segunda-feira, 24 de abril de 2017

O verdadeiro adversário de Le Pen

Macron: Retrato incompleto de um candidato perseguido pela sorte

Emmanuel Macron, 39 anos, filósofo, banqueiro, conselheiro do príncipe, ministro, candidato independente ao Eliseu, sedutor, brilhante, descomprometido, parece ter hoje à sua frente a dupla missão de vencer Le Pen e salvar os socialistas franceses. Tem o que é preciso para convencer?
 

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O retrato ainda está incompleto. Demasiado jovem, demasiado diferente nas suas escolhas familiares e profissionais, demasiado vago nas suas propostas reformistas, com escassa experiência política e uma independência que é, ao mesmo tempo, vantagem e fraqueza. A sorte persegue-o na corrida para o Eliseu, enquanto os grandes partidos franceses praticam a autofagia e a extrema-direita consegue fixar um quarto do eleitorado para a primeira volta das presidenciais.
Deixou Manuel Valls sozinho no combate à ala radical do Partido Socialista, nas “primárias” de Janeiro, para escolher o seu candidato. Valls foi humilhantemente derrotado pelo candidato mais à esquerda, Benoît Hamon, com escassas hipóteses de chegar à final. Macron decidiu correr por fora, recusando submeter-se à selecção do campo socialista. O PS ofereceu-lhe um concorrente que nem de encomenda seria melhor, deixando-lhe o caminho livre para atrair uma boa fatia do eleitorado socialista que está longe de se rever no radicalismo de Hamon. Valls considera-se “traído” por ele. Hollande pode dizer o mesmo do seu anterior primeiro-ministro. Macron conseguiu sobreviver às guerras fratricidas do PS, apresentando-se como um outsider, que recusa a divisão esquerda-direita, não porque não exista, mas porque deixou de ser fundamental. A diferença é entre “progressistas e conservadores”.Emmanuel Macron não é um político qualquer. A opinião pública rendeu-se-lhe. As decisões que tomou revelaram-se certas. Militante do PS desde os 24 anos, conselheiro de François Hollande (chamavam-lhe o “Mozart do Eliseu”), ministro da Economia do Governo de Manuel Valls para fazer as reformas económicas e sociais de que a França precisa, saiu a tempo de não ficar “queimado” pelo fim de um mandato presidencial sem glória e sem vigor.
Em Novembro, as “primárias” dos Republicanos, ao eliminarem Alain Juppé e escolherem François Fillon, fizeram-lhe o favor de afastar de cena o candidato mais capaz de disputar com ele o centro político. Fillon, que liderava as sondagens como o candidato mais bem colocado para derrotar Le Pen na segunda volta, deixou-se enredar num caso de favorecimento de familiares, abrindo as portas a que Macron se afirmasse como o verdadeiro adversário de Marine Le Pen na luta pelo cargo mais importante da política francesa. O candidato dos Republicanos, que já pediu desculpa mas não desistiu, ainda pode recuperar. Mas perdeu a dinâmica que o dava como certo na segunda volta, onde os aguarda, inamovível, a líder da Frente Nacional.
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Com jovens em Bordéus. Macron recolhe um apoio quase idêntico em todos os estratos etários THIBAUD MORITZ/GETTY IMAGES

O verdadeiro adversário de Le Pen

Macron viu-se de repente com uma larga avenida à sua frente até ao Eliseu. Se é uma vantagem, pode ser também um inconveniente. O jovem ex-ministro da Economia passou a ser, para a direita e para a esquerda, o alvo a abater. Marine não hesitou um segundo em classificá-lo como o seu verdadeiro adversário. “A emergência de Emmanuel Macron é uma boa notícia. Ele acelera a recomposição política que nós desejamos há anos: é pela mundialização descomplexada, enquanto os outros candidatos são defensores envergonhados da mundialização.” Marine aponta-a como a origem de quase todos os males da França. Os estudos de opinião mais recentes apresentam um quadro que lhe dá razão.
O último foi feito por Jêrome Fourquet, director de estudos de opinião da IPSOS, destinado a apurar quem são os franceses que apoiam Macron. Não são, em particular, os mais jovens, nem os mais velhos. Ele recolhe um apoio quase idêntico em todos os estratos etários. Disputa a Fillon a mobilização nas camadas mais ricas da população. A sua força está nos diplomados (onde é imbatível) e nos estratos mais educados. A fractura é aquela que Le Pen quer aproveitar: os que se dão bem com a globalização e os que ficaram para trás. Macron consegue também um score razoável na classe média. Mas, tal como os seus adversários de esquerda, de Jean-Luc Mélenchon (esquerda radical) ao socialista Benoît Hamon, a penetração no voto dos mais desfavorecidos é escassa. Esse é hoje o reduto aparentemente inexpugnável da Frente Nacional. Depois de roubar o eleitorado do Partido Comunista, do Partido Socialista e dos radicais de esquerda, Marine quer traçar uma clara linha divisória com o seu adversário de centro-esquerda. Que se exprimiu em inglês (aliás, perfeito) quando foi à Universidade Humboldt de Berlim debater o futuro da França e da Europa – um crime contra a Pátria de Marine. Que insiste em que a integração europeia continua a ser a única forma de proteger os europeus dos ventos mais fortes da globalização. Que vê o euro como um instrumento de poder europeu, desde que a união monetária funcione numa lógica verdadeiramente federal, dotada de um orçamento próprio e partilhando os riscos. Apenas a classe empresarial ainda desconfia dele, vendo-o como uma face mais agradável de Hollande.
Para ele, a verdadeira corrida começa agora. Terá de apresentar a sua plataforma política até final de Fevereiro, que lhe exigirá mais do que as ideias simples com que se apresentou ao eleitorado ou no seu livro Révolution (Edições XO)Tem a desvantagem de não ter uma máquina partidária à sua disposição, mesmo que mobilizando muita gente nova um pouco por toda a França, mas que não chega para substituir os aparelhos partidários. Tem beneficiado do factor novidade.
Enquanto os candidatos dos partidos tradicionais se esforçam por mobilizar algumas centenas de pessoas, ele reúne quase sempre milhares. A sua capacidade de mobilização só é comparável à da candidata da Frente Nacional. Podia ter ajustado o seu discurso ao sentimento anti-imigração que hoje varre a França, e a maioria dos países europeus, sobretudo se for islâmica. Fillon já o fez. Ele não. Não defende um secularismo à outrance, como o de Manuel Valls. Quer que a França aumente as suas despesas militares para cumprir o critério dos 2% fixado pela NATO (1,8 actualmente). Apresenta-se como um reformista que não fez mais enquanto ministro da Economia (2014-16) porque o Governo de Manuel Valls, outro reformista, não lho permitiu. Valls teve de ceder à pressão da ala esquerda do seu partido na Assembleia Nacional, às manifestações da rua e às hesitações de Hollande. A “lei Macron” sobre a reforma do mercado de trabalho foi devidamente depurada dos seus aspectos mais impopulares. Ainda hoje se discute em alguns sectores se o comércio pode ou não abrir ao domingo. Mantém a intenção de voltar a ela, se conquistar o Eliseu. Sem pressas. Quer a “redução do perímetro do Estado” (Fillon anuncia um corte de 500 mil funcionários), a reforma do seguro de desemprego e a reconstrução da segurança social. “En délicatesse”. “Não se trata de aplicar o que os britânicos fizeram nos anos 1980”, porque “o mundo é diferente, a sociedade é diferente, os desafios muito mais complexos”, diz ao Monde.
Em Lyon, no sábado 4 de Fevereiro, 12 mil pessoas estiveram no dia de arranque oficial da campanha de Macron às presidenciais. CLEMENT MAHOUDEAU/GETTY IMAGES

Liberdade, igualdade, fraternidade

Mas isto nem sequer é o essencial. Tal como aconteceu a Fillon, os franceses olham mais para o que ele é do que para a consistência das suas políticas. O candidato dos Republicanos ganhou as “primárias” a prometer uma revolução “liberal-thatcheriana” (à qual já tratou de limar as arestas) e não há nada que os franceses mais detestem do que o neoliberalismo. Bastou-lhe encarnar os valores católicos e conservadores da França profunda. Emmanuel Macron recusa a velha dicotomia esquerda-direita. Não é por aí que hoje passa o que é decisivo: abertura ao mundo, reformas económicas, solidariedade e Europa.
O seu lema é o velho tríptico da Revolução Francesa, que transcende as fronteiras partidárias: “Liberdade, igualdade, fraternidade.” Pode ser vago, mas é simbólico. Visitou o túmulo de Joana d’Arc, a pastora que, no século XV, lutou corajosamente para unir os franceses e derrotar o domínio inglês, que era, até à data, um exclusivo da Frente Nacional. Começou a campanha nos arredores de Paris, numa circunscrição de gente que vive com muitas dificuldades. Percebeu, com o escândalo Fillon, que tinha de acelerar a redacção do programa. Até agora, deixou que um grupo de académicos e intelectuais eminentes preparasse as bases da sua plataforma política. Entregou a coordenação a dois pesos pesados: Jean Pisani-Ferry, o fundador do Bruegel, um dos melhores think-tanks económicos da Europa; e Pascal Lamy, chefe de Gabinete de Delors na Comissão, director-geral da OMC, presidente honorário da Fundação Notre Europe, dono de um pensamento aberto cujo reflexo já se sente nas ideias que Macron tem apresentado aos franceses. Precisa de encontrar um fio condutor e montar uma equipa de campanha mais profissional. Nada disto será fácil. Nem sequer suficiente.
Terá de defender-se dos ataques à sua vida pessoal e à sua curta carreira política. Citando o site Politico-Europa, Marine diz que ele representa “a esquerda caviar”, uma velha expressão para designar a esquerda bem-pensante que, alegadamente, se passeia pelos grandes boulevards parisienses, frequentando os seus cafés e as suas livrarias. Fillon segue a mesma linha: “O protótipo dessas elites que não sabem nada da realidade francesa”, ele que se apresentou como um “provinciano” da verdadeira França. Benoît Hamon acusa o seu rival de ser um mero “substituto de Fillon”, por causa do seu alegado liberalismo. Jean-Luc Mélenchon, o eterno candidato da esquerda radical, acusa-o de ser “o homem que lixou a vida de muita gente”. Refere-se às leis laborais. A crítica mais comum é ter sido “um banqueiro dos Rothschild”. A sua vida não encaixa no molde da elite política francesa. Mas, nos dias que correm, isso pode ser uma das suas vantagens.
O que faz correr, afinal, este jovem de 39 anos que de repente vê o Eliseu ao alcance da mão?
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Conheceu Brigitte Trogneux, 24 anos mais velha, quando foi colega de escola de um dos seus filhos. Continuam casados e hoje Macron gaba-se de ter seis netos GETTY IMAGES

Uma vida incomum

Toda a sua vida é escrita antes do tempo normal. Nasceu numa família burguesa em Amiens – pai e mãe médicos e professores. Estudou numa escola privada dos Jesuítas, mas rumou a Paris aos 16 anos, para concluir o secundário no reputado Liceu Henrique IV. Rezam as crónicas que os pais o afastaram de Amiens para pôr cobro ao escândalo da sua paixão por uma professora de Francês e de teatro, Brigitte Trogneux, 24 anos mais velha, que ainda hoje é sua mulher. Tê-la-á conhecido quando foi colega de escola de um dos seus filhos. É, no mínimo, uma história digna de filme de Hollywood, incluindo um final feliz. Hoje, gaba-se de ter seis netos. Até agora, ninguém ainda conseguiu pôr reparos à sua vida familiar. Pode não ser comum mas não é, de certeza, pecado. Há poucos dias, correu a informação de que seria gay e teria um amante, sob a fachada de um casamento feliz. A origem do rumor foi localizada em Moscovo. Já vimos a mesma história nos Estados Unidos. Vladimir Putin tem todo o interesse em destruir a sua candidatura. É amigo de Le Pen e tem em Fillon o candidato que quer restaurar o velho “gaullismo”, defendendo uma aproximação a Moscovo e um distanciamento em relação à América. Trump até dá uma ajuda.
Também o percurso profissional se afastou do que é comum a quase toda a elite francesa. Concluiu a licenciatura em Filosofia, antes de entrar na incontornável École Nationale d’Administration (ENA), que produz a elite das elites do Estado. Terminou em quinto na promoção Leopold Sédar Shenghor, considerada a melhor “colheita” desde aquela que produziu Hollande, Ségolène Royal, Dominique de Villepin e mais uns tantos (1980). Da sua (2004), saíram 17 “énarques” que ocupam ou ocuparam cargos de grande influência nos principais gabinetes do poder. Chegou a entrar na Inspecção-Geral de Finanças, destino quase obrigatório para o mais alto funcionalismo público. Saiu para ir trabalhar no Banco de Investimento dos Rothschild, onde fez uma carreira meteórica, chegando rapidamente ao topo e fechando grandes negócios que lhe devem ter dado bons proveitos, contactos preciosos e alguma experiência do que é a economia. Pilotou a compra de uma filial da Pfizer pela Nestlé, no valor de 9 mil milhões de euros. “O dinheiro não deve ser identitário. Apenas um instrumento de liberdade e nada mais”, disse à revista L'Obs.

Teórico de uma “segunda esquerda” reformista

Mas é preciso recuar um pouco mais para entender a personalidade deste jovem “belo, brilhante e sedutor”, como escreveu Odile Benyahia-Kouider em Agosto de 2014 na mesma revista francesa, que continua a ser um enigma. Licenciou-se em Filosofia, terminando a última fase dos estudos com uma tese sobre “O Facto Político e a Representação da História em Maquiavel”, sob a direcção do filósofo Etiénne Balibar. Escreveu pouco depois outro ensaio sobre “Leitura e Princípios da Filosofia do Direito de Hegel”. A sua coroa de glória foi ter sido assistente de Paul Ricoeur quando, em 2000, o grande filósofo francês decidiu redigir a sua última obra: La mémoire, l'histoire, L'oubli. Para quem conhece a cultura francesa, os nomes citados falam por si.
Em 2011, publicou na revista Esprit um pequeno ensaio premonitório: Os Labirintos do Poder: como conciliar os imperativos de curto prazo e a necessidade de reformas de longo prazo.” “A presidencialização do regime induz uma dimensão quase monárquica da eleição presidencial”, escreveu. Para concluir: “Mas, depois, o sistema mediático-político enfraquece o Presidente no exacto momento em que é eleito, porque o cerca e não o respeita.” Diz ele que isso ajuda a explicar a rápida queda em desgraça de François Hollande e de Nicolas Sarkozy, presidentes de um só mandato, caso único na V República.
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Com ele tudo acontece depressa. É fino e é simples”, comentou François Hollande, que escolheu Macron para principal conselheiro económico e vice-secretário-geral do Eliseu
No fundo, queria ser o teórico de uma “segunda esquerda” reformista que sempre existiu no PS, criada por Michel Rocard, que sempre admirou. Quando Dominique Strauss-Khan (D.S.K.) tentou retomar essa corrente, antes de cair em desgraça, chegou a trabalhar com ele. Diz hoje que “não se sentiu bem” com DSK. Verdade ou oportuna desculpa? Sarkozy tentou recrutá-lo em 2007. Só conheceu Hollande em 2008, era ele o secretário-geral do PS. Ajudou-o a preparar o programa para as presidenciais de 2012 em que prevaleceu a linha “radical”.
“Com ele tudo acontece depressa. É fino e é simples”, comentou o Presidente, que o escolheu para principal conselheiro económico e vice-secretário-geral do Eliseu. Levou algum tempo a convencê-lo da necessidade de mudar o rumo da política económica para melhorar a competitividade da economia francesa, incentivar o crescimento e aproximar-se das regras do euro. Foi um dos autores do “Pacto de Responsabilidade” que Hollande apresentou aos franceses em Janeiro de 2014, bastante mais amigo das empresas. Valls já era primeiro-ministro e a derradeira cartada de Hollande para aumentar a confiança dos agentes económicos. Macron ocupou a pasta da Economia um pouco mais tarde, com a “missão impossível” de levar a cabo algumas reformas inadiáveis.
Quando Hollande e Angela Merkel se desentenderam sobre a União Bancária, foi ele o enviado a Berlim para negociar com o gabinete da chanceler. Merkel já convidou Fillon para jantar, mas ignorou a sugestão de lhe fazer idêntico convite. Valls não lhe perdoou a saída do Governo, em Agosto de 2016, quando a popularidade do Presidente atingiu a sua quota mínima. Já tinha constituído o seu movimento “En Marche!” e era um dos políticos mais populares da França. O primeiro-ministro acusou-o de “traição”. Ele próprio “trairia” Hollande meses mais tarde, ao forçá-lo a anunciar a sua desistência.
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Criou o movimento “En Marche!” quando saiu do Governo, em Agosto de 2016 THIBAUD MORITZ/GETTY IMAGES

Se Macron for eleito, Valls estender-lhe-á a mão?

Quando foi para o Eliseu, em 2012, dividiu por dez o seu salário mensal. Quando saiu de Bercy disse que precisava de ler e de reflectir. Não resistiu ao apelo da política. Os seus amigos de infância e de juventude dizem que sempre foi um apaixonado pelo debate político, que lia tudo, da história à economia, da filosofia (a sua maior paixão), à literatura; que imitava com brio cantores de outras gerações como Georges Brassens e Georges Moustaki. Ainda hoje, dizem os amigos, prefere o convívio com pessoas mais velhas, de vidas vividas e de muitas histórias. Rejeitava o “declinismo” da França, preferindo falar de “metamorfose”. É difícil entrar na sua intimidade, admitem também. Tem a obsessão do tempo que passa, como um outro dos seus mentores, Jacques Attali, conselheiro de Mitterrand e autor da monumental trilogia Verbatin sobre os 14 anos com o Presidente francês, e que é coleccionador de ampulhetas. Sonhou ser um Rocard do século XXI. Mas os tempos são outros e Rocard nunca foi bafejado pela sorte na política. Faltava-lhe em “instinto político” o que lhe sobrava em pensamento.
Falta saber se as suas convicções são suficientemente fortes para resistir ao confronto político e aparar os “golpes baixos” com que tiver que lidar. Nunca desempenhou nenhum cargo sujeito a uma eleição. Falta-lhe experiência internacional, num regime constitucional em que a política externa e de defesa são competência do Eliseu. A mesma jornalista do L'Obs interrogava-se em 2014: “Quem é este ministro da Economia que impressiona, seduz e irrita? Quem é este sobredotado de 36 anos que estudou filosofia e que, depois, foi banqueiro?” A resposta continua por completar. Emmanuel Macron tem a gravitas de um Presidente que os franceses gostam sempre de equiparar ao Rei Sol? Não. Mas esses tempos já passaram. Sarkozy rompeu com o estilo monárquico com o seu feitio iconoclasta e, por vezes, grosseiro. Hollande quis ser um Presidente “normal” mas não teve qualquer sucesso. Vinha do aparelho socialista, sem qualquer experiência governamental, quando se candidatou.
Ser Presidente da França quando a Europa vive uma tremenda crise política e o poder passou para Berlim, não é tarefa fácil. Mas dela depende, sem qualquer dúvida, o futuro da União Europeia. A relação com a Alemanha está no centro da política francesa. Fillon e Macron têm uma estratégia oposta para lidar com Berlim. O primeiro apoia as políticas de austeridade e critica a abertura aos refugiados. O segundo coloca as coisas ao contrário. “A chanceler Merkel e a sociedade alemã salvaram a nossa dignidade colectiva.” Quer ganhar aí margem de manobra para as questões económicas, escreve Arnaud Leparmentier no Monde. “A zona euro é disfuncional por falta de convergência económica”, diz Macron, para acrescentar que isso não prejudica a Alemanha. Pelo contrário, ajuda-a manter o euro como um “marco fraco”, muito útil à sua capacidade exportadora. Conclusão: “O statu quo significa o desmantelamento do euro daqui a 10 anos”. As escolhas políticas nos dois países (Maio e Setembro) serão decisivas para o futuro europeu.
As últimas sondagens, que valem o que valem, colocam Emmanuel Macron nos 64% na segunda volta, contra 36% para Le Pen. Seria uma vitória clara, mas muito distante do que aconteceu em 2002, quando Lionel Jospin falhou a primeira volta e Jacques Chirac venceu Jean-Marie Le Pen por mais de 80% dos votos. A disciplina republicana já não funciona da mesma maneira e Marine conseguiu integrar o sistema partidário francês, com direito a ser tratada como qualquer outro líder de partido. A V República estava preparada para funcionar com a bipolarização entre dois grandes partidos. Passou a ter de funcionar com três. Se ganhasse as eleições, Marine enfrentaria um problema parecido com aquele que Macron teria de enfrentar. As eleições legislativas, logo a seguir às presidenciais, são o tira-teimas do poder do Presidente. O sistema eleitoral a duas voltas beneficia os partidos tradicionais, bem implantados no terreno, que determinam as desistências em função da segunda volta. Le Pen tem um partido com peso eleitoral significativo, mas ao qual falta ainda passar o teste deste jogo de preferências que dita a composição da Assembleia Nacional.
Macron também não tem a máquina socialista local. Se Benoît Hamon não chegar à final, o que é altamente provável, Manuel Valls pode voltar a tomar conta do PS. Já avisou que os partidos também morrem, mesmo quando têm mais de um século de existência e já passaram por muitas vicissitudes. Se Macron for eleito, Valls estender-lhe-á a mão? Poderia passar por aqui a tábua de salvação do centro-esquerda francês e o sinal de alguma esperança para a Europa.

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