôr em causa a prerrogativa que os meios de comunicação têm de a exercerem em pleno. Isto é, não veria nenhum mérito em usar legislação para forçar os meios de comunicação a serem factores de paz. Mas o argumento da “boa educação cívica e moral” parece-me pertinente. Afinal, antes de serem actores políticos os meios de comunicação de massas são acima de tudo profissionais de comunicação. Isso quer dizer que o seu trabalho é regido por alguma ética profissional que é coberta por esta “boa educação cívica e moral”. Nada do ponto de vista da liberdade de expressão impede o coveiro de se pôr a cantar e a assobiar durante o funeral, mas a sua ética profissional encoraja-o a respeitar a dor dos seus clientes. Pobre seria a sociedade que precisasse de legislação para proteger as famílias enlutadas da má educação e da ausência de brio profissional dos coveiros e das agências funerárias. Creio que o mesmo argumento se aplica aos meios de comunicação de massas. Pobre é a sociedade que precisa de legislação para proteger o sistema político da radicalização e da polarização que resultam dum entendimento problemático do valor da liberdade de expressão.

E vou mais longe: se bem que cabe aos actores políticos encontrarem soluções para os nossos problemas, não é menos verdade que todos nós somos chamados a dar o nosso contributo. Neste caso específico vejo uma responsabilidade acrescida ao Conselho Superior de Comunicação Social que até constitucionalmente tem a atribuição de “disciplinar” a imprensa. É desejar demais esperar que esse órgão reúna a comunicação social e chegue a um acordo sobre como falar da tensão política sem transformar os jornais e televisões em factores de guerra? Ou as coisas estão tão mal entre nós que um acordo de cavalheiros e damas dessa natureza seria praticamente impensável? É que se for impensável teríamos aí, pelo menos, uma ideia de quão difícil é alcançar a paz no país. O problema não seriam apenas os políticos.

Confesso, para que fique claro, que a minha principal motivação ao escrever este texto é de limitar os danos que publicações irresponsáveis como o Canal de Moçambique, o Savana e a Verdade estão a causar. Não me importo que outros pensem que esse papel seja desempenhado pelo Notícias, Domingo, o País, etc. Seja qual for o sentimento, o importante para mim é que ninguém morra pela paz, situação para a qual o jornalismo irresponsável que se pratica entre nós, sobretudo pelos três primeiros, parece estar a contribuir com um prazer mórbido.

10 comentários
Comments
Gito Katawala O termo "xingondo" deriva de "n'gondo", isto é, guerra em (Xi)Makonde, (Xi)Yao, (Xi)Nyanja. Depois do fim das "hostilidades" em 1974, o primeiro contingente das FPLM que foi destacado para Lourenço Marques era na sua maioria composta por Makondes, e exibiam o estatuto de serem is que "combateram". Uwe wa ku n'gondo. Daí resultou o termo, ambíguo as vezes, mas sempre com conotação pejorativa.
Edmundo Galiza Matos Um reparo apenas: o termo é muito anterior a 1974. Conheço-o desde a meninice. Mais: aplicava-se aos moçambicanos do centro e norte do país. O Luís Loforte pode dar um subsídio sobre o assunto.
Santos F. Chitsungo Edmundo Galiza Matos, sim e anterior a 74. Aqui no sul habituamo-nos a associar a uma danca ( o rumba, se a memoria nao me atraicoa, proveniente de paises a norte de Mocambique e por arrasto, passou a generalizar-se o tratamento a todo o cidadao do norte do Pais. Pedoem-me qualquer imprecisao.
Rildo Rafael Edmundo Galiza Matos! Realmente! É preciso percorrer a história para perceber a origem e metamorfoses do significado da palavra XINGONDO!
Rildo Rafael Prezado Elisio Macamo! Seria interessante cavar uma "arqueologia da palavra Xingondo ou Chingondo! Penso que precisariamos de descer ao berço da nossa história para captarmos sem saltos toda a arqueologia da palvra XINGONDO! Gito Katawala. A nossa história não pode se resumir apenas a luta de libertação nacional como parteira da palavra XINGONDO! Na zona Centro a guerra também é tratada por NGONDO logo a lista é enorme (Xi-Sena, Xi-Yao. Xi-Nyanja, etç)....Perceber o percurso do termo ajudaria a entender as suas "metamorfoses" em termos de significados ao longo do tempo até aos nossos dias!!! Um abraço
Rildo Rafael Acho que a passagem do texto que retrata melhor o que somos como sociedade é esta: "Do lado dos jornais hostis ao partido no governo estes comentários caracterizam-se pela celebração dos desaires militares sofridos pelas forças governamentais, pela insistência na responsabilização única do governo pela falta de progressos no processo negocial e pelo seu silêncio cúmplice em relação às violações latentes e manifestas da ordem constitucional por parte da Renamo. Do lado dos jornais favoráveis ao governo os comentários caracterizam-se pela diabolização dos líderes da Renamo e pelo seu apoio tácito a actos que violam a constituição (por exemplo, ausência de posicionamento claro e inequívoco contra tentativas de eliminação física de políticos da oposição). Dito doutro modo, acho que vivemos uma situação política em que os meios de comunicação de massas se tornaram, na verdade, factores de guerra, não de paz (Elisio Macamo)...Quando existir invesão de papéis, quem sabe poderemos falar de outra forma! Nada disso! O mais importante é mesmo informar o que existe (Como um bom espião)...Um abraço
Kendo Mangulle É triste esta atitude descriminatória... Acho eu que devia-se legislar para evitar/eliminar que haja palavras que provoquem possíveis focos da quebra da unidade nacional... 
Tenho assistido muito esta maneira pejorativa de tratar o povo oriundo do Centro e Norte e afirmo tristemente que devíamos por a mão na massa para acabar definitivamente.
Em conversas de bar, já tive a oportunidade da questionar o significado da palavra "Xingondo" a alguns amigos e tive umas resposta não agradável, como : Rato; pessoa irracional...etc.
Mas uma vez temos que colocar a mão na massa no sentido de não só legislar e também punir severamente quem atenta palavras contra a unidade nacional tais como: 
- Provinciano, Xingondo...etc
Obrigado Dr. Elisio Macamo pelo tema abordado.
Somos todos Moçambicanos e sempre seremos uno e indivisível.
Azarias Chihitane Massingue Os três órgãos de informação que Dr. Elisio Macamo cita tem como caras os Sr. ĶFernando Veloso, Fernando Lima e Eric Charas. Ora, sem querer me conotar com nacionalismo exacerbado, penso que o amor deles por Moçambique é diferente do meu e do Dr Elisio. Para eles o mais importante é que a Frelimo saia do poder para se alcançar um objectivo que este Partido enquanto estiver no poder dificilmente se alcança. Para eles, nem que isto custe a distribuição de tudo o que nos orgulha como povo, a unidade. Eles usam as as nossas dificuldades que historicamente não são isentos, como arma para nos auto distruir. Manipulam muitas mentes, principalmente dos jovens, que não que sabem que são forçados por circunstâncias a serem iguais nós. No fundo são eles que estão por detrás de toda crise que vivemos. Basta ver como discrevem a "capacidade demolidora das forças da Renamo". Eles têm pátria de reserva. O pior mal nisto, é que instrumentalizam
jovens que podiam ser úteis ao desenvolvimento deste País.
Américo Matavele Texto muito corajoso do Professor Elisio. Mas vou comentar com calma. É um assunto bicudo porque falamos da liberdade de expressão que extravasa os limites do ético. Aí poderíamos questionar se a ética se sobrepõe à lei? A discussão poderia girar entre um sim é um não, farfalhados de muitas palavras difíceis e bonitas. Mas como disse, vou comentar amanhã.
Elvis Sinal Macamo Pesso disculpas se que tou errado pesso perdao mesmo. Olha ja vinha se utilizando a palavra xingondo antes da guerra de libertacoa nacional. Ate nessa altura aviam certas musicas do Quenia, Zaire e mesmo Tanzania que os mais velhos oriundos do centro do pais gostavam e dancavam. E dizia que estas musicas sao dos xingondo. Que no sul raramente gostavam alem de Marrabenta.

Zeferino Fanequiço Um tema interessante e pertinente sem duvidas caro Elisio. O pais precisa realmente de se reconciliar. Para mim o papel principal eh dos politicos. Nao me parece que haja uma posicao coerente dos principais actores politicos em prol do que se propalava ha uns anos: unidade na diversidade. Principalmente diversidade de opinioes. Quem pensa diferente nao eh necessariamente inimigo ou menos patriota. Se nao gosto do Canal de Mocambique nao o leio. Se nao gosto do jornal Domingo nao o leio. Mas quem gosta, deve ter a possibilidade de os ler. Nao acredito que um ou outro qualquer jornal consiga recrutar para um campo ou outro quem nao esteja ja "convertido". A verdadeira base de apoio dos principais partidos se calhar nem le jornais nenhuns. Para mim o grande problema de Mocambique eh a exclusao. Exclusao politica, economica e social. Quem eh excluido sente-se discriminado. Pode ser pela sua raca, religiao, grupo etnico ou filiacao partidaria. O discriminado sente-se revoltado. Quem esta revoltado quer "revolucao". Quem parece trazer essa "revolucao" tem o seu apoio incondicional.

Sem comentários: