sábado, 21 de fevereiro de 2015

A prisioneira da cela 43 e o pesadelo dos juízes mártires

OPINIÃO


"Coação de funcionário" é crime de sangue? Como se coa um funcionário?
A reflexão sobre a porosa barreira que separa os sistemas político e judicial na organização do Estado está na ordem do dia.
Na demanda abstracta de "quem nos guarda de quem guarda os guardas", vim a reencontrar Rui Sá Gomes, supremo guardião do chilindró, hoje anfitrião do ex-primeiro-ministro de cujo primeiroGoverno foi secretário de Estado da Administração Interna. Socialista, maçon, ex-espião do Serviço de Informações de Segurança (SIS), é a mesma pessoa que, há meses, participou disciplinarmente do juiz Rui Teixeira por este ter rejeitado uma peça processual em "acordês", exigindo a redacção em português costumeiro. Perante tal rigor do juiz que ousara abrir o vespeiro Casa Pia (já no desterro, com a carreira travada por três conselheiros nomeados pelo PS), o carcereiro-mor imputou-lhe três crimes: denegação de justiça, abuso de poder e coacção de funcionário. A participação chegou ao Conselho Superior da Magistratura (organismo que nunca se "acordizou") convertida a essa mixórdia iliteracizante também designada por "cavaquês-socratês", suscitando problemas de interpretação. "Coação de funcionário" é crime de sangue? Como se coa um funcionário?
A década em que Sá Gomes foi espião operacional começou quando Rui Pereira assumiu a chefia do SIS. Ao receber a pasta da Administração Interna no primeiro Governo Sócrates, Rui Pereira fê-lo seu secretário de Estado. Quando Rui Pereira deixou a Administração Interna, já no segundo Governo Sócrates, iniciou mandato de nove anos como juiz do Tribunal Constitucional (TC), substituindo a sua mulher, Fernanda Palma, que acabara de cumprir os seus nove anos, tal como Maria dos Prazeres Beleza, esta também substituída no TC pelo marido, José Gabriel Queiró. Sucessão conjugal. Nos corredores em circuito fechado do poder, vasos comunicantes, as dinastias dos juristas da res publica.
Voltando a Rui Sá Gomes, após estar no Governo, regressou no final de 2009 à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais para que fora nomeado por António Costa, então ministro da Justiça, e acumulou, passados dez meses, a Direcção-Geral da Reinserção Social, até que estes dois cargos foram fundidos num só, dois anos depois. Foi mantido director-geral da Reinserção e Serviços Prisionais pelo actual executivo.
Para um supercargo, superpoderes. Em 2010, era o epicentro da celeuma criada por um novo Código de Execução de Penas que lhe dava o poder de decidir o acesso dos presos ao regime aberto após cumprirem um quarto da pena, sem o escrutínio de um juiz. Rui Sá Gomes defendia que, embora ande no exterior sem supervisão, um preso em regime aberto continua preso, por ter de passar a noitena prisão; não se tratando de liberdade condicional, os juízes não tinham nada com isso. Disse, então, alguém do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público: "Tive um caso de uma família que foi sequestrada e violentamente agredida na sua casa. Os autores foram apanhados, julgados e condenados a 20 anos de prisão. Daqui a cinco é-lhes concedido, por um simples acto administrativo, o regime aberto. A família, que estava descansada na sua casa, confiando que eles estavam presos, vê-os na rua. O que é que dizemos a esta família? Olhem, o sr. director das prisões diz que eles estão presos." (Diário de Notícias, 10/4/2010)
Recapitulando. É Rui Sá Gomes (1) quem guarda os presos (zelando pela sua expedita reinserção), (2) quem literalmente guarda os guardas, (3) alguém que lidou com toda a sorte de dadossigilosos vitais para a segurança nacional (e para o bem-estar dostitulares de cargos políticos), e (4) quem mantém sob detenção ilegal uma prisioneira de delito incomum. Presumo-a, por conveniência retórica, confinada à cela 43, sem direito a visitas, não vá qualquer magistrado, aluno ou funcionário público pretender algum contacto.
A prisão de Évora destina-se a reclusos que exijam protecção especial. Estou convicta de que a Língua Portuguesaindocumentada, considerada apátrida, está lá sequestrada em condições degradantes, desfigurada sob tortura. Na cela 43 haverá por certo um balde higiénico onde vão parar consoantes e hífenes que lhe são extraídos quais rasgões na pele, a grafia, esse manto régio descrito por Pessoa. Desnutrida, seviciada, privada de cuidados de saúde, é um caso para a Amnistia Internacional.

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