domingo, 21 de janeiro de 2018

As mãos de Guebuza na perseguição e deportação das Testemunhas de Jeová








MOÇAMBIQUE FRELIMO Campos de reabilitação.


As feridas abertas pelo “processo de reeducação” em Moçambique (transcrição do áudio).


Entre 1974 e o início da década de 1980, milhares de pessoas – entre elas prostitutas, dissidentes políticos e Testemunhas de Jeová – foram forçadas a ir para campos de reeducação. A maior parte não voltou. Os primeiros anos da história de Moçambique independente foram um período conturbado. Ainda antes da independência de Moçambique (1975), o governo marxista da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) sentia a necessidade de eliminar os comportamentos e costumes associados ao colonialismo português e ao sistema capitalista, criar uma nova mentalidade e uma sociedade socialista. Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, atual chefe de Estado e na época ministro da Administração Interna do governo de transição, anunciou a criação de campos ou centros de reeducação. Este tipo de programa foi característica de outros regimes totalitários socialistas, como o da antiga União Soviética ou da China, por exemplo. O plano inicial era reeducar, nas zonas rurais, as prostitutas das grandes cidades. Na época, o ministro Guebuza estimou que existiam 75 mil prostitutas só na capital (embora o número contemple, presumivelmente, mulheres que viviam sozinhas e mães solteiras), como reporta um artigo do jornal português "A Capital" de 1974. O alvo das rusgas alargou-se depressa. Além de prostitutas, milhares de outras pessoas como dissidentes políticos, suspeitos de ligação ao poder colonial português, alcoólicos, autoridades tradicionais (como régulos e curandeiros) e Testemunhas de Jeová (um grupo cristão que recusa, entre outros, o serviço militar obrigatório) foram apanhados nas ruas das principais cidades de Moçambique, em particular em Maputo, Beira e Inhambane, segundo relatos em jornais internacionais. Cerca de 10 mil reeducandos em 1980 Os detidos eram, normalmente, encaminhados para os postos da polícia e, sem qualquer comunicação à família e sem decisão de um tribunal, eram transportados para centros de reeducação, sobretudo no norte do país. Era como um castigo. Através do trabalho forçado na agricultura, ou machamba, como habitualmente se diz em Moçambique, as pessoas deveriam ser reeducadas e, nesse processo, aprender os princípios do marxismo-leninismo. Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil pessoas estariam concentrados em 12 centros de reeducação. O número viria a crescer nos anos seguintes - segundo estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil. Em novembro de 1975 foi anunciada a detenção de três mil pessoas em rusgas efetuadas nas cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano Daily News. E em 1982 foi anunciada a suspensão de mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação. O mais terrível Alguns dos centros de reeducação ocuparam as instalações de antigas bases militares. Estavam em locais remotos, distantes das comunidades, de difícil acesso. Conta-se que os fugitivos, quando não eram apanhados pelos guardas, acabavam por ser denunciados pelos camponeses da região ou devorados por feras. A maior parte dos centros de reeducação localizava-se na província noroeste do Niassa, a maior e menos habitada do país. O centro de M’telela, no Niassa, para onde foram enviados vários inimigos políticos da FRELIMO, é considerado o mais terrível. Segundo o livro “Uria Simango - Um homem, uma causa” de Barnabé Lucas Ncomo, dos 1.800 prisioneiros que lá entraram, desde 1975, menos de 100 saíram com vida, até 1983. Em M’telela ou nas imediações terão morrido, por exemplo, Uria Simango e Joana Simeão, personalidades ligados à fundação da FRELIMO, que viriam a ser acusadas de traição. “Lavar a cabeça” de ideias colonialistas Natural da Beira, Félix Bingala, hoje com 57 anos, veio para a província por força da reeducação. Conta que foi integrado no programa, em 1975, depois da visita à cidade da Beira do então ministro da Administração Interna, Armando Guebuza. O ministro acusou muitos jovens de serem defensores do colonialismo português. Na altura com 19 anos, Félix Bingala trabalhava numa loja da Beira quando foi apanhado numa rusga: “carregaram-me. Entrei no machimbombo, fui à 5ª esquadra. Dali mandara-me para o Grande Hotel. Logo de manhã, apareceram muitos machimbombos, carros, e carregaram-me para Sakuze, na Gorongosa. Atravessei o rio Sakuze. Fomos para o mato. Disseram-nos: aqui têm de construir cidade, trazer as vossas mulheres para aqui, para tirar as ideias do tempo colonial, para nos ‘lavar a cabeça’. E ficámos. Era muita gente, toda a raça estava acumulada ali: moçambicana, mista, portuguesa, havia uma mistura de pessoas em Sakuze”, recorda. Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente ligação com o passado: “desde que estou aqui não tenho possibilidade de contactar com a família. A minha família até pode dizer: ele já morreu; e eu ainda estou vivo”, admite. RENAMO recrutou homens da reeducação O centro de reeducação de Sakuze, para onde Félix foi enviado, em 1975, localizava-se na Serra da Gorongosa, na província central de Sofala. Durante a guerra civil (entre 1976 e 1992), a região foi um bastião da RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana. Foi lá onde a o principal partido da oposição começou a recrutar homens para as suas fileiras, retirando-os do domínio da FRELIMO. “A RENAMO estava a aproveitar estes homens, que já estavam preparados” militarmente, diz Félix Bingala que nunca foi apanhado nas investidas. Para escapar às rusgas da RENAMO, a FRELIMO transferiu os reeducandos. Depois de Sakuze, Félix Bingala foi para outro centro, em Panda, na província sul de Inhambane, onde, todavia, a RENAMO conseguiu recrutar mais homens. Pelo que em 1978, Félix foi novamente transferido para Majancaze, província de Gaza, onde, conta, também andaram homens da RENAMO. Um ano mais tarde, em 1979, Félix Bingala foi encaminhado finalmente para o centro de reeducação de Msawize, no mato denso do distrito de Sanga, na província do Niassa. Obedecer para sobreviver na reeducação Olhando para trás, Félix recorda com amargura os centros de reeducação: “muitos moçambicanos perderam a vida, ao serem comidos por leões, ao fugirem”. Quanto ao quotidiano, o ex-reeducando lembra: “de dia é trabalho, pegar a enxada para a machamba, ir à pesca, fazer cestas (quem soubesse), comida para a gente comer. Mas a comida não chegava para tudo e vinha da província para lá. Houve dificuldades mesmo. Se alguém saísse um pouco, a população iria amarrar. Nós éramos chamados presos, éramos amarrados, bem esticados. Tinha que se cortar cabelo “assim”, usar saco, para se saber quem é fugitivo. Até havia uma cova grande. Se você praticou alguma coisa, você desce com a escada até lá, tira a escada, fica ali, “caga ali, mija”, de manhã tira, comida vem, recebe e come. Essa era a punição”. André Ernesto Embalato, natural de Gaza, passou também por centros de reeducação. Trabalhava numa pastelaria, em Maputo, quando em 1975 foi apanhado pela polícia sem documentos de identificação. Esteve igualmente em Sakuze antes de ser transferido até ao Niassa. “A vida é de ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia à ordem era batido. Quando tocava o apito, devia-se correr, se fosse quando se estivesse a comer devia-se deixar a comida e receber ordem. Se não receber ordem tem porrada, acontecia assim”, diz André Ernesto Embalato. Na reeducação as pessoas regeneravam-se ou perdiam a vida? O centro de Msawize durou pouco tempo mais desde que Feliz Bingala lá chegou, em 1979. Por ordem do governo, começou a trabalhar na empresa agrícola de Unango, no mesmo distrito de Sanga. A empresa estatal recebeu forte apoio da Alemanha Oriental comunista. Depois entrou em falência e Félix Bingala começou a trabalhar na horta, vendeu os seus produtos até conseguir dinheiro para pagar a viagem para Lichinga, a capital provincial do Niassa. Em 1984 encontrou apoio na organização Caritas, ligada à Igreja Católica, onde trabalha até hoje como guarda. Entretanto, o programa de reeducação tinha terminado. Face à pressão da opinião pública internacional, o Presidente Samora Machel ordenou inquéritos confidenciais sobre as condições de vida nos campos, em finais de 1981, que acabariam por conduzir à suspensão do “processo reeducativo”. Na época, Joaquim Chissano ocupava a pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros e viria a suceder na Presidência da República, após a morte de Samora Machel, num acidente de avião em 1986. Chissano elogia ainda o processo reeducativo, como disse numa entrevista, em 2012 , à DW África: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que tinham roubado ou até tinham assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios”. "Ainda bem que terminou" Contudo, opinião diferente tem tanto quem passou pelos centros de reeducação como quem acompanhou o fim do programa do governo. Uma ativista moçambicana, que pediu o anonimato, viveu de perto, no Niassa, o fim do processo reeducativo assim como do programa que se seguiu, a Operação Produção (de trabalhos forçados). Segundo a ativista“ falar abertamente nesse assunto é um pouco difícil, porque é considerada uma questão política e também foi um projeto menos sucedido que trouxe a perda de muitos cidadãos. (…) Houve feridas abertas, famílias separadas, pais e filhos, muitos perderam a vida. Não foi bem sucedido esse plano. Ainda bem que terminou, porque hoje em dia não vem ninguém para o Niassa para ser reeducado”.








Fonte: Anuário das Testemunhas de Jeová de 1996.



*** yb96 pp. 116-185 Moçambique ***

Moçambique

“FICA sabendo, Chilaule, que aqui é Moçambique, e vocês nunca serão reconhecidos neste país. . . . Mas você esquece isso!” Quando agentes da agora extinta Polícia de Investigação e Defesa do Estado (PIDE), irados, dirigiram estas palavras a uma das Testemunhas de Jeová, era o auge do domínio colonial português em Moçambique. O domínio da Igreja Católica Apostólica Romana era indisputado.

Mas as Testemunhas de Jeová não pararam de expressar publicamente a sua fé em Jeová, nem deixaram de falar a outros sobre os amorosos propósitos Dele. Sua história em Moçambique fornece prova eloqüente da qualidade da sua devoção a Jeová. Eram fortalecidas pela sua confiança no amor de Deus e de Seu Filho, o tipo de amor descrito pelo apóstolo Paulo ao escrever: “Quem nos separará do amor do Cristo? Acaso tribulação, ou aflição, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Assim como está escrito: ‘Por tua causa estamos sendo entregues à morte o dia inteiro, temos sido considerados como ovelhas para a matança.’ . . . Estou convencido de que nem a morte, nem a vida, . . . nem governos, nem coisas presentes, nem coisas por vir, . . . nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criação será capaz de nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” — Rom. 8:35-39.

A história dos servos de Jeová em Moçambique é um registro de pessoas que, mesmo despojadas de todos os seus bens materiais, eram ricas por causa da sua bem-arraigada fé. Viram a evidência do amor que Deus lhes tinha e tinham um intenso amor uns aos outros. Mas, antes de examinarmos esta história, demos uma olhada no próprio país.

Sua beleza e suas peculiaridades

Moçambique, com uma população calculada em 17.400.000, estende-se por quase 2.500 quilômetros pela costa sudeste da África. O clima é basicamente tropical, e os produtos agrícolas são tropicais: coco, ananás, castanha de caju, mandioca e cana-de-açúcar. Frutos do mar também são uma parte destacada da alimentação.

Os moçambicanos, na maior parte, são um povo alegre e bem-humorado, que ama a vida. Dentre eles procederam atletas de fama mundial. Naturalmente, estes são poucos. Mas há mais de 19.000 que são vencedores numa corrida que envolve outros valores. São as Testemunhas de Jeová, cuja história em Moçambique remonta a 1925.

Sementes da verdade criam raízes

Foi naquele ano que Albino Mhelembe, moçambicano que trabalhava nas minas de Johanesburgo, África do Sul, ficou conhecendo as boas novas do Reino de Deus. As sementes da verdade do Reino criaram raízes no seu coração e ele logo foi batizado. Voltando para casa, passou a pregar aos membros da sua anterior Igreja da Missão Suíça, em Vila Luísa (hoje Marracuene), na província mais sulina de Moçambique. Esses africanos recém-interessados eram muito zelosos e amiúde viajavam 30 quilômetros para chegar às reuniões. Formaram-se novos grupos, inclusive um em Lourenço Marques, agora Maputo.

Por volta desta época, a pregação da mensagem da Bíblia estava começando mais ao norte. Gresham Kwazizirah, africano em Niassalândia (hoje Malaui), havia estudado o livro A Harpa de Deus com a ajuda de John e Esther Hudson, da África do Sul. Em 1927, Gresham, acompanhado por Biliyati Kapacika, mudou-se para Moçambique à procura de emprego. Entraram no país pela região de Milange e seguiram para o sul até Inhaminga, Sofala. Ali conseguiram emprego nos Caminhos de Ferro Trans-Zambézia.

Em Inhaminga encontraram também uma congregação dum movimento chamado Watch Tower (Torre de Vigia) e seu pastor Robinson Kalitera. Quando Kalitera ouviu os ensinos de A Harpa de Deus, seus olhos se abriram. Reconheceu que estava enganado, e ele e toda a sua congregação começaram a se associar com a organização de Jeová.

O campo europeu recebe atenção

Em 1929 chegaram a Lourenço Marques, procedentes da África do Sul, as primeiras Testemunhas européias, Henry e Edith Myrdal, que começaram a dar testemunho à população portuguesa. Quatro anos depois, juntou-se a eles o casal Jager. Em resultado da sua vinda, lançaram-se muitas sementes da verdade bíblica.

Daí, em 1935, mais dois pioneiros, Fred Ludick e David Norman, fizeram uma visita a Lourenço Marques. Ficaram com a família Myrdal. Todavia, no seu quinto dia de serviço, foram abruptamente apanhados pela polícia secreta, na residência dos Myrdal, lançados na Maria Preta (um furgão usado para transportar marginais) e levados a um alto oficial, chamado Sr. Teixeira. Quando David disse destemidamente que sabia que o bispo estava por detrás de toda a conspiração, o Sr. Teixeira saltou e berrou: “Se vocês fossem cidadãos deste país, eu os baniria agora mesmo para a ilha da Madeira, mas como são sul-africanos, vou deportá-los imediatamente!” Naquele mesmo dia, foram escoltados até a fronteira por dois carros cheios de policiais fortemente armados. Mas ao chegarem à fronteira, os irmãos deram testemunho aos guardas policiais, deixaram publicações com eles e apertaram a mão de todos, antes de seguirem viagem.

Severas provas

Janeiro Jone Dede, humilde lavrador africano, conheceu a verdade em 1939, em Inhaminga. Retornando ao seu lar em Mutarara, falou da verdade aos familiares, que eram membros dum grupo religioso que praticava a poligamia. Ele se tornou pioneiro especial, e dois de seus irmãos carnais, Antônio e João, serviram como pioneiros regulares. No entanto, em 1946, Janeiro foi preso e mandado a Tete, onde o fizeram limpar sanitários dos europeus, por quatro anos. Depois foi transferido para a prisão central na Beira, e dali foi transportado de maneira tanto estranha como desumana para Lourenço Marques. Foi enviado de barco numa caixa cheia de água salgada, ficando apenas com a cabeça para fora. Chegando a Lourenço Marques, emergiu nu; sua roupa se tinha desintegrado. Deram-lhe um saco para se cobrir. No seu julgamento, mandaram que abandonasse sua religião e seu Deus, mas assim como fizeram os apóstolos de Jesus Cristo, ele respondeu: “Importa obedecer a Deus antes que aos homens.” — Atos 5:29.

Depois do julgamento, Janeiro foi colocado numa cela isolada dentro duma caixa pequena de madeira, que tinha apenas uma minúscula abertura pela qual enfiavam diariamente alguns pedaços de fruta. Uma semana depois, quando o tiraram dali, praticamente não conseguia ficar de pé. Junto com seus irmãos carnais, Antônio e João, ele foi deportado para São Tomé e Príncipe, para cumprir uma sentença de sete anos. Durante este tempo, os irmãos Dede  ajudaram a formar uma congregação nessas ilhas penais. Quando Portugal Dede, que se encontrava na África do Sul, ficou sabendo da deportação dos seus irmãos, voltou a Mutarara para cuidar da congregação até que eles fossem soltos da colônia penal.

E que dizer das Testemunhas no sul? Sofrendo dura perseguição, também provaram ser Testemunhas leais. Entre eles estava Albino Mhelembe, que então já estava avançado em anos. Em 1957, ele e outros de Lourenço Marques também foram deportados para São Tomé, mas continuaram a dar testemunho. Sional Tomo, embora trazido de volta de São Tomé depois de dois anos, foi novamente exilado, mas esta vez para Meconta, na província de Nampula. Ele faleceu ali, mas deixou uma congregação formada como evidência do seu ministério.

“Eu serei pastor do rebanho de Deus”

Foi assim que Calvino Machiana respondeu quando seu professor perguntou aos alunos o que queriam ser quando crescessem. Mais tarde, em Johanesburgo, um ex-colega de escola lhe deu testemunho. Mas foi só quando retornou a Lourenço Marques, em 1950, que ele finalmente cortou os laços com a Igreja da Missão Suíça. Quando a polícia colonial, a PIDE, prendeu e deportou os mais experientes do grupo, os que ficaram ali não tinham supervisão.

Providencialmente, Nelli Muhlongo, uma sul-africana, veio visitar seus parentes na vizinhança onde Machiana morava. Machiana soube que ela era Testemunha de Jeová e falou-lhe sobre os interessados na região. Ela os reuniu e iniciou um estudo bíblico em grupo. Havia seis participantes neste grupo de estudo. A irmã Muhlongo pediu a Machiana que dirigisse o estudo, mas ele recusou, dizendo: “Não sou batizado.” Ela respondeu: “Eu estou aqui apenas de visita. Quando for embora, você terá de tomar a dianteira.” De modo que Machiana tornou-se “pastor do rebanho de Deus” mais cedo do que esperava.

“Zunguza, . . . volte ao seu país”

Em 1953, o jovem Francisco Zunguza partiu da Beira para a Cidade do Cabo, na África do Sul. Seu objetivo era conseguir uma bolsa de estudos para estudar Medicina em Londres. Sua bagagem incluía o livro Filhos, que um amigo lhe dera de presente. Ele ficou em Pretória com uma família anglicana, que certo dia o viu ler o livro e lhe perguntou se ele era Testemunha de Jeová. Respondeu que não, mas que apenas estava lendo o livro. No entanto, a família bondosamente o pôs em contato com uma Testemunha de Jeová, que então iniciou um estudo com ele. Dois anos depois de ter chegado à África do Sul, foi batizado.

O irmão Zunguza se lembra de ter recebido o seguinte conselho de irmãos maduros na congregação: “Zunguza, é melhor que volte à sua terra, Moçambique, e que trabalhe lá. Você agora já é batizado. Por que procurar outras coisas? Não vale a pena.” (Note Romanos 11:13; Filipenses 3:7, 8; 1 João 2:15-17.) O irmão Zunguza aceitou este conselho e sem demora retornou a Lourenço Marques, onde se juntou ao pequeno grupo lá. Mais tarde, casou-se e, com a esposa Paulina, foi usado extensivamente pela organização de Jeová no serviço de viajante em todo Moçambique. Seu amor a Deus passou por severas provas de perseverança. Apesar de uns 14 anos que passou em prisão, em campos de concentração e sob restrições governamentais, ele permaneceu fiel. É compreensível que seja amado e muito apreciado pelos irmãos moçambicanos. Conforme diz o próprio irmão Zunguza, “foi melhor que voltei à minha terra”.

Tentativas de obter reconhecimento legal

Preocupados com a perseguição e as deportações movidas pelo governo colonial, a congênere sul-africana da Sociedade, em 1954, enviou a Moçambique Milton Bartlett, formado na Escola Bíblica de Gileade da Torre de Vigia. Durante a estada de apenas poucos dias, ele conseguiu falar com o cônsul americano e com uma alta autoridade portuguesa, que recomendou que fizesse ao Governador Geral um requerimento de reconhecimento legal. A autoridade disse, porém, que por causa da concordata do governo com o Vaticano, mesmo certo grau de liberdade concedida às Testemunhas de Jeová nunca lhes daria a liberdade usufruída pela Igreja Católica Romana.

Tentou-se outra vez no ano seguinte, quando John Cooke, outro formado em Gileade, visitou o cônsul britânico em Moçambique. Embora o cônsul fosse amigável, mencionou que o cardeal católico fizera recentemente na imprensa um ataque contra todas as formas de protestantismo. O cônsul acrescentou também que a polícia de segurança considerava as Testemunhas de Jeová perigosas. Na conclusão, ele expressou a opinião de que, dentre todas as “seitas”, para usar a sua palavra, as Testemunhas eram as que tinham a menor chance de obter reconhecimento legal.

Não obstante, a visita do irmão Cooke produziu bons resultados. Ele conseguiu fazer uma revisita a um jovem português, interessado, de nome Pascoal Oliveira. Pascoal estivera anos antes em contato com a verdade em Lisboa. Providenciou-se um estudo com ele e seus pais. Pascoal dedicou-se mais tarde a Jeová.

Em 1956, a congênere da Sociedade na Niassalândia, que então cuidava da obra em Moçambique, começou a enviar pioneiros especiais pela fronteira para pregar em aldeias na região norte. Outros também vieram servir onde havia necessidade em Moçambique, e sua influência foi sentida especialmente nas regiões fronteiriças.

Retorno dos exilados

Com o tempo, Janeiro Dede e seus irmãos retornaram de São Tomé. Em São Tomé haviam conseguido pregar livremente, mas ao retornarem para casa, receberam chicotadas e foram mandados parar com a atividade de pregação ou seriam deportados de novo para nunca mais voltar. Como isso era semelhante ao tratamento dispensado aos apóstolos de Jesus Cristo pelo Sinédrio judaico! — Atos 5:40-42.

Janeiro e seus irmãos não deixaram que essas ameaças os impedissem de servir a Jeová. Em março de 1957, Janeiro foi designado pioneiro especial, e posteriormente, durante mais de dez anos, serviu como superintendente de circuito na maior parte do país.

Testemunho dado durante a noite

Recém-interessados continuavam a juntar-se ao grupo em Lourenço Marques. Uma das casas em que se realizava um estudo era a de Ernesto Chilaule, moçambicano. Também Antônio Langa morava ali. Tendo tido formação católica, Langa questionava pontos doutrinais e exigia provas, especialmente a respeito da Trindade. O grupo temia que ele os denunciasse à PIDE (Polícia de Investigação e Defesa do Estado). Langa, porém, tinha interesse sincero na verdade e continuava a escutar o estudo do lado de fora da casa, escondido debaixo da escada. Baseado no que ouvia, concluiu que esta era a verdade.

Certo dia, um irmão deu a Langa de presente o livro “Seja Deus Verdadeiro”. No dia seguinte, ao voltar do trabalho, Langa começou a ler o livro às duas horas da tarde e não o largou até chegar ao fim, às duas horas da madrugada! Depois disso, passou a assistir regularmente às reuniões e a insistir que seu amigo Chilaule também lesse o livro, para que pudessem começar a pregar.

Escolheram como território os grupos animistas sionistas (Mazione) nos arrabaldes de Lourenço Marques. À noite, quando esses grupos se reuniam para seus rituais ao som de tambores, com danças, bebedeiras e música, os dois se dirigiam a eles e, depois de receber permissão do líder do grupo, proferiam um breve discurso. Muitas vezes já era de madrugada quando voltavam para casa. Que zelo na divulgação da recém-encontrada fé!

Batismo em Lourenço Marques

Quando o grupo que relatou serviço de campo atingiu 25, escreveu-se uma carta à congênere sul-africana, pedindo que enviasse um representante para batizar esse novatos. A resposta dizia que o próprio irmão Zunguza devia cuidar disso. Em 24 de agosto de 1958, numa reunião realizada num lugar discreto, 13 pessoas foram batizadas — as primeiras em Lourenço Marques. Este grupo incluía Calvino Machiana, Ernesto Chilaule e Antônio Langa, com as respectivas esposas, bem como Paulina Zunguza.

Em 1959, depois de o irmão Zunguza se ter mudado para Beira, o irmão Chilaule foi convocado pela PIDE. Esta havia interceptado a sua correspondência e a havia lido. Ele foi interrogado a manhã toda. Naquela tarde, agentes foram à sua casa e confiscaram todas as publicações. Os irmãos e os interessados que viram o Land-Rover da polícia diante da casa de Chilaule temiam que todos eles também fossem presos. Surpreendentemente, porém, uma semana depois, todos os livros foram devolvidos. Este foi o encorajamento de que o grupo precisava.

Visitas oportunas dão encorajamento

No ínterim, Pascoal Oliveira e o pequeno grupo de europeus em Lourenço Marques receberam visitas edificantes de Halliday e Joyce Bentley, um casal de missionários enviados pela congênere na Niassalândia. Suas visitas, duas vezes por ano, incluíam Beira, uns 720 quilômetros ao norte da capital, bem como outras cidades. Mais tarde, Milton Henschel, da sede mundial, também os visitou e encorajou para continuarem a cooperar com a organização de Jeová. A primeira congregação de Testemunhas moçambicanas já funcionara na capital por alguns anos quando, em 1963, se formou ali uma congregação para os publicadores europeus.

Proclamação corajosa das boas novas

Depois que a polícia colonial, a PIDE, devolveu as publicações de Ernesto Chilaule, o grupo africano em Lourenço Marques perdeu o medo. Eles se reuniam aos domingos perto da movimentada feira Xipamanine, na sombra duma árvore. Usando um sistema de amplificação de som, consideravam o texto do dia. O grupo se separava então em pares para visitar as casas e as lojas em volta da feira. Às 11h30 voltavam ao lugar original de reunião para um lanche antes de começarem seu amplamente anunciado discurso público ao meio-dia. Ocasionalmente, quando alguns publicadores demoravam em voltar do ministério, eram chamados pelo sistema sonoro: “Está na hora . . . Está na hora . . . Vamos voltar que já está na hora . . .”

Começava a ajuntar-se uma multidão. Além dos pessoalmente convidados e dos próprios irmãos, vinham muitos curiosos atraídos pelo som. Formavam um grande círculo nesta área movimentada e então começava o discurso. Os moradores da redondeza saíam às varandas de suas casas para escutar, muitos com a Bíblia para acompanhar os textos lidos. Os irmãos continuaram fazendo isso por alguns anos, revezando entre as feiras de Xipamanine e Chamanculo, e a Avenida Craveiro Lopes (agora Avenida Acordos de Lusaka). Isto contribuiu, nos anos 60, para o aumento de uma para quatro congregações.

Teve cartão primeiro na PIDE

Quem foi contatado assim foi Micas Mbuluane. Quando aceitou o livro “Seja Deus Verdadeiro” e solicitou um estudo bíblico, ele perguntou: “Quanto é que vou pagar por isso?” Nunca se cobra por esses estudos, mas os irmãos sugeriram que ele colocasse sua casa à disposição para um discurso no domingo seguinte. Ele concordou prontamente. O orador era Ernesto Chilaule e havia umas 400 pessoas presentes. Um informante da PIDE comunicou a reunião à polícia. O chefe de polícia intimou Micas a comparecer ao seu gabinete. Micas ficou preocupado. Segundo ele disse: “Eu, dobro gentio, tendo assistido só a uma reunião. O que vou responder?” (Localmente, “gentio” significa um descrente; “dobro gentio”, enfatizava a inutilidade que sentia.) Chamou imediatamente o irmão que estudava com ele, para receber um treinamento nos poucos minutos que tinha antes de atender à intimação.

Chegando à polícia, perguntaram a Micas qual era sua religião. Ele respondeu sem hesitação: “Testemunha de Jeová.” Mário Figueira, o chefe de polícia, passou então a interrogá-lo: “Então, em sua casa se fez uma grande reunião, com elementos do estrangeiro, atrás de portões fechados e sem a polícia poder entrar. Com certeza tratava-se de assuntos da Frelimo.” Ele se referiu à Frente de Libertação de Moçambique, movimento que na época lutava pela independência de Moçambique. Micas pensava em como ia responder; não era nada do que haviam “treinado”. Procurou explicar com diplomacia todo o arranjo que havia visto e em que havia participado pela primeira vez.

“Está bem, Micas, basta”, interrompeu o Sr. Figueira. Abraçando Micas, prosseguiu: “O que você disse é verdade. Desde o início da história, os servos de Deus têm sido perseguidos e vocês também, porque falam a verdade. Só peço uma coisa: da outra vez nos avise sobre uma reunião tão grande, para evitar controvérsias. Vá em paz. Mas amanhã volte aqui, trazendo duas fotos para abrir seu cartão de Testemunha de Jeová.” (Naquela época, todos os responsáveis na congregação tinham um cartão arquivado na PIDE.) Micas gosta de dizer com uma boa gargalhada: “Eu, dobro gentio, tive cartão primeiro na PIDE do que na congregação!” Lamentavelmente, este tratamento benévolo dos agentes de polícia não era a norma.

Eventos em Malaui beneficiam a obra no norte

Três dos Congressos de Distrito “Fazer Discípulos” em Malaui, em 1967, foram realizados perto da fronteira de Moçambique, facilitando assim a alguns irmãos moçambicanos estar presentes. Mas em outubro, o Presidente H. Kamuzu Banda decretou que as Testemunhas de Jeová eram uma sociedade proibida em Malaui. Irrompeu contra elas uma feroz perseguição. Em todo o país, suas propriedades foram destruídas, elas foram espancadas, algumas foram mortas e mais de mil cristãs foram estupradas. Em desespero, muitos sobreviventes procuraram refúgio em Moçambique. Ao contrário do que se podia esperar, as autoridades portuguesas as receberam hospitaleiramente. Providenciou-se para elas alimento em dois grandes campos perto de Mocuba, na província de Zambézia. Só num destes campos havia 2.234 de nossos irmãos. Sua presença contribuiu muito para a divulgação da mensagem do Reino no norte.

Na Beira, a segunda maior cidade do país, as Testemunhas moçambicanas usufruíam maior liberdade durante aquela época do que as na capital. Podiam realizar suas reuniões, mas eram restritas quanto à pregação de casa em casa, especialmente nos bairros residenciais europeus.

Uma notificação polêmica causa divisões

Em 1968, os anciãos em Lourenço Marques receberam uma intimação da PIDE. Receberam uma “Notificação” que dizia que as Testemunhas de Jeová estavam proibidas de fazer proselitismo e que se deviam reunir apenas com os seus familiares. Deviam assinar esta “Notificação” em comprovação de que os anciãos a tinham recebido.

Entendendo que isso de forma alguma constituía uma renúncia à sua fé, mas apenas era um comprovante de que receberam a notificação, os anciãos a assinaram. No entanto, estavam decididos a continuar a obedecer as injunções bíblicas de se reunir e de pregar, embora discretamente e em grupos menores. (Mat. 10:16; 24:14; 28:18-20; Heb. 10:24, 25) Apesar da sua intenção, ocorreu uma divisão entre os irmãos. Alguns achavam que os anciãos tinham transigido por assinarem o documento.

Na tentativa de provar ao grupo dissidente que não agiram por medo nem transigiram, os anciãos formaram uma comissão encabeçada por Ernesto Chilaule. Dirigiram-se às autoridades da PIDE para saber o motivo da proscrição. “O que há de errado com as Testemunhas de Jeová?” perguntaram. Disseram-lhes: “Não temos problemas com vocês, mas esta religião está proscrita em Moçambique. Mesmo que não façam nada de errado, o governo não autoriza esta religião.” As autoridades acrescentaram que, se alguém quisesse praticar esta religião, teria de ir a outro país.

A resposta dada pelo irmão Chilaule e seus companheiros foi firme: “Se o governo achar que ensinar as pessoas a não roubar, não matar e não praticar nenhuma maldade é errado, então que nos prenda. Continuaremos a ensinar a verdade, e é exatamente isso que faremos ao sair daqui.” Essas expressões nos lembram de novo um dos apóstolos de Jesus perante o Sinédrio. — Atos 4:19, 20.

Será que esta ação corajosa reconciliou os dissidentes? Infelizmente, não. Apesar de toda a ajuda que se lhes ofereceu, inclusive repetidas visitas de um representante especial da congênere sul-africana da Sociedade, continuaram a seguir um rumo independente, chamando-se de “Testemunhas de Jeová Livres”. Tiveram de ser desassociados por apostasia. A Sociedade escreveu mais tarde que a adoção de cautela em face de perseguição não é um indício de medo, mas está em harmonia com o conselho de Jesus em Mateus 10:16.

A PIDE desfecha um duro golpe

Menos de um ano depois dessa rebelião, a PIDE prendeu 16 irmãos que ocupavam cargos de responsabilidade. Entre estes estavam Ernesto Chilaule, Francisco Zunguza e Calvino Machiana. Foi nesta ocasião que agentes da PIDE dirigiram ao irmão Chilaule as palavras citadas no início deste relato.

Houve mais prisões. Como a PIDE chegou a saber os nomes e os endereços dos servos designados? Numa busca policial na casa do irmão Chilaule encontraram numa mesa um arquivo de cartas da Sociedade com os nomes dos servos designados, bem como o manual Pregando Juntos em União. De posse desta informação, foram à procura especificamente do servo de congregação, do servo ajudante de congregação, do dirigente do Estudo de A Sentinela, do dirigente do Estudo de Livro de Congregação e de outros. Estes foram lançados na penitenciária da Machava sem julgamento — condenados a dois anos de prisão.

A congênere sul-africana encorajava os irmãos na prisão e fornecia ajuda às famílias dependentes deles. A Anistia Internacional fez esforços para libertar esses irmãos, e forneceu também algum apoio às suas famílias dependentes. Os irmãos livres em Moçambique providenciaram fornecer alimentos aos em necessidade. Alita, filha do irmão Chilaule, diz sobre este arranjo: “Nunca nos faltou o alimento diário. Às vezes era até de qualidade superior ao que estávamos acostumados.”

A pregação prossegue

Apesar dessa “época dificultosa”, o povo de Jeová não podia parar a obra vitalizadora da pregação das boas novas do Reino. (2 Tim. 4:1, 2) Fernando Muthemba, que se tornou uma das colunas da obra neste país, conta que na sua congregação tanto o servo de congregação como o servo ajudante de congregação foram presos. Visto que ele era servo de estudo bíblico, foi preciso que tomasse a dianteira. A Sociedade deu instruções para que fossem proferidos uma série de discursos baseados no livro A Verdade Que Conduz à Vida Eterna. Usando de devida cautela, ele providenciou que fossem proferidos à noite, nos grupos de estudo de livro. Cada orador proferiria seu discurso em dois grupos por noite. Muitos convidados receberam assim este alimento espiritual, aumentando seu apreço pela verdade.

Deu-se um treinamento intensivo aos novos, para que pudessem ser eficazes no seu ministério e corajosos em face de perseguição. Felipe Matola descreve como tirou proveito deste treinamento: “Éramos treinados a partilhar aquilo que aprendíamos com outros, e com habilidade provar na Bíblia tudo o que ensinávamos. Após duas semanas de estudo, já começávamos a pregar informalmente. Na terceira semana, juntávamos outros interessados para participar do estudo. Na quarta semana, começávamos a pregar de casa em casa. Os novos eram encorajados a suportar provações e prisões, e a não ter medo. Apenas um irmão com cargo de responsabilidade dessa congregação estava em liberdade, e ele dizia: ‘Não sei quando também serei preso. É por isso que todos vocês devem aprender a cuidar da congregação.’” Quando também o irmão Matola foi mandado para a prisão da Machava, seu zelo não diminuiu.

Pregação e reuniões na prisão

Assim que foi possível, o grupo na prisão da Machava organizou todas as reuniões, a fim de continuarem espiritualmente fortes. Como puderam fazer isso, visto que estavam sob a vigilância de guardas? Foi assim, disse Filipe Matola: “Aproveitávamos as ocasiões em que tínhamos acesso ao pátio da prisão. O designado a proferir um discurso na Escola do Ministério Teocrático andava em volta com mais quatro, como se estivessem passeando e conversando. Deixava então o primeiro grupo e fazia o mesmo com um segundo, e assim sucessivamente, até que tivesse proferido seu discurso em cada grupo.”

No início, tentaram fazer o estudo de livro nas celas usando uma publicação, mas o seu estudo foi descoberto e foram proibidos de continuar. Mudaram de método. Luís Bila, um dos presos, conta: “Passamos a preparar-nos individualmente, e no dia e hora marcados, e sem publicação na mão, andávamos em volta usando o mesmo método da Escola do Ministério Teocrático, cada um destacando os pontos principais da matéria. Este método era altamente proveitoso, pois tínhamos de memorizar a matéria, para nunca mais a esquecermos.”

Os familiares em liberdade ajudaram por esconder publicações embaixo da comida e introduzi-las clandestinamente na prisão quando faziam visitas. Os irmãos eram assim nutridos física e espiritualmente.

Houve também ocasiões em que outros presos puderam beneficiar-se das reuniões. Numa ocasião, em que 3 irmãos partilhavam uma ala da prisão com outros 70 presos, proferiu-se um discurso público. Um irmão serviu de presidente e outro fez a oração. Os três cantaram então e se proferiu o discurso. A assistência foi de 73 pessoas.

Ernesto Chilaule ocupava a mesma cela com um membro da Frelimo, preso pela PIDE por lutar pela independência. Mantinham conversações amigáveis e se deu testemunho sobre a esperança do Reino de Deus. Mais tarde, iam encontrar-se de novo sob circunstâncias diferentes.

Ansioso de transmitir a verdade em Inhambane

Inhambane, uma das províncias sulinas, tornou-se o palco de atividade intensa realizada por um humilde pedreiro. Este homem, Arão Francisco, depois de ouvir em 1967 um discurso em Lourenço Marques, não teve dúvidas de ter encontrado a verdade. Sentiu-se compelido a transmitir a pessoas na sua terra o que tinha aprendido. E fez isso. Depois de retornar a Lourenço Marques, ele foi batizado por volta da época em que o grande grupo de anciãos foi preso pela PIDE. Arão sentia-se responsável pelo interesse que tinha estimulado entre a sua própria gente e temia que fosse preso antes de poder ajudá-los mais. Alguns dos irmãos tentaram dissuadi-lo, dizendo que ainda era novo demais na verdade para ir pregar sozinho. Esperou alguns meses, mas então não podia mais resistir ao desejo de dar testemunho à sua gente. Reuniu a esposa e dois filhos, e eles voltaram a Inhambane. Começando apenas com a sua família, ele realizava todas as reuniões.

Disseminou a verdade na cidade de Inhambane, em Maxixe e em outras localidades da região, lançando a base para as congregações hoje encontradas ali. Quando um sacerdote católico quis intervir, dizendo: “Você não pode formar nenhum grupo aqui”, Arão respondeu corajosamente: “As boas novas que trago não têm limites. Podem entrar em qualquer parte.” E é isso mesmo que Jesus disse que ia acontecer, conforme mostra Atos 1:8.

O sacerdote local convocou uma reunião para decidir se Arão devia ser expulso da região. Arão afirmou que não ia mudar-se. O que não era surpresa, o sacerdote recorreu então à sua aliada favorita, a PIDE.

PIDE caça um pregador-construtor

Certo domingo, quando Arão estava visitando outros grupos distantes, quatro agentes da PIDE assistiram à reunião em Inhambane. Afirmaram ser Testemunhas de Jeová que estavam de passagem. No fim da reunião, porém, identificaram-se e exigiram ver Arão. Não o encontrando, prenderam oito dos irmãos presentes.

Visto que Arão estava construindo uma casa para o administrador de Ngweni, os agentes o foram procurar ali. Arão ouviu o administrador dizer-lhes: “Não posso permitir que ele vá por causa de religião. Primeiro ele tem de acabar o trabalho de minha casa.” Os agentes perguntaram então: “Então é ele quem está construindo esta casa?” “Sim”, respondeu o administrador, “e ele construiu também aquela casa de Maxixe e outras mais. Este serviço que ele está fazendo na minha casa, ninguém aqui sabe fazer. Ele construiu o escritório de registro em Maxixe, e ainda tem de construir a casa de pouso na paragem”. Depois de ouvirem isso, os agentes disseram: “Voltaremos a buscar Arão para construir a casa do administrador de obras públicas.”

Arão foi preso e usado para fazer construções em vários projetos do governo. Mesmo preso, porém, teve muitas oportunidades de dar testemunho.

Um oficial da PIDE costumava chamar Arão à noite para o seu gabinete, a fim de que o ajudasse a estudar o livro Verdade. Quando apareciam pessoas, o oficial, o Sr. Neves, apanhava depressa alguns documentos e fingia fazer um interrogatório. Certo dia ele disse: “Arão, com aquilo que me tens ensinado, fico convencido. Toda a minha vida, desde Lisboa até aqui, tenho falado com Testemunhas de Jeová. Agora, quando me aposentar em breve, vou ser uma delas. Mas antes de eu sair tenho de libertar-te. Acaba com o trabalho atual, e eu vou falar com o inspetor geral para arranjar outro pedreiro. Para evitar problemas, não vou voltar a Lisboa, mas venderei tudo o que tenho e vou para a América. Estás-me ouvindo, Arão? Não digas nada a ninguém.”

O Sr. Neves estava decidido a cumprir a sua promessa e até mesmo libertou os irmãos encarcerados em Inhambane. No entanto, libertar Arão não era tarefa fácil. A PIDE passara a considerá-lo seu construtor. O Sr. Neves já se tinha então aposentado, mas ia todos os dias falar com seu amigo e apelar para o inspetor geral, a fim de que libertasse Arão. Conforme prometera, só depois de Arão ser liberto é que o Sr. Neves seguiu seu caminho. Onde estará agora o Sr. Neves? Será que cumpriu o resto da sua promessa? Esperamos sinceramente que sim.

Mudanças políticas trazem um alívio temporário

Em 1.° de maio de 1974 ouviu-se um grito de alegria na prisão da Machava. A “Revolução dos Cravos”, de 25 de abril, tinha acabado com a ditadura em Portugal, resultando em mudanças dramáticas nas suas colônias ultramarinas. Em 1.° de maio, concedeu-se anistia a todos os presos políticos. As Testemunhas de Jeová, encarceradas por sua neutralidade política, estavam incluídas na anistia. Moçambique preparava-se então para se tornar uma nação independente.

Os irmãos, ao serem libertos, ficaram animados de ver os aumentos no número de servos de Jeová. Agradou-lhes também ver como estavam espiritualmente fortes os que tinham permanecido livres. (Note Filipenses 1:13, 14.) Aproveitando-se da sua nova liberdade, realizaram uma assembléia de circuito em grande estilo. O que aumentou o seu prazer foi a presença de dois irmãos sul-africanos muito queridos — Frans Muller, coordenador da Comissão de Filial da África do Sul, que mostrara vivo interesse no bem-estar dos irmãos em Moçambique, e Elias Mahenye, que servira por muitos anos como superintendente de circuito no sul de Moçambique.

Nesta assembléia, os que haviam ficado encarcerados foram incentivados a trabalhar unidos com a organização de Jeová que avança rapidamente. O irmão Mahenye lembrou aos irmãos: “A PIDE desapareceu, mas o avô dela, Satanás, o Diabo, ainda existe. Fortaleçam-se e ganhem coragem.” Pediu então aos que tinham estado na prisão que se levantassem. Eram algumas dezenas. A seguir, pediu que se levantassem aqueles que tinham entrado na verdade durante o período de encarceramento desses irmãos. Metade da assistência de cerca de 2.000 presentes pôs-se de pé. O irmão Mahenye concluiu: “Não há razão para vocês terem medo.”

Estas eram palavras oportunas de encorajamento. Nuvens escuras se formavam no horizonte, e um teste supremo de amor a Deus aguardava todos os do povo de Jeová em Moçambique.

O ano de 1974 passou rapidamente. Durante aquele ano, 1.209 foram batizados; 2.303 em 1975. Muitos dos que hoje são anciãos foram batizados naquela época.

Entretanto, o fervor revolucionário tomava conta do país. O slogan “Viva Frelimo” tornou-se símbolo da luta de dez anos pela liberdade e independência. Havia uma euforia em toda a nação, e para a maioria parecia inimaginável que alguém não participasse nisso. Os sentimentos prevalecentes estavam prestes a fechar a cortina para a curta liberdade dos irmãos, e ia ser uma cortina de ferro.

Ordens de prisão

À medida que os preparativos para o dia da independência, 25 de junho de 1975, ganhavam forma, a posição neutra das Testemunhas de Jeová ficava cada vez mais evidente. Irmãos responsáveis procuravam conseguir uma entrevista com o novo governo, mas em vão. O recém-empossado presidente praticamente deu uma ordem ao gritar num discurso de rádio: “Nós daremos destino definitivo a essas Testemunhas de Jeová . . . Nós pensamos que eles são agentes deixados pelo colonialismo português; são da antiga PIDE . . . Por isso, nós propomos ao povo prendê-los imediatamente.”

A tempestade tinha começado. Os chamados grupos dinamizadores de bairros foram mobilizados com um só objetivo, prender todas as Testemunhas de Jeová — no trabalho, em casa, nas ruas, a qualquer hora do dia e da noite, em todo o país. Todos foram compelidos a comparecer às reuniões de bairro, realizadas nas empresas e nos logradouros públicos, e quem não acompanhasse a massa no grito “Viva Frelimo” era identificado como inimigo. Esse tipo de espírito prevalece quando as paixões nacionalistas atingem o auge.

No entanto, é bem conhecido que as Testemunhas de Jeová, embora neutras em assuntos políticos, respeitam a lei e a ordem, tratam as autoridades com respeito, são honestas e pagam conscienciosamente os impostos. Ao longo dos anos, o governo moçambicano iria comprovar este fato. No ínterim, porém, a situação das Testemunhas de Jeová em Moçambique mostrou ser como a dos primeiros cristãos, mortos nas arenas romanas por se recusarem a queimar incenso para o imperador, e como a dos seus irmãos na Alemanha, lançados em campos de concentração por se negarem a gritar “Heil Hitler”. As Testemunhas de Jeová são conhecidas no mundo inteiro pela sua recusa de transigir na sua obediência a Jeová e a Jesus Cristo, o qual disse a respeito dos seus seguidores: “Não fazem parte do mundo, assim como eu não faço parte do mundo.” — João 17:16.

Deportação em massa  para onde?

Em pouco tempo, as prisões de Moçambique ficaram superlotadas com milhares de Testemunhas de Jeová. Muitos familiares ficaram separados. A propaganda intensa gerou tal hostilidade contra as Testemunhas, que muitos, embora não incentivados pelos anciãos, preferiram entregar-se por se sentirem mais seguros com os irmãos e os parentes já na prisão.

A partir de outubro de 1975, as congêneres da Sociedade no Zimbábue (então Rodésia) e na África do Sul receberam muitos relatórios de superintendentes de circuito, de diversas comissões responsáveis e de irmãos individuais, transmitindo o lastimável quadro. Estes relatórios, por sua vez, foram transmitidos ao Corpo Governante das Testemunhas de Jeová. Assim que a fraternidade mundial foi informada da aflitiva situação dos irmãos em Moçambique, em todas as partes da Terra elevavam-se ao céu incessantes orações a favor dos irmãos perseguidos, em harmonia com o conselho de Hebreus 13:3. Somente Jeová podia sustentá-los e ele fez isso a seu modo.

É bem provável que não tenha sido a intenção das altas autoridades governamentais infligir às Testemunhas de Jeová o tratamento brutal que realmente sofreram. No entanto, algumas autoridades de escalão inferior, no esforço decidido de mudar convicções bem arraigadas de consciência, procuravam com meios violentos conseguir um “Viva”. Um dos muitos exemplos é o de Julião Cossa, de Vilanculos, espancado por três horas no esforço de fazê-lo transigir na sua fé, mas em vão. Quando esses atormentadores conseguiam às vezes arrancar à força de alguém um “Viva”, ainda assim não ficavam satisfeitos. Exigiam que a Testemunha também gritasse “Abaixo Jeová” e “Abaixo Jesus Cristo”. As atrocidades sofridas pelos nossos irmãos são demais para serem contadas e muito horríveis para serem descritas. (Veja Despertai! de 8 de março de 1976, páginas 12-22.) No entanto, sabiam que, conforme o apóstolo Paulo escreveu aos cristãos filipenses no primeiro século, sua posição corajosa em face de tribulação e de perseguição era prova da profundeza do seu amor a Deus e fornecia garantia de que Ele os recompensaria com salvação. — Fil. 1:15-29.

As condições sufocantes das prisões superlotadas, agravadas pela sujeira e pela falta de alimentos, causaram a morte de mais de 60 crianças num período de quatro meses, nas prisões de Maputo (ex-Lourenço Marques). Os irmãos ainda livres faziam o melhor que podiam para sustentar os irmãos presos. Nos últimos meses de 1975, algumas Testemunhas venderam seus bens para continuar a fornecer alimentos aos irmãos encarcerados. No entanto, identificarem-se com os em prisão significava pôr em perigo sua própria liberdade, e muitas foram presas ao cuidarem das necessidades de seus irmãos. Era o tipo de amor que Jesus disse que seus verdadeiros seguidores teriam uns aos outros. — João 13:34, 35; 15:12, 13.

Paradoxalmente, no mesmo período, algumas Testemunhas na província de Sofala foram tratadas de modo bem diferente. Ao serem presas, foram levadas ao luxuoso Grande Hotel na cidade da Beira, e foram alimentadas enquanto esperavam seu destino final.

Que destino? Este era uma incógnita, mesmo para os motoristas dos muitos ônibus e caminhões que iam transportá-las.

Destino: Carico, no distrito de Milange

Entre setembro de 1975 e fevereiro de 1976, todas as Testemunhas de Jeová detidas, quer nas prisões quer em campos abertos, foram transferidas. Não revelar o destino foi mais uma arma usada pela polícia e por outras autoridades locais na tentativa de intimidar os irmãos. “Vocês serão comidos por animais ferozes”, disseram-lhes. “É um lugar desconhecido lá para o norte e nunca mais voltarão.” Mesmo familiares descrentes participaram no coro de choro e lamentações, insistindo que os irmãos crentes renunciassem. No entanto, foram poucos os que transigiram.

Mesmo recém-interessados lançaram corajosamente sua sorte com as Testemunhas de Jeová. Este foi o caso de Eugênio Macitela, apoiador zeloso de ideais políticos. Seu interesse foi despertado quando soube que as prisões estavam cheias de Testemunhas de Jeová. Para descobrir quem elas eram, pediu um estudo bíblico, mas logo uma semana depois foi preso e deportado. Ele foi um dos primeiros a ser batizados nos campos de concentração, e hoje serve como superintendente de circuito.

As Testemunhas não demonstravam nenhum medo ou apreensão quando foram tiradas das prisões e embarcadas em ônibus, caminhões e até mesmo aviões. Uma das caravanas mais impressionantes saiu de Maputo em 13 de novembro de 1975. Havia 14 ônibus, ou machibombos como são chamados aqui. A aparentemente inexplicável alegria dos irmãos induziu os soldados encarregados a perguntar: “Como podem estar tão alegres quando nem sabem para onde vão? Para onde vão não é nada bom.” Mas a alegria dos irmãos não diminuiu. Ao passo que parentes descrentes choravam, temendo pelo futuro dos seus entes queridos, as Testemunhas entoavam cânticos do Reino, tais como o intitulado “Investi com Destemor”.

Em cada cidade ao longo do caminho, os motoristas telefonavam para seus superiores para saber o rumo a tomar, e recebiam ordens para seguir até a próxima parada. Alguns dos motoristas se perderam. Finalmente, porém, chegaram a Milange, cidade e distrito situados na província de Zambézia, a 1.800 quilômetros de Maputo. Ali os irmãos foram recebidos pelo administrador com um “discurso de boas-vindas”, uma diatribe cheia de ameaças.

Foram levados 30 quilômetros para o leste, a um lugar nas margens do rio Munduzi, na região conhecida como Carico, ainda no distrito de Milange. Milhares de Testemunhas de Jeová de Malaui, que haviam fugido da perseguição no seu próprio país, viviam ali como refugiados desde 1972. A inesperada chegada dos irmãos moçambicanos foi uma surpresa para os malauianos. Foi uma surpresa para os moçambicanos serem recebidos por irmãos falando uma língua estranha. Mas, foi uma surpresa agradável, e os irmãos malauianos acolheram as Testemunhas moçambicanas com tal cordialidade e hospitalidade, que os motoristas ficaram impressionados. — Note Hebreus 13:1, 2.

O administrador do distrito era o homem que, anos antes, tinha estado na prisão da Machava com os irmãos. Ao receber cada grupo, ele perguntava: “Onde estão o Chilaule e o Zunguza? Sei que hão de vir.” Quando o irmão Chilaule finalmente chegou, o administrador lhe disse: “Chilaule, nem sei como te vou receber. Estamos agora em campos diferentes.” Ele se apegou às suas ideologias e não facilitou as coisas para seus ex-companheiros de cela. Ele era, como costumava dizer, “um cabrito governando no meio de ovelhas”.

Apoio amoroso da fraternidade internacional

A fraternidade internacional das Testemunhas de Jeová expressou sua amorosa preocupação com os irmãos em Moçambique. Inundaram o sistema postal do país com mensagens que apelavam às autoridades moçambicanas. Colegas de trabalho numa firma de telecomunicações costumavam zombar de Augusto Novela, uma Testemunha, e dizer que as Testemunhas de Jeová eram apenas uma seita local. Mas foram silenciados quando começaram a receber mensagens por telex de todas as partes do mundo. A reação sobrepujante atestou que o povo de Jeová está realmente unido pelo amor.

Depois de dez meses, um ministro do governo, de visita para inspecionar os campos, reconheceu que os irmãos tinham sido encarcerados sob falsas acusações. Mas, ainda era muito cedo para esperar a libertação.

Os desafios de uma nova vida

Iniciara-se um novo capítulo da história do povo de Jeová em Moçambique. Os irmãos malauianos na região se tinham organizado em oito aldeias. Obtiveram muita experiência na adaptação para um novo estilo de vida no mato e tinham desenvolvido sua experiência em construir casas, Salões do Reino e até Salões de Assembléias. Os que não tinham experiência anterior na agricultura também aprenderam muito sobre este tipo de trabalho. Muitos dos moçambicanos, que nunca tinham cultivado uma machamba (lavoura), iam aprender pela primeira vez o trabalho duro no campo. Nos primeiros meses, os recém-chegados tiraram proveito da amorosa hospitalidade dos seus irmãos malauianos, que os acolhiam nas suas casas e compartilhavam os alimentos com eles. Mas chegara então o tempo para os irmãos moçambicanos construírem suas próprias aldeias.

Não foi uma tarefa fácil. Começara a estação das chuvas, e a região foi abençoada com água do céu como nunca antes. No entanto, quando o rio Munduzi, que passa pelo centro do campo, transbordou numa região que normalmente passa por secas, os irmãos consideraram isso um sinal de como Jeová cuidaria deles. De fato, nos 12 anos seguintes, o rio nunca se secou como antes. Por outro lado, “o terreno escorregadio e lamacento, provocado naturalmente pelo tempo chuvoso, criava um desafio a mais para os ex-citadinos”, conforme conta o irmão Muthemba. Além disso, não era fácil para as mulheres cruzar o rio, equilibrando-se em pontes improvisadas que nada mais eram do que troncos de árvores. “Para nós homens acostumados a escritórios, o desafio era entrar na mata densa e cortar árvores para construir nossas casas”, conta Xavier Dengo. Essas condições mostraram ser uma prova para a qual alguns não estavam preparados.

Lembramo-nos de que, nos dias de Moisés, as queixas começaram entre “a multidão mista” que acompanhou os israelitas na saída do Egito para o ermo, e que então se estendeu aos próprios israelitas. (Núm. 11:4) De modo similar, entre os que não eram Testemunhas batizadas, um grupo de insatisfeitos surgiu logo no princípio e alguns dos batizados se juntaram a eles. Dirigiram-se ao administrador e o informaram que estavam dispostos a pagar qualquer preço para ser mandados de volta para casa o mais depressa possível. Mas isso não resultou num pronto regresso para casa como haviam esperado. Foram mantidos em Milange, e muitos deles tornaram-se como uma pedra no sapato dos fiéis. Ficaram conhecidos como “os rebeldes”. Viviam no meio dos irmãos fiéis, mas estavam sempre prontos para traí-los. Seu amor a Deus não suportou esta prova.

Por que os salões caíram

Os irmãos malauianos nos campos tinham usufruído considerável liberdade de adoração. Quando os irmãos moçambicanos chegaram, estes inicialmente se beneficiaram com isso. Diariamente, reuniam-se num dos grandes Salões de Assembléias para considerar o texto do dia. Muitas vezes era um superintendente de circuito malauiano quem presidia. “Era fortalecedor”, conta Filipe Matola, “depois de meses de prisão e de viagens, ouvir exortações espirituais na companhia de tantos irmãos”. Mas esta liberdade relativa não durou.

Em 28 de janeiro de 1976, as autoridades governamentais, acompanhadas por soldados, passaram pelas aldeias e anunciaram: “Ficam proibidos de adorar ou rezar nesses salões ou em qualquer parte das aldeias. Os salões serão nacionalizados e usados pelo governo segundo seu critério.” Mandaram que os irmãos trouxessem todos os seus livros e então os confiscaram. Naturalmente, os irmãos esconderam o que puderam. Depois disso, hastearam-se bandeiras na frente de cada salão e postaram-se soldados como guardas para garantir o cumprimento da ordem.

Embora os salões tivessem sido construídos com estacas e tivessem aparência rústica, eram bastante fortes. No entanto, num tempo relativamente curto, todos eles passaram a desintegrar-se. Xavier Dengo conta que, em certa ocasião, ele e o administrador acabavam de chegar a uma das aldeias quando o salão começou a desabar, embora não estivesse chovendo nem ventasse. O administrador exclamou: “O que está acontecendo? Vocês são muito maus. Agora que nacionalizamos os salões, estão todos a cair!” Numa ocasião posterior, o administrador disse a um dos anciãos: “Vocês devem ter rezado para que caíssem os salões, . . . e o vosso Deus os fez cair.”

Organização nas aldeias

Seguindo uma faixa paralela e frontal às oito aldeias malauianas surgiram nove aldeias moçambicanas. Estes dois grupos, unidos pela “língua pura”, iriam conviver ali os próximos 12 anos. (Sof. 3:9) A área de cada aldeia era dividida em quarteirões, com ruas bem cuidadas, tendo cada quarteirão cerca de oito lotes de 25 x 35 metros. As congregações eram agrupadas segundo esses quarteirões. Depois da proclamação da proscrição nos campos, não podiam construir Salões do Reino conspícuos. Assim, em vez disso, construíram para este fim casas especiais em forma de L. Uma viúva ou uma pessoa solteira morava nelas para dar-lhes a aparência de residências. Daí, nas reuniões, o orador ficava no canto do “L” onde podia encarar a assistência em ambos os lados.

Em torno de cada aldeia havia suas machambas. Cada congregação cuidava também duma “machamba congregacional”, que todos participavam em cultivar como contribuição para as necessidades da congregação.

O tamanho de cada aldeia variava segundo a população. Um censo feito em 1979 mostrou que a aldeia moçambicana n.° 7 era a menor, com apenas 122 publicadores e 2 congregações, ao passo que a n.° 9, a maior e mais distante, tinha 1.228 publicadores e 34 congregações. O campo inteiro tinha 11 circuitos. Todo este campo, composto de aldeias malauianas e moçambicanas, bem como de áreas dependentes, passou a ser conhecido como “Círculo do Carico”. O último censo de que temos registro é o de 1981, quando a população do inteiro Círculo do Carico era de 22.529, com 9.000 publicadores ativos. Depois houve mais crescimento. (O então presidente, Samora Machel, declarou que a população era de 40.000, segundo a brochura Consolidemos Aquilo Que nos Une, páginas 38-9.)

Tempo de Chingo, tempo difícil

Naturalmente, as Testemunhas de Jeová não tinham sido levadas a Milange apenas para se tornarem uma colônia agrícola. Não foi sem motivo que o governo chamou o campo de Centro de Reeducação do Carico, evidenciado pelo centro administrativo no meio da aldeia malauiana n.° 4, ocupado pela equipe do governo, com escritórios e residências. Havia também um comandante do campo, seus soldados e uma prisão, na qual muitos dos irmãos ficavam encarcerados por diversos períodos, conforme decisão do comandante.

O comandante mais notório foi Chingo. Seu período de dois anos como comandante ficou conhecido como o tempo de Chingo. Decidido a quebrantar a posição intransigente das Testemunhas de Jeová e a “reeducá-las”, ele recorreu a todas as táticas psicológicas que conhecia, bem como à violência, para atingir seu objetivo. Embora quase sem escolaridade formal, era orador fluente e persuasivo, com uma queda para ilustrações. Usava seu dom para tentar doutrinar os irmãos com sua filosofia política e para enfraquecer o amor que tinham a Deus. Um dos seus planos era “o seminário de cinco dias”.

“O seminário de cinco dias”

O comandante anunciou que se programou um “seminário de cinco dias” e que as Testemunhas deviam escolher os homens mais aptos das aldeias, que poderiam transmitir informações de interesse. Seriam enviados a um seminário a ser realizado num lugar distante. Os irmãos se negaram a isso, duvidando das intenções dele. No entanto, “os rebeldes” presentes indicaram os irmãos em cargos de responsabilidade, inclusive os superintendentes de circuito. Entre estes estavam Francisco Zunguza, Xavier Dengo e Luís Bila. Um caminhão partiu com 21 homens e 5 mulheres. Viajaram centenas de quilômetros para o norte, para uma região ao norte de Lichinga, na província de Niassa. Os homens foram ali lançados num “campo de reeducação” junto com criminosos, ao passo que as mulheres foram levadas a um campo de prostitutas.

Ali foram submetidos a severas torturas, inclusive o que seus atormentadores chamavam de “tipo Cristo”. Os braços da vítima eram esticados em posição horizontal, como que numa cruz, e então se colocava uma estaca paralela aos braços. Enrolava-se fortemente um fio de nylon em volta dos braços e da estaca na extensão de ambos os braços, desde a ponta dos dedos de uma mão até a dos da outra mão. Cortando-se completamente a circulação das mãos, dos braços e dos ombros, a vítima era mantida nesta posição por muito tempo, no esforço fútil de lhe arrancar um “Viva Frelimo”. Por causa deste tratamento cruel e desumano, Luís Bila, ancião fiel, sofreu um ataque cardíaco e morreu.

As irmãs foram submetidas a um tratamento de “ginástica”, que exigia que corressem quase que sem parar, às vezes entrando em água; dando cambalhotas, e correndo morros para cima e para baixo sem cessar; e submetidas a outras incontáveis indignidades. Que seminário! Que “reeducação”!

Apesar deste tratamento cruel, a maioria desses irmãos manteve a sua integridade; apenas dois transigiram. Um dos irmãos conseguiu enviar uma carta ao Ministro do Interior em Maputo, expondo esse tratamento. Isso surtiu efeito. O governador de Niassa veio pessoalmente de helicóptero. Depôs imediatamente o comandante e seus adjuntos de toda a autoridade e declarou: “Podem considerar-se presos por praticarem atos que a Frelimo nunca intencionou.” Quando os outros presos que tinham sofrido tratamento similar souberam disso, gritaram de alegria, dizendo: “Graças a vocês estamos tendo esta libertação”, ao que os irmãos responderam: “Dêem graças a Jeová.”

Depois de um tempo, foram transferidos para outros campos, onde o tratamento consistia apenas em trabalhos forçados. Foi só quase dois anos depois que retornaram ao Carico — e Chingo estava lá para recebê-los. Ele continuou a fazer tentativas malogradas para enfraquecer a lealdade deles a Jeová, realizando “seminários” similares. Finalmente, quando estava para deixar Carico, proferiu um discurso no seu característico estilo ilustrativo. Admitindo derrota, disse: “Um homem dá muitos golpes em uma árvore; faltando pouco para derrubá-la, é substituído por outro que, com apenas um golpe, completa a operação. Eu dei muitos golpes, mas não consegui. Virão outros depois de mim. Usarão outros métodos. Não cedam. . . . Continuem firmes. . . . Senão, eles receberão toda a glória.” No entanto, os irmãos, por manterem forte o seu amor a Jeová, esforçavam-se para ter certeza de que apenas Jeová recebesse a glória. — Rev. 4:11.

Os que ficaram nas cidades

Será que todas as Testemunhas moçambicanas estavam em prisão ou em campos de detenção naquela época? Embora seus inimigos as procurassem como que com pente fino nos locais de trabalho e em virtualmente cada bairro, algumas escaparam. Nem todos estavam querendo mandá-las para a prisão ou para outra punição. Mas as Testemunhas estavam em constante perigo de ser presas. As atividades cotidianas, tais como comprar alimentos ou pegar água na fonte pública, eram arriscadas.

Lisete Maienda, que permaneceu na Beira, conta: “Negaram-me o cartão para comprar os alimentos necessários porque eu não comparecia às reuniões políticas exigidas. Felizmente, um homem amigável, dono duma venda, chamava-me em particular e vendia-me alguns quilos de farinha.” (Note Revelação 13:16, 17.) O irmão Maienda foi seis vezes despedido do emprego no porto da Beira, mas seus patrões vieram cada vez procurá-lo de novo, visto que suas qualificações profissionais eram muito valiosas para a companhia.

Embora dar testemunho e realizar reuniões fosse muito arriscado, a luz espiritual não se apagou em nenhuma das cidades principais do país. À família Maienda, na Beira, juntou-se no bairro de Esturro um grupo de jovens corajosos e sedentos da verdade. Juntos mantiveram a luz brilhando nesta capital da província de Sofala. O zelo do grupo na Beira era tão grande que, apesar do perigo, eles cruzavam a fronteira para a Rodésia (agora Zimbábue) para obter alimento espiritual.

O escritório da Sociedade em Salisbury (agora Harare) empenhava-se destemida e incansavelmente para cuidar de todos os irmãos espalhados na região norte. Portanto, quando o escritório soube que um grupo ainda se reunia em Tete, a congênere enviou dois irmãos para cuidar das necessidades deste grupo, visto que, semelhante a Epafrodito, colaborador do apóstolo Paulo, ansiavam ver os irmãos. (Fil. 2:25-30) Um desses irmãos era o querido Redson Zulu, conhecido em todo o norte pelos seus vibrantes discursos em chicheua. Sob grande risco, ele e seu companheiro percorreram a selva de bicicleta para ministrar a seus isolados irmãos moçambicanos.

De forma similar, a luz da verdade continuou a brilhar na província de Nampula. Um grupo de não-batizados remanescera ali e continuara a realizar reuniões do seu próprio modo. No começo, a assistência foi de 8 pessoas, mas logo aumentou para 50. Quando um irmão de Carico foi enviado para ser hospitalizado em Nampula, ele entrou em contato com um dos membros daquele grupo de não-batizados, alguém que trabalhava no hospital. O irmão hospitalizado avisou a Sociedade e esta deu-lhe instruções para que estudasse com o grupo, a fim de preparar para o batismo aqueles que estivessem prontos para isso. Cinco foram batizados. Receberam ajuda adicional quando uma Testemunha da Holanda, que se encontrava em Nampula a serviço secular, abriu sua casa para as reuniões. Com o tempo, alguns daquele grupo se habilitaram para assumir responsabilidades como anciãos.

Alívio na prisão central

Em 1975, um grupo de presos após outro foi mandado das prisões de Maputo para o norte, ao passo que outros chegavam para tomar seu lugar. Daí, em fins de fevereiro de 1976, o governo decidiu acabar com o incessante translado de Testemunhas presas.

Poucos meses depois, o Presidente Samora Machel fez uma visita à prisão central de Maputo. A irmã Celeste Muthemba, uma das presas, aproveitou a oportunidade para dar testemunho ao presidente. Ele deu atenção de forma amistosa, mas depois da sua partida, a irmã foi fortemente censurada pelas autoridades carcerárias. No entanto, uma semana mais tarde, veio uma ordem para que ela fosse posta em liberdade, junto com um documento que lhe garantia proteção contra hostilizações por motivos políticos e o direito ao seu anterior emprego no Hospital Central. Além disso, deu-se autorização para a libertação de todas as Testemunhas de Jeová daquela prisão.

Os irmãos em Maputo organizaram-se em congregações. Em pouco tempo, formaram-se 24 congregações num circuito que se estendia de Maputo ao nordeste, até Inhambane. Fidelino Dengo foi designado para visitá-las. Além disso, a congênere na África do Sul designou uma comissão de anciãos para cuidar das necessidades espirituais daqueles grupos. Desenvolveram métodos cautelosos de dar testemunho informal. Fizeram arranjos para os irmãos assistirem a congressos na vizinha Suazilândia. E no próprio Moçambique, quando alguns retornaram do Carico, os irmãos realizaram assembléias disfarçadas em festas de “boas-vindas”.

E no Carico? Que arranjos se fizeram ali para atividades espirituais?

Comissão “ON” supervisiona os campos

Os irmãos malauianos, sob a supervisão da congênere em Zimbábue, tinham formado uma comissão especial para cuidar das necessidades espirituais nos campos. Quando irmãos do sul de Moçambique foram levados ao Carico, eles também tiraram proveito do arranjo já em funcionamento ali. Dois irmãos do sul, Fernando Muthemba e Filipe Matola, foram acrescentados à comissão.

Os da Comissão ON (Ofisi ya Ntchito: Escritório de Serviço, em chicheua) se correspondiam com a Sociedade, e organizavam assembléias e congressos. Compilavam os relatórios de todo o campo e se reuniam periodicamente com os anciãos das aldeias. Supervisionavam também o trabalho dos 11 circuitos. Era uma grande responsabilidade, especialmente em vista do relacionamento precário dos irmãos com as autoridades governamentais.

Pregando e fazendo discípulos nos campos

Um número considerável de interessados e de estudantes da Bíblia que acompanharam os irmãos até Milange, em 1975, foram batizados em novembro de 1976.

Muitos dos que tinham sido pioneiros regulares continuaram a pregar ali mesmo durante o seu encarceramento e depois da sua transferência para os campos. Mas a quem pregavam? No começo, estudavam com os que ainda não eram batizados, inclusive com os filhos dos irmãos. Uma família com muitos filhos era considerada um “bom território”. Os pais estudavam com alguns dos filhos, e os demais eram divididos entre os publicadores solteiros. Foi assim que muitos se mantiveram ativos na obra de fazer discípulos.

Mas isso não era suficiente para os que realmente tinham espírito evangelizador. Um pioneiro zeloso começou a procurar território fora dos campos. Naturalmente, isso tinha seus riscos, por causa das limitações impostas pelas autoridades do campo. Deu-se conta de que precisava arranjar um pretexto para sair dos campos. O que podia fazer? Tendo orado a Jeová pedindo orientação, decidiu vender sal e outros bens de consumo às pessoas fora dos campos. Ele pedia um preço elevado para evitar qualquer transação comercial, ao passo que criava assim um meio para dar testemunho. Este método pegou. Com o tempo, viam-se muitos desses “vendedores” oferecendo seus produtos fora dos campos. Cobrir o território disperso envolvia longas caminhadas, saindo eles de madrugada e retornando de noite. Era pouca “vegetação” para tantos “gafanhotos”. Mas deste modo, muitas pessoas daquela região aprenderam a verdade.

“Centro de Produção da Zambézia”

Devido ao trabalho diligente desses laboriosos “reeducandos” e as benditas chuvas que regavam aquela região, a produção agrícola floresceu. As Testemunhas nos campos passaram a ter fartas colheitas de milho, arroz, mandioca, mapira (milhete), batata-doce, cana-de-açúcar, feijão e frutas tais como mafura. Os celeiros do Círculo do Carico transbordavam. A criação de aves e de animais de pequeno porte, tais como galinhas, patos, pombos, coelhos e porcos enriquecia a alimentação com proteínas. A fome que passaram no início tornou-se coisa do passado. Em contraste, o restante do país atravessava a maior falta de alimentos da sua história. — Note Amós 4:7.

Em reconhecimento deste sucesso agrícola, o governo passou a chamar a região desses campos de “Centro de Produção da Zambézia”. Com a receita resultante do excedente de produtos, os irmãos puderam adquirir roupas, e até mesmo alguns rádios e bicicletas. Embora presos, estavam bem equipados por causa da sua diligência. Acatavam escrupulosamente as leis de impostos do governo; de fato, estavam entre os maiores contribuintes da região. Em harmonia com as normas bíblicas, o pagamento consciencioso de impostos, mesmo nestas circunstâncias, era um dos requisitos para alguém ser considerado apto para quaisquer privilégios na congregação. — Rom. 13:7; 1 Tim. 3:1, 8, 9.

Intercâmbio cultural

Ali no Carico houve um intercâmbio mútuo de habilidades e de cultura. Muitos aprenderam novos ofícios, tais como o de pedreiro, de carpinteiro e de escultor de madeira. Juntos desenvolveram a habilidade de fabricar ferramentas, fundir ferro, fazer mobília de qualidade, e mais. Além de se beneficiarem pessoalmente com os ofícios aprendidos ou refinados, esta atividade lhes deu mais uma fonte de renda.

O maior desafio no intercâmbio cultural envolvia línguas. Os moçambicanos aprenderam chicheua, falado pelos malauianos. Esta tornou-se a língua predominante falada nos campos, e a maioria das publicações disponíveis eram em chicheua. Aos poucos e com jeito, os malauianos também aprenderam tsonga e suas variações, faladas no sul de Moçambique. Muitos aprenderam também inglês e português, que ia servir-lhes mais tarde em privilégios especiais de serviço. Lembra um ancião: “Podia cruzar com algum irmão ou irmã falando fluentemente sua língua, sem saber se era malauiano ou moçambicano.”

Como o alimento espiritual chegava aos campos?

Vinha da Zâmbia via Malaui. De que maneira? Um superintendente de circuito respondeu: “Só Jeová sabe.” Nos campos, a Comissão ON designava jovens malauianos, muitos deles pioneiros, para que atravessassem a fronteira de bicicleta e, num lugar combinado de antemão, se encontrassem com os enviados para lhes entregar correspondência e publicações. Assim se supriam as congregações com o alimento espiritual corrente.

Além disso, os membros da Comissão ON atravessavam a fronteira para a Zâmbia ou para o Zimbábue, a fim de aproveitar as visitas anuais dos superintendentes zonais enviados pelo Corpo Governante. Por estes e outros modos, os irmãos no Carico mantinham fortes laços com a organização visível de Jeová e assim permaneciam unidos na Sua adoração.

As reuniões congregacionais exigiam arranjos especiais. Visto que os irmãos eram constantemente vigiados, muitas das reuniões eram realizadas de madrugada, ou mais cedo. Os presentes reuniam-se do lado de fora, como que comendo “papinhas” no pátio, enquanto o orador se postava dentro da casa. Algumas reuniões eram realizadas em vales de rios e ao abrigo de crateras naturais. No entanto, os preparativos de congressos exigiam muito mais.

Como se organizavam congressos

Após receber da Sociedade toda a matéria do programa, a Comissão ON recolhia-se por algumas semanas à aldeia n.° 9. Neste lugar relativamente remoto, trabalhava noites adentro sob a luz dum lampião, traduzindo os esboços de discursos, gravando dramas e designando oradores. Muito útil foi um duplicador manual, recebido de Zimbábue. Não paravam de trabalhar até completar o programa inteiro para a série de seis congressos.

Além disso, designava-se uma equipe para encontrar e preparar um local que serviria para o congresso. Podia ser na encosta duma montanha ou dentro do mato, mas não menos de 10 quilômetros distantes dos campos. Tudo tinha de ser feito sem o conhecimento das autoridades ou dos “rebeldes”. Pequenos rádios portáteis eram tomados emprestados e à base destes se montava um sistema sonoro para assistências superiores a 3.000. Sempre havia nas proximidades um riacho, no qual se podia preparar uma piscina batismal por se fazer uma barragem. Palco, auditório, limpeza e manutenção eram todos preparados de antemão. Por fim, o local do congresso estava pronto, cada ano num lugar diferente.

Elaborava-se um arranjo que permitia a todos nas aldeias assistir. Isso funcionava bem, porque os irmãos demonstravam um maravilhoso espírito de cooperação. Nem todos podiam assistir ao mesmo tempo; uma aldeia deserta teria atraído a atenção das autoridades. Portanto, os vizinhos se revezavam — uma família assistia num dia e a outra no dia seguinte. A família que ficava fazia movimentos na casa dos vizinhos; assim, ninguém notava a ausência da família. Significava isso que alguns perdiam partes do congresso? Não, porque o programa de cada dia era apresentado duas vezes. De modo que um congresso de três dias durava seis; e uma assembléia de dois dias, quatro.

Uma corrente de indicadores atentos fornecia uma rede de comunicação. Ela se estendia desde o centro administrativo do campo até o lugar do congresso, com um homem postado a cada 500 metros. Qualquer movimento suspeito que pudesse constituir uma ameaça para o congresso acionava esta linha de comunicação, transmitindo a mensagem por uma distância de 30 ou 40 quilômetros em apenas 30 minutos. Isto dava tempo suficiente à administração do congresso para tomar uma decisão. Podia significar encerrar a assembléia e esconder-se no mato.

José Bana, ancião da Beira, conta: “Em uma ocasião, na véspera de uma assembléia, um policial advertiu que já tinham conhecimento da nossa assembléia e que iriam desfazê-la. O assunto foi levado ao conhecimento dos irmãos responsáveis. Deviam cancelar a assembléia? Oraram a Jeová e resolveram esperar o amanhecer do outro dia. A resposta veio — uma chuva torrencial durante a noite fez transbordar o rio Munduzi, transformando-o num mar. Visto que a polícia estava do outro lado do rio, todos puderam assistir à assembléia, sem que alguém precisasse ficar em casa e sem a necessidade da corrente humana de comunicação. Entoamos cânticos do Reino à vontade.”

Apostasia e a aldeia n.° 10

Um movimento que causou muitas dificuldades foi iniciado por um grupo apóstata que se autodenominou de “os ungidos”. Originando-se principalmente das aldeias malauianas, este grupo afirmava que o “tempo dos anciãos” tinha chegado ao fim em 1975 e que eles, como “os ungidos”, deviam tomar a dianteira. A matéria no livro Vida Eterna na Liberdade dos Filhos de Deus foi de muita ajuda para auxiliar alguns dos que tinham dúvidas a entender o que estava envolvido na genuína unção. Mas a influência dos apóstatas se espalhou e muitos dos que lhes deram atenção foram desviados. Como parte da sua doutrina, diziam que não era necessário enviar relatórios à Sociedade. Eles simplesmente os lançavam no ar depois duma oração.

Calcula-se que cerca de 500 foram desassociados em resultado desta influência apóstata. Decidiram, com a permissão das autoridades, construir sua própria aldeia. Esta passou a ser a aldeia n.° 10. Mais tarde, o líder do movimento era servido por um cortejo de moças, engravidando ele a muitas delas.

A aldeia n.° 10 e seu grupo continuaram a existir durante todo o período restante da vida nos campos. Causaram muitas dificuldades aos irmãos fiéis. Alguns dos que no começo se deixaram influenciar para se juntar a esse grupo arrependeram-se mais tarde e retornaram à organização de Jeová. A comunidade apóstata foi finalmente desfeita quando se deixou de viver nos campos.

“O campo é nossa cadeia e as casas são nossas celas”

Até o começo de 1983, a vida nos campos tinha certa semelhança com a normalidade. Mas os irmãos não se esqueceram de que eram prisioneiros. É verdade que alguns, por seus próprios meios, conseguiram retornar às suas cidades. Outros iam e vinham. Mas a comunidade como um todo permanecia. Era apenas natural que tivessem saudade de casa. Trocavam correspondência através do sistema postal ou pela mão dos poucos irmãos que se atreviam a visitar os campos para visitar familiares ou velhos amigos — embora alguns deles fossem apanhados e presos.

Xavier Dengo costumava prosar: “Vocês malauianos são refugiados, mas nós somos prisioneiros. O campo é nossa cadeia e as casas são nossas celas.” Na realidade, porém, a situação dos nossos irmãos malauianos era quase a mesma. Qualquer normalidade que as aldeias pareciam ter iria em breve chegar a um abrupto fim.

Invasão armada causa pânico e morte

No começo de 1983, membros armados do movimento de resistência começaram a invadir a região do Carico, obrigando o comandante do centro administrativo a refugiar-se na sede do distrito em Milange, 30 quilômetros distante. Por um período relativamente curto, os irmãos pareciam respirar aliviados, embora continuassem ainda sob alguma vigilância das autoridades.

Mas a tragédia sobreveio em 7 de outubro de 1984, enquanto se terminavam os preparativos para um congresso de distrito. Um grupo armado aproximou-se do leste. Ao cruzarem a aldeia n.° 9, deixaram atrás um rastro de pânico, sangue e morte. Depois de matarem o irmão Mutola, na aldeia malauiana n.° 7, mataram Augusto Novela na aldeia moçambicana n.° 4. Na aldeia moçambicana n.° 5, o irmão Muthemba foi alertado pelo tiroteio. Quando viu o corpo dum irmão no chão, clamou a Jeová por ajuda. Os homens armados saquearam e queimaram as casas. Homens, mulheres e crianças corriam desordenados procurando desesperadamente esconder-se. Este ataque violento foi apenas o prelúdio do que havia de vir. Depois de atravessar os campos, o grupo escolheu uma área logo ao norte da aldeia n.° 1 para estabelecer a sua base.

Nos dias seguintes, fizeram incursões diárias nos campos — roubando, queimando casas e matando. Numa dessas ocasiões, mataram seis Testemunhas malauianas, inclusive a esposa de Fideli Ndalama, superintendente de circuito.

Outros foram levados presos à base do campo. Especialmente os jovens foram submetidos a esforços para integrá-los no seu movimento militarizado. Muitos dos jovens fugiram das aldeias para se esconder nas machambas (seus campos cultivados) e os familiares lhes levavam alimentos. Moças passaram a ser recrutadas como cozinheiras, mas então os invasores procuravam obrigá-las a servir como “amantes”. Hilda Banze foi uma das que resistiram à pressão e, por conseguinte, foi espancada tão severamente, que foi dada como morta. Felizmente, ela se recuperou.

O grupo armado exigia ser sustentado pela população e que carregasse suas bagagens. Os irmãos achavam esta exigência incompatível com a sua posição de neutralidade cristã e por isso se negaram. Sua recusa provocou furor. Neutralidade e direitos humanos estavam fora de questão num mundo isolado em que o espancamento e as armas eram a única lei reconhecida. Cerca de 30 irmãos morreram durante este período turbulento. Um deles foi Alberto Chissano, que se negou a dar apoio e que tentou explicar: “Não faço parte da política, esta é a razão pela qual fui trazido de Maputo para cá. Já recusei no passado e não será diferente agora.” (Note João 18:36.) Isto era demais para os opressores, que furiosamente o levaram embora arrastado. Sabendo o que certamente o aguardava, o irmão Chissano despediu-se dos irmãos com uma expressão de inabalável fé. “Até o novo mundo”, foram as suas últimas palavras antes de ser severamente espancado e mortalmente ferido. Os irmãos da equipe médica ainda tentaram salvá-lo, mas sem êxito. Seria de fato “até o novo mundo”, pois nem mesmo a ameaça de morte conseguiu quebrantar-lhe a fé. — Atos 24:15.

Libertados da fornalha de fogo

Algo tinha de ser feito para aliviar a insuportável tensão. A Comissão ON reuniu-se com os anciãos e os servos ministeriais para considerar como tentar estabelecer um diálogo com o movimento de resistência. Entretanto, homens do movimento de resistência já tinham enviado um convite a todos da região para comparecer em sua base. Os anciãos decidiram ir, junto com um grupo considerável de Testemunhas que se ofereceu a acompanhá-los. Dois irmãos foram instruídos a servir de porta-vozes de todas as aldeias. Isaque Maruli, um dos porta-vozes designados, passou pela sua casa para informar sua jovem esposa e se despedir dela. Alarmada com o que podia acontecer, ela tentou dissuadi-lo. Ele lhe falou consoladoramente e disse: “Será que sobrevivemos até agora devido a alguma esperteza da nossa parte? E será que somos mais valiosos do que os outros irmãos?” Ela silenciosamente concordou. Fizeram juntos uma oração e se despediram.

Na reunião estavam presentes não só as Testemunhas, mas também os que não eram Testemunhas, que estavam dispostos a apoiar o movimento armado. O número dos irmãos, porém, era de 300, excedendo os outros. Foi uma reunião acalorada, alguns gritando slogans políticos e cantando canções militares. Fez-se o anúncio: “Hoje vamos gritar ‘Viva Renamo’ [Resistência Nacional de Moçambique, movimento que combatia o governo Frelimo] até que caiam as folhas destas árvores.” O comandante, os soldados e os que não eram Testemunhas ficaram impacientes com o silêncio dos irmãos. O comissário político que presidia à reunião explicou a ideologia do seu movimento. Falou da determinação do alto comando de desmantelar as aldeias e de fazer todos dispersar-se e morar nas machambas. Deu então oportunidade para os presentes se expressarem. Nossos irmãos explicaram sua posição neutra. Esperavam que seus motivos de não participar em fornecer alimentos, carregar bagagem, e assim por diante, fossem compreendidos. Quanto a se dispersarem das aldeias, já tinham sido obrigados a fazer isso.

O comandante não gostou nada da resposta corajosa dos irmãos mas, providencialmente, o comissário era mais compreensivo. Acalmou o comandante e mandou os irmãos embora em paz. Saíram assim vivos do que descreveram como “fornalha de fogo”. (Note Daniel 3:26, 27.) Mas a paz não estava garantida. O evento único mais abalador ainda estava por vir poucos dias depois.

O massacre da aldeia n.° 7

O domingo, 14 de outubro de 1984, apesar do sol brilhante, foi um dia tenebroso no Carico. Cedo naquele dia, os irmãos tinham realizado sua reunião congregacional, alguns visitando depois as aldeias para apanhar o restante dos suprimentos antes de rapidamente retornarem às suas novas moradas nos campos. Sem aviso, um grupo armado deixou sua base e foi na direção da aldeia moçambicana n.° 7. Capturaram um irmão nos limites da aldeia n.° 5 e exigiram: “Mostre-nos o caminho da aldeia n.° 7; você vai ver o que é a guerra.” Chegando à aldeia, prenderam a todos os que por acaso estavam ali. Fizeram-nos sentar em círculo, por ordem do número da aldeia a que pertenciam. Daí começou o interrogatório.

“Quem bateu em nosso mudjiba [um vigia ou informante desarmado] e o roubou?” queriam saber. Os irmãos, não sabendo do que os homens estavam falando, responderam que não sabiam. “Então, se ninguém vai falar, vamos fazer um exemplo deste homem sentado aqui na frente.” E atiraram à queima-roupa na testa do irmão. Todos ficaram abalados. A pergunta foi repetida vez após vez, e sempre com uma nova vítima para ser fuzilada. As mulheres, segurando seus bebês, se viam obrigadas a ver a execução bárbara dos maridos, como se deu com a irmã Salomina, que viu seu marido Bernardino morrer. Mulheres também foram assassinadas. Leia Bila, esposa de Luís Bila, que morrera de ataque cardíaco no campo perto de Lichinga, foi uma delas, e seus filhos pequenos ficaram assim orfanados. A execução nem poupou os jovens, tais como Fernando Timbane, que mesmo baleado orou a Jeová e procurou encorajar os demais.

Quando dez vítimas tinham sido brutalmente executadas, surgiu um desacordo entre os executores, acabando com o pesadelo. Às ordens deles, o irmão Nguenha, que teria sido a 11.a vítima, levantou-se da “cadeira da morte”. Ele conta: “Eu tinha orado a Jeová para que cuidasse da minha família sobrevivente, pois os meus dias tinham terminado. Daí levantei-me e senti uma coragem incomum. Foi só depois que me sobreveio o abalo emocional.”

Após isso, obrigaram os sobreviventes a queimar as casas remanescentes na aldeia. Antes de partirem, os homens armados advertiram: “Viemos com a ordem de matar 50 de vocês, mas estes já são suficientes. Não devem ser enterrados. Vigiaremos, e se algum corpo desaparecer, serão mortos dez por cada corpo que faltar.” Que ordem mais estranha e hedionda!

Com o som dos tiros ecoando por toda a área e a notícia se espalhando pelos que conseguiram escapar, gerou-se uma nova onda de pânico nas aldeias. Os irmãos, em desespero, fugiram para o mato e para as montanhas. Só depois se descobriu que as perguntas acusatórias que geraram o massacre tinham sido instigadas por um desassociado que queria juntar-se ao movimento de resistência. Ele também se tornara ladrão. Fizera as acusações falsas contra os irmãos da sua própria aldeia, procurando granjear os favores e a confiança do grupo. Mais tarde, quando os do grupo descobriram que tinham sido enganados, prenderam o originador dessa mentira e o mataram da maneira mais bárbara.

Começa a dispersão

O inteiro Círculo do Carico estava pesaroso e confuso. Os anciãos, também em pranto, procuravam consolar as famílias enlutadas pela perda dos entes queridos no massacre. A idéia de continuar naquela região era insustentável. Assim, começou uma dispersão natural. Congregações inteiras buscavam lugares de até 30 quilômetros distantes, onde pudessem sentir-se mais seguras. Alguns decidiram ficar perto das machambas. De modo que redobrou o trabalho dos anciãos da Comissão ON. Tinham de andar muitos quilômetros para zelar da união e da segurança física e espiritual do rebanho em todas as congregações muito dispersas.

As notícias desses lamentáveis acontecimentos chegaram à congênere da Sociedade em Zimbábue, que providenciou que membros da congênere visitassem os irmãos e os edificassem. Consultou-se também o Corpo Governante em Brooklyn sobre a necessidade de alimentos, roupa e medicamentos nos campos em Milange. Com profunda preocupação com o bem-estar dos irmãos, o Corpo Governante deu instruções de se usarem os recursos financeiros disponíveis para cuidar das necessidades deles, inclusive de sair da região de Milange e voltar para suas regiões de origem, se fosse aconselhável. Essa opção parecia mesmo aconselhável.

No começo de 1985, membros da Comissão ON, assim como haviam feito todos os anos, partiram de Milange para se encontrar com o superintendente zonal, enviado pelo Corpo Governante. Don Adams de Brooklyn estava ali. Numa reunião que incluía as Comissões de Filial da Zâmbia e do Zimbábue, os membros da Comissão ON expressaram suas preocupações referentes ao Círculo do Carico. Foram aconselhados a considerar se era sábio continuar no Carico. Chamou-se atenção para o princípio bíblico em Provérbios 22:3: “Argucioso é aquele que tem visto a calamidade e passa a esconder-se.” Com isto em mente, voltaram aos campos.

Sair? Como? E para onde?

O conselho foi imediatamente transmitido às congregações. Alguns agiram prontamente, como no caso de João José, irmão solteiro que mais tarde participou na construção dos prédios para as congêneres em Zâmbia e em Moçambique. Com um grupo de outros irmãos, cruzou a fronteira para Malaui, chegando à Zâmbia sem maiores problemas.

Mas a situação não era tão fácil para outros. Muitas famílias tinham filhos pequenos a considerar. Membros do movimento de resistência vigiavam constantemente os caminhos, e quem os usasse estava sujeito a ser atacado. A fronteira com Malaui apresentava outro desafio, especialmente para os irmãos malauianos, visto que as Testemunhas de Jeová ainda eram desprezadas e caçadas ali. Surgiram assim questões polêmicas: Como sairiam? Aonde iriam? Tendo vivido por anos no mato e sem documentos, como podiam cruzar fronteiras? “Nós também não sabemos”, foi a resposta dos membros da Comissão ON numa reunião extremamente tensa com todos os anciãos. “Uma coisa é certa — temos de nos dispersar”, enfatizaram. Concluíram: “Cada um faça orações, planeje e aja.” — Note 2 Crônicas 20:12.

Nos meses à frente, esse foi o tema dominante das reuniões. A maioria dos anciãos apoiava a idéia de sair e incentivava os irmãos neste sentido. Outros decidiram ficar. Por fim, começou um êxodo esparso. Os irmãos malauianos que tentaram voltar para casa foram bloqueados na fronteira pelos motivos antigos e tiveram de voltar. Isto diminuiu o entusiasmo dos que tinham decidido sair e reforçou o argumento dos a favor de ficar. Um “convite” para outra “reunião importante” na base militar passou a ser o fator decisivo para a maioria.

Êxodo em massa

Em 13 de setembro de 1985, apenas dois dias antes da reunião anunciada, os irmãos Muthemba, Matola e Chicomo, os três membros restantes da Comissão ON, reuniram-se mais uma vez. O que deviam recomendar aos irmãos com respeito ao “convite”? A reunião durou toda a noite. Depois de muita oração e ponderações, decidiram: “Teremos de fugir na próxima noite.” Logo em seguida, no que foi possível, espalharam a notícia da decisão, bem como a hora e o lugar de encontro. As congregações que decidiram partir compareceram. Foi o último ato da Comissão ON nos campos.

A partir das 20h30, depois de fazer uma oração, os irmãos começaram um êxodo cronometrado. Seu êxodo foi um segredo bem guardado tanto dos soldados como dos “rebeldes”. Serem apanhados teria sido uma calamidade. Sob a cobertura da noite, cada congregação tinha 15 minutos para sair, concedendo-se a cada família 2 minutos. A longa fila indiana se enveredou na mata silenciosamente, sem saber o que no amanhecer os aguardaria na fronteira de Malaui, se conseguissem chegar lá. Os pastores espirituais da Comissão ON foram os últimos a partir, à uma hora da madrugada. — Atos 20:28.

Filipe Matola foi vencido pelo cansaço, depois de uma caminhada de uns 40 quilômetros e de não ter dormido por duas noites. Adormeceu à beira da trilha enquanto esperava os últimos dos idosos passar. Podemos imaginar a alegria que sentiu quando o jovem Ernesto Muchanga veio correndo da vanguarda com as boas novas: “‘Tio’, os irmãos estão sendo recebidos em Malaui!” “Este é um exemplo”, exclamou Matola, “de como Jeová abre o caminho, quando não parece haver saída, como no mar Vermelho”. — Êxo. 14:21, 22; veja o Salmo 31:21-24.

Nos meses seguintes, sentiram o que significa viver em campos de refugiados em Malaui e na Zâmbia, antes de retornarem a Moçambique e de voltarem às suas cidades. Mas o que aconteceu aos que ficaram na área do Carico?

Os que ficaram

A decisão da Comissão ON não chegou a tempo a todas as congregações dispersas antes de começar o êxodo. Alguns dos que o ouviram decidiram permanecer ali e ir à reunião na base militar. A Congregação Maxaquene, junto com outras, não ouvira o anúncio, mas já decidira fugir. Estes irmãos, antes de irem à reunião, deixaram sua família preparada para fugir. Cerca de 500 irmãos compareceram à reunião. Esta foi breve e ao ponto. O comandante disse: “Foi determinado pelos nossos superiores que todos aqui presentes deverão comparecer à nossa base superior da região. Será uma viagem longa. Por lá passarão até três meses.” E a viagem começou naquele momento.

Valendo-se da vigilância relativamente pouca da parte dos soldados, os irmãos decididos a fugir escaparam. Juntaram-se a seus familiares e escaparam como puderam rumo à fronteira de Malaui. Outros, quer no cumprimento das ordens do movimento armado, quer por falta de oportunidade, empreenderam a viagem para o sudoeste até a base em Morrumbala, chegando ali alguns dias depois. Ali foram outra vez pressionados para apoiarem o movimento. Sua recusa resultou em severas torturas e inúmeros espancamentos, de que pelo menos um irmão morreu. Três meses depois, receberam finalmente a permissão para voltar às suas casas.

Muitos continuaram na região do Carico, totalmente sob o controle do movimento de resistência. Viram-se isolados da organização de Jeová pelos próximos sete anos. Eram um grupo bastante grande, de cerca de 40 congregações. Sobreviveriam espiritualmente? Seria seu amor a Deus forte o bastante para não sucumbirem ao desespero? Voltaremos a eles mais tarde.

Campos de refugiados em Malaui e na Zâmbia

Nem todos os que fugiram do Carico foram prontamente recebidos em Malaui. A Congregação Maxaquene, depois de cruzar a fronteira e descansar um pouco, foi descoberta pela polícia malauiana e mandada voltar. Os irmãos suplicaram aos policiais, explicando que fugiam da guerra na região onde havia morado. Os policiais não se deixaram comover. Aparentemente sem opção e em desespero, alguém gritou: “Vamos chorar, irmãos!” E foi exatamente o que fizeram, e choraram tão alto, que atraíram a atenção da vizinhança. Os policiais, embaraçados, pediram que parassem. Uma irmã rogou: “Deixem-nos pelo menos preparar algum alimento para as crianças.” Os policiais concordaram, dizendo que voltariam mais tarde. Felizmente, nunca voltaram. Mais tarde, uma autoridade veio em socorro das Testemunhas, trazendo alimentos e encaminhando-os para o campo de refugiados onde estavam os demais irmãos.

As Testemunhas de Jeová moçambicanas estavam assim inundando os campos de refugiados em Malaui. O governo malauiano as recebeu na condição de refugiados de guerra. A Cruz Vermelha Internacional veio em auxílio, trazendo suprimentos para aliviar o desconforto e as dificuldades causadas pelas intempéries nos campos a céu aberto. Alguns foram para a Zâmbia, onde foram encaminhados a outros campos de refugiados. Filipe Matola e Fernando Muthemba trabalharam então associados com membros da Comissão de Malaui em busca dos irmãos moçambicanos nesses campos, a fim de levar consolo espiritual e ajuda financeira, autorizada pelo Corpo Governante.

Em 12 de janeiro de 1986, A. D. Schroeder, membro do Corpo Governante, deu a esses irmãos encorajamento espiritual e lhes transmitiu o cordial amor do Corpo Governante. Não podendo entrar nos campos, proferiu na Zâmbia um discurso que foi traduzido para o chicheua, gravado e depois levado aos campos em que estavam os irmãos moçambicanos.

Aos poucos, esses refugiados foram ajudados a chegar à sua próxima parada, em Moçambique. Para muitos foi Moatize, na província de Tete. Em Moçambique havia uma mudança na atitude do governo para com as Testemunhas de Jeová, embora nem todas as autoridades locais ainda evidenciassem isso.

De volta a Moçambique

Grupo após grupo começou a superlotar os vilarejos ao leste da cidade de Tete. Vagões abandonados, antes usados como sanitários públicos, foram usados para abrigá-los. Depois de limpar os vagões, muitos deles foram usados como locais para celebrar a Comemoração da morte de Cristo em 24 de março de 1986.

Irmãos de todo o Moçambique ficaram ali por meses sem saber como seriam transportados de volta aos seus lugares de origem. Esta espera tinha seu quinhão de tribulação. Tentaram improvisar algum trabalho a fim de se sustentar ou de juntar algum dinheiro para uma passagem aérea, mas sem muito sucesso. Por causa da guerra, não era possível seguir pelas estradas. Nem sempre eram bem tratados pelas autoridades locais, que ainda tentavam obrigá-los a repetir slogans políticos. A isso os irmãos respondiam corajosamente: “Fomos levados para o Carico por esta questão. Ali cumprimos a nossa pena e fomos abandonados à mercê de atacantes armados. Escapamos pelos nossos próprios meios. O que ainda querem de nós?” Depois de tal resposta, eram deixados em paz. No entanto, os jovens ainda continuavam a ser hostilizados e encarcerados na tentativa de recrutá-los para o exército do governo, a fim de combater a contínua insurgência armada na região. Muitos irmãos jovens usavam de astúcia para fugir e viver escondidos.

A comissão em Malaui decidiu que Fernando Muthemba devia ir a Tete para ajudar os irmãos ali. Quando o irmão Muthemba chegou a Moatize, as autoridades decidiram inspecionar sua bagagem. Bem a tempo, os irmãos conseguiram resgatar as publicações que tinha consigo. Portanto, quando os policiais revistaram sua bagagem, o que encontraram? “Apenas alguns trapos”, ele diz. A polícia desapontada perguntou: “É só isso?” Sim, era só isso. Esta era toda a bagagem de um homem que arcara com responsabilidades tão pesadas nos campos. Como todos os demais, voltara despojado de tudo o que possuíra. De fato, naquele momento, a aparência física dos irmãos não era nada agradável — sujos, maltrapilhos, famintos e obviamente maltratados. Enquadravam-se bem na descrição inspirada de muitos dos servos de Deus no passado: “Andavam vestidos de peles de ovelhas e de peles de cabras, passando necessidade, . . . sofrendo maus-tratos; e o mundo não era digno deles. Vagueavam pelos desertos, . . . e pelas cavernas, e pelas covas da terra.” — Heb. 11:37, 38.

Por fim, transporte para Maputo

Em Maputo, uma comissão designada pela Sociedade passou a contatar diversas agências governamentais e não-governamentais para encontrar meios de translado dos irmãos em Tete e na Zâmbia. Quão felizes ficaram Isaque Malate e Francisco Zunguza quando se dirigiram ao Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados e foram informados: “Já foram autorizados mais de 50 vôos para trazer de volta as Testemunhas de Jeová”! Ficaram gratos de que o governo dera a autorização.

Sem saber deste arranjo, os irmãos em Tete, todos os acampados perto do aeroporto, iam todos os dias a ele na esperança de que um avião de carga levasse pelo menos alguns deles. Comovido, Fernando Muthemba fala sobre o dia 16 de maio de 1987: “Eram 7h30 da manhã. Quando olhei para o aeroporto, vi dois grandes aviões Boeing que iam iniciar a ‘ponte aérea’ para evacuar todas as Testemunhas de Jeová para Maputo.” Que emoção! Depois de 12 anos retornar às suas cidades!

Infelizmente, sua aparência não era nada apresentável. Emídio Mathe, ancião na Congregação Maxaquene, tomou emprestado uma calça de alguém que tinha mais de uma, para chegar a Maputo mais ou menos vestido. Os irmãos que esperavam a chegada dos refugiados em Maputo também levavam roupa aos aviões, para que pudessem desembarcar com um pouco de dignidade. Sentiam-se envergonhados? “Não”, responde Emídio, “embora tivéssemos ficado materialmente despojados, tínhamos a esperança de que Jeová, um dia, nos usasse para que seu nome fosse enaltecido. Não estávamos preocupados com bens materiais; não nos sentíamos envergonhados. Andávamos esfarrapados, mas a nossa fé em Jeová estava invicta.” Os irmãos na África do Sul e no Zimbábue contribuíram de bom grado toneladas de alimentos e de roupa para seus irmãos moçambicanos que retornaram.

O governo providenciou transporte adicional às Testemunhas que voltavam para outras províncias. Para os que retornaram à província de Sofala, à região conhecida como o Corredor da Beira (por causa da proteção dada por soldados do Zimbábue), ainda ia haver dificuldades. Dezoito deles, inclusive um ancião, foram capturados e levados à base do movimento de resistência.

‘Jeová é grande, Jeová é grande!’

O comandante da base, depois de interrogá-los e ficar sabendo que eram Testemunhas de Jeová, chamou um religioso que dirigia uma igreja na região controlada pelo movimento de resistência. Ele disse a este homem: “Estes são Testemunhas de Jeová e agora vão orar com vocês. Trate-os bem.” Para a surpresa dos irmãos, este pastor (que algum tempo antes obtivera publicações da Torre de Vigia no Zimbábue), meneou a cabeça e exclamou: “Jeová é grande . . . Jeová é grande!” Prosseguiu: “Oramos a Jeová para que enviasse pelo menos um para nos ensinar.”

No outro dia, ele reuniu os 62 membros da sua igreja e pediu que o ancião lhes falasse. O irmão começou por dizer que todas as imagens deles tinham de ser removidas. (Deut. 7:25; 1 João 5:21) Eles prontamente obedeceram. Ele mostrou também que Jeová não aprova e nem autoriza a expulsão de demônios por seus servos hoje em dia e que o toque ritual de tambores não faz parte da verdadeira adoração conforme delineada na Bíblia. (Mat. 7:22, 23; 1 Cor. 13:8-13) Na conclusão, o líder do grupo levantou-se e disse: “A partir de hoje, eu e minha família somos Testemunhas de Jeová.” Com exceção de um casal, a congregação inteira expressou o mesmo desejo.

Nos quatro meses que os irmãos permaneceram ali, realizaram regularmente reuniões. Quando chegou o tempo de irem embora, levaram consigo um bom número deste grupo, muitos deles tendo sido antes membros ativos das facções combatentes.

Muitos se juntaram ao povo de Jeová durante este período, pois apesar das condições difíceis de vida, os irmãos nunca deixaram de pregar as boas novas do Reino de Deus e de fazer discípulos. — Mat. 24:14; 28:19, 20.

Retorno à vida nas cidades

Os irmãos eram gratos de estar de volta nas cidades. Mas sem documentos, sem moradia ou serviço secular, a vida continuava a ser difícil para eles. Era uma nova fase na sua vida cheia de desafios. A própria nação passava por convulsões, flagelada por guerra civil, fome, seca e desemprego. Conseguiria o povo de Jeová soerguer-se nestas circunstâncias difíceis?

O governo veio em seu auxílio, criando o Departamento de Reintegração Social. Muitas Testemunhas receberam de volta seus empregos anteriores, ocupando posições importantes em empresas do setor público e privado. Outros abriram seus próprios negócios.

Muitos puderam voltar às suas residências anteriores, ainda ocupadas por parentes. Para outros, porém, a situação não era fácil. Sua casa tinha sido ocupada por estranhos ou por parentes inamistosos, ou tinha sido nacionalizada pelo Estado. Demonstrando mansidão, as Testemunhas que voltaram decidiram não criar caso, contrário ao que o governo talvez temesse. Testemunhas que não tinham sido enviadas aos campos abriram seus lares, acolhendo seus irmãos sem teto. Aos poucos, acharam ou construíram para si acomodações. Com a bênção de Jeová sobre a sua diligência, muitos têm hoje uma boa casa, para a surpresa dos que tinham observado a condição lastimável em que voltaram. É notável que no meio da prevalecente pobreza, nenhuma Testemunha de Jeová teve de recorrer à mendicância. Depois de poucos anos, quando se abriu a oportunidade para as pessoas comprarem sua própria casa do Estado, a primeira pessoa em todo o país a conseguir uma casa foi uma Testemunha de Jeová que estivera no Carico. O depósito de publicações em Maputo funciona atualmente neste lugar.

No entanto, obter uma casa ou conseguir outros benefícios materiais não era a principal preocupação dos irmãos. Mais importante era achar locais para reuniões de adoração. Afinal, não era este o principal motivo de Jeová os ter trazido a salvo para casa? Certamente era isso o que os irmãos acreditavam firmemente. (Note Ageu 1:8.) Prontamente, improvisaram todo tipo de Salão do Reino — em quintais, em salas de estar e em cozinhas, em barracos de zinco e de sapé; às vezes — um luxo — reuniam-se em salas de aula em escolas ou auditórios de hospitais. É nestes Salões do Reino improvisados que a maioria das 438 congregações em Moçambique se reúne até agora. Há raras exceções. Uma delas é na Beira onde, com a ajuda da congênere da Sociedade no Zimbábue e da sua valente equipe de construção, os irmãos superaram os muitos obstáculos e finalmente, em 19 de fevereiro de 1994, dedicaram em Moçambique seus primeiros dois Salões do Reino construídos com tijolos.

Comissões especiais  reconhecimento legal

Com o objetivo de cuidar das necessidades materiais e espirituais dos irmãos ao reorganizarem sua vida, o Corpo Governante designou comissões especiais em Tete, na Beira e em Maputo, supervisionadas pelas congêneres no Zimbábue e na África do Sul. Com este arranjo, as congregações puderam receber mais atenção. Para fornecer as muito necessitadas publicações bíblicas, estabeleceram-se depósitos nestas cidades. Estes serviram também como centros de distribuição de alimentos e de roupa. Organizaram-se assembléias e congressos, embora ainda fosse preciso vencer alguns obstáculos antes que pudessem ser realizados abertamente.

Daí, em 11 de fevereiro de 1991, correu uma notícia emocionante por todo o país, para a alegria do povo de Jeová em todo o mundo. O governo de Moçambique concedera reconhecimento legal à Associação das Testemunhas de Jeová de Moçambique. Fernando Muthemba, que ajudara lealmente a cuidar dos irmãos no Carico, serviria como seu primeiro presidente. O povo de Jeová em Moçambique regozijou-se também de ter no seu meio os primeiros missionários treinados em Gileade. Estes ficavam em lares missionários em Maputo e na Beira. Mas outro lar estava sendo preparado em Tete, para receber mais missionários que iam chegar em breve.

Missionários alegram seus irmãos

Abriu-se em Moçambique um verdadeiro campo missionário. Abnegados e desejosos de participar na reconstrução e colheita espirituais em Moçambique, os formados em Gileade e pioneiros especiais experientes que já serviram em outros campos aceitaram prontamente o convite de servir aqui. Vieram de cinco continentes, muitos deles de países onde se fala português, tais como o Brasil e Portugal. Sua nova designação não deixava de ser um desafio, porque em 1990 e 1991 o país apenas estava começando a sair do atoleiro econômico causado pela guerra e pela seca. Hans Jespersen, missionário dinamarquês que servira no Brasil e que atualmente serve como superintendente de distrito, conta: “Não havia praticamente nada nas lojas, e eram evidentes as marcas da guerra e suas conseqüências.” No entanto, já se evidencia a constante recuperação econômica. Apesar disso, muitos de nossos irmãos nas regiões norte e rurais continuam a viver em condições extremamente difíceis.

Os missionários se confrontaram com muito do que era novidade para eles. Por exemplo, antes da assinatura do acordo de paz entre o governo Frelimo e a Renamo, as designações dos missionários às vezes exigiam que viajassem em colunas (comboios compridos de veículos escoltados pelas forças armadas do governo), e estes às vezes sofriam ataques. Mas tiveram muita alegria em conhecer irmãos; e para muitos destes, conhecer Testemunhas de outras raças e nacionalidades era a realização dum sonho.

Numa parte remota do norte, uma criança andou o dia inteiro com o pai para ver um missionário que viera da Austrália. Notando a expressão de admiração no rosto da criança, o pai disse: “Eu não lhe disse que havia irmãos brancos?” Muitos, ao cumprimentar missionários, expressavam sua satisfação dizendo: “Conhecíamos vocês apenas pelas experiências no Anuário.” Testemunhas moçambicanas, que em 1993 ainda estavam em campos de refugiados na Zâmbia, disseram: “Quando ouvimos na Zâmbia que em Tete havia um lar missionário, fizemos tudo para retornar, para ver isso com os nossos próprios olhos e para continuar o serviço aqui, 18 anos depois de termos sido levados para o Carico.”

O objetivo principal desses missionários em Moçambique é pregar as boas novas do Reino de Deus. Isso tem sido muito gratificante. Os primeiros missionários em Maputo e na Beira contam: “A fome espiritual era tão grande, que quantidades enormes de publicações eram colocadas diariamente.” As publicações da Sociedade, em quatro cores, são novidade neste país e atraem muito a atenção do público. Os lares missionários são muitas vezes usados como base central para dirigir estudos bíblicos, visto que muitos estudantes parecem preferir isso.

Atualmente, há seis lares missionários espalhados pelo país, com 50 missionários servindo em diferentes designações. Alguns missionários viajam cada mês em rotas estabelecidas pela filial para recolher relatórios e levar correspondências, revistas e outras publicações. Estas rotas incluem o lugar onde antes havia o Círculo do Carico, em Milange.

A propósito, o que aconteceu com as Testemunhas que ficaram nessa região e que ficaram isolados do restante dos seus irmãos?

Abre-se o Círculo do Carico

Em 4 de outubro de 1992, foi assinado em Roma o Acordo Geral de Paz entre a Frelimo e a Renamo pondo fim oficial a 16 anos de guerra civil em Moçambique. Este evento amplamente festejado possibilitou levantar a cortina que separava a região do anterior Círculo do Carico. E o que se viu? Mais de 50 congregações das Testemunhas de Jeová emergindo do isolamento que durara sete anos. Como sobreviveram espiritualmente a este severo isolamento?

Em fevereiro de 1994, realizou-se em Milange uma entrevista com 40 irmãos responsáveis. Também estavam presentes mil outros que andaram mais de 30 quilômetros para ver os missionários. Os anciãos que permaneceram depois do êxodo contaram: “Depois de muitos de nós termos sofrido espancamentos naquela base militar, permitiram que voltássemos para viver nas machambas das extintas aldeias. Com o tempo, a Renamo autorizou-nos a construir Salões do Reino e realizar reuniões. Prometeram — e o cumpriram — que enquanto estivéssemos nos nossos salões ou em caminho para a nossa adoração, não seríamos molestados. No entanto, não se responsabilizavam se num dia de reunião alguém estivesse em casa ou mesmo fora do Salão do Reino.” E quanto à pregação? A resposta dos irmãos é tocante: “Sem roupa e despojados, vivíamos como bichos, mas não esquecíamos que éramos Testemunhas de Jeová e que tínhamos a obrigação de pregar o Reino.” Que demonstração eloqüente de apreço e de amor a Deus!

Em 1993, o superintendente de distrito e sua esposa presenciaram um evento sem paralelo numa assembléia de circuito realizada em Milange, algo que confirmou que esses irmãos deveras haviam continuado a fazer discípulos. Quando o orador do discurso do batismo pediu que os candidatos ficassem de pé, 505 se levantaram dentro duma assistência de 2.023, apresentando-se para o batismo! E tem mais.

O “Saulo” do Carico

Saulo de Tarso, ferrenho perseguidor dos seguidores de Jesus Cristo no primeiro século EC, tornou-se servo zeloso de Jeová. O Carico também teve seu “Saulo”. Ele é um homem de traços finos e de aparência mansa, e é atualmente servo ministerial e pioneiro regular. Não há nada que o diferencie dos seus colegas de trabalho quando estes dão duro para ganhar o sustento. Mas escute-o ao contar sua história, ao fazer uma pausa no seu trabalho:

“Em junho de 1981, a região em que eu vivia foi tomada pelo movimento de resistência. Fui levado com outros homens ao seu quartel. Foi-nos exposto o motivo da sua luta e a importância de apoiá-la para a libertação de nosso povo. Recebi treinamento militarizado e participei em combates bem-sucedidos. Esta tornou-se minha rotina nos próximos sete anos. Dada a minha lealdade ao movimento, fui promovido a comandante. Chefiei sete pequenos exércitos. Muitas regiões vieram a estar sob o nosso controle, e uma delas era o Carico. Destaquei homens para penetrarem nas aldeias onde estavam as Testemunhas de Jeová em busca do seu apoio. Autorizei a queima das suas casas e que algumas delas fossem mortas. Meus comandados me disseram: ‘Mataremos a todos, mas nunca conseguiremos mudá-los.’ Com o tempo, fui transferido para outras bases.”

Embora este comandante não tivesse escrúpulos de perseguir o povo de Jeová, o próprio Jeová, na sua misericórdia, deu-lhe a oportunidade de mudar. O homem explica: “Após sete anos sem ver a minha esposa, pedi dispensa para visitá-la. E foi em Malaui, num campo de refugiados, que tive meu primeiro contato com a verdade. Recusei inicialmente. Depois, ao ouvir sobre o novo mundo, o Reino de Deus e um mundo sem guerras, perguntei-me: ‘Pode alguém que fez tantas coisas más beneficiar-se com isso?’ Foi-me respondido com a Bíblia: ‘Sim, por ter fé e obedecer a Deus.’ Aceitei um estudo bíblico, e em junho de 1990 fui batizado. Desde então tenho sido pioneiro, ajudando a muitos dos meus colegas ex-combatentes. Só ali naquele campo ajudei a 14 pessoas a se tornarem servos de Jeová. Tendo servido onde há mais necessidade, já sofri o meu quinhão por motivos de neutralidade. Sou muito grato a Jeová pela sua misericórdia e por não levar em conta os tempos da minha ignorância, perdoando-me por meio do sacrifício de Jesus Cristo.” (Atos 17:30) Este é apenas um dos muitos exemplos que mostram por que os irmãos moçambicanos dizem tantas vezes com profundo apreço: “Jeová é grande.” — Sal. 145:3.

Uma filial em Maputo

Quem diria? Aconteceu mais cedo do que esperávamos. O Corpo Governante aprovou que houvesse uma filial em Moçambique. Desde 1925, quando o mineiro Albino Mhelembe trouxe a verdade de Johanesburgo, a obra em Moçambique havia sido cuidada pelas congêneres na África do Sul, em Malaui e no Zimbábue. Finalmente, em Maputo, a partir de 1.° de setembro de 1992, numa grande casa que a Sociedade adquiriu e renovou na área de muitas embaixadas, a filial moçambicana iniciou seu trabalho de supervisionar este vasto campo. Começando com uma reduzida família de 7 membros, a recém-designada Comissão de Filial tinha pela frente um trabalho desafiador. Tinha de organizar a obra no campo, cuidar das necessidades espirituais — e mesmo materiais — dos irmãos, ajudar na construção de Salões do Reino e construir um novo prédio para a filial. Era uma tarefa e tanto. Mas começou a chegar ajuda.

Equipes de voluntários internacionais de construção, vindas de partes diferentes do mundo, participam agora com os irmãos moçambicanos na construção do novo prédio da filial num lugar agradável perto duma praia. A própria família de Betel aumentou para 26 membros regulares. Irmãos e irmãs da região de Maputo também ajudam. Como grupo unido, todos trabalham para enaltecer a adoração do verdadeiro Deus, Jeová, nesta parte da Terra. — Isa. 2:2.

“Tende em estima a homens desta sorte”

Um trabalho desafiador é também realizado pelos superintendentes viajantes. Mencionamos homens tais como Adson Mbendera, que costumava visitar as congregações no norte e que depois serviu como membro da Comissão ON nos campos; Lameck Nyavicondo, lembrado com apreciação pelos irmãos de Sofala; Elias Mahenye, que veio da África do Sul para servir, sofrendo atrocidades e advertindo: “A PIDE [a polícia colonial] desapareceu, mas o avô dela, Satanás, o Diabo, ainda está por aí. Fortaleçam-se e tomem coragem.” (1 Ped. 5:8) Sem contar com as comodidades normais, renunciaram a quaisquer confortos que tivessem para servir aos seus irmãos.

Há pouco tempo, na região de Milange, onde estavam as aldeias “carcerárias”, formou-se um circuito. Os irmãos que moram naquela região são especialmente gratos a Jeová por serem beneficiados mais plenamente pelos cuidados providos por meio da Sua organização visível. Orlando Phenga e sua esposa acharam ser um privilégio sair de Maputo para servir ali, onde ele e milhares de outros tinham atuado no “Palco do Carico”. Ao oeste da cidade de Tete, ajudando a reintegrar congregações que por anos também ficaram isoladas pela guerra, Benjamin Jeremaiah e sua esposa viajam por dias a pé a lugares onde muitos nunca viram um automóvel. Raymund Phiri, solteiro abnegado, teve de dormir no alto duma montanha junto com os demais da congregação que servia para escapar a possíveis ataques, e foi ali que preparou seu relatório para o escritório. Também Hans e Anita Jespersen servem um distrito que abrange o país todo e chegaram a conhecer tanto as riquezas espirituais como a pobreza material dos seus irmãos.

Todos estes irmãos demonstraram ter o espírito que induziu o apóstolo Paulo a escrever a respeito de Epafrodito: “Tende em estima a homens desta sorte.” — Fil. 2:29.

Avanço com zelo piedoso

Os fiéis em Moçambique, além de terem mantido a integridade em severas provas, têm manifestado seu amor a Deus e ao próximo de outros modos. No ministério público, aproveitam bastante sua recém-conseguida liberdade e as abundantes provisões de Jeová na forma de revistas e de outras publicações. Podem ser vistos pregando livremente nas ruas, nas praças públicas e em mercados tais como o de Xipamanine. Os resultados são evidentes no aumento rápido do número de louvadores de Jeová.

Além do acréscimo de novos publicadores, o aumento tem sido ampliado pelo retorno de irmãos dos campos de refugiados em países vizinhos. Circuitos inteiros têm retornado. Constroem rapidamente Salões do Reino com qualquer material disponível. Fazem isso até mesmo em comunidades temporárias de refugiados, tais como Zóbuè, na fronteira de Malaui, e Caboa-2, fora de Vila Ulongue. Sem esperar tempos melhores, muitos se têm alistado como pioneiros. Há agora mais de 1.900 participando neste serviço de tempo integral. Expressam grande apreciação pelo treinamento recebido na Escola do Serviço de Pioneiro, em funcionamento aqui desde 1992.

Pode imaginar quem foram os instrutores numa recente escola em Maputo, onde quase a turma inteira era daqueles que estiveram no Círculo do Carico? Francisco Zunguza, recordista moçambicano do número de vezes que foi preso por causa da sua fé, e Eugênio Macitela, preso e mandado a Milange depois de ter estudado apenas por uma semana. Ambos servem atualmente como superintendentes de circuito. E um dos estudantes foi Ernesto Chilaule. Ele tem uma lembrança que gosta de contar: “Quando passo naquela rua onde está o prédio da extinta PIDE, olho para aquela janela e lembro — foi ali que os agentes me disseram: ‘Fica sabendo, Chilaule, que aqui é Moçambique, e vocês nunca serão reconhecidos neste país.’ E logo ali perto, rua abaixo, está a nossa filial legalizada!”

Como o irmão Chilaule deve sentir-se recompensado, pois a sua pequena Alita, que costumava buscar alimentos das provisões congregacionais enquanto seu pai estava na prisão de Machava, é agora a esposa de Francisco Coana, um dos membros da Comissão de Filial! O irmão Coana era aquele pioneiro zeloso no Carico que espertamente “vendia” produtos aos de fora dos campos, para poder pregar-lhes. Por certo, Jeová tem abençoado os milhares de fiéis que, lá no norte no distrito de Milange, no Círculo do Carico, escreveram uma bela página repleta de amor, de fé e de integridade para a honra e a glória de Jeová. — Pro. 27:11; Rev. 4:11.

Mas a batalha ainda não acabou. Há novos perigos desafiadores. O espírito permissivo do mundo que se espalhou pela Terra também pode fazer vítimas aqui e já os tem feito. Imoralidade, materialismo e indiferença causados pelos tempos aparentemente mais fáceis, têm causado dano. No entanto, os servos fiéis de Jeová, em Moçambique, continuam fervorosamente a manter constante vigilância. Sobreviveram a tremendas provas de fé. Estão decididos, com a ajuda de Jeová, a continuar a dar evidência de que amam a Jeová de todo o coração, mente, alma e força, e que amam seu próximo como a si mesmos. Têm fé inabalável em que o Reino de Deus em breve transformará a Terra num paraíso, em que não somente não haverá guerra e fome, mas que terão ali a grande alegria de acolher de volta os seus entes queridos falecidos, inclusive todos os que se mostraram fiéis a Deus mesmo até a morte no Círculo do Carico. — Pro. 3:5, 6; João 5:28, 29; Rom. 8:35-39.

[Foto/Mapas na página 123]

(Para o texto formatado, veja a publicação)

Mapa encaixado: Muitos irmãos foram exilados para São Tomé, no oceano Atlântico, distante uns 3.900 quilômetros

ZÂMBIA

MALAUI

MOÇAMBIQUE

ZIMBÁBUE

ÁFRICA DO SUL

Milange

Carico

Mocuba

Inhaminga

Beira

Maxixe

Inhambane

Maputo

Tete

[Foto na página 131]

Disseram a Ernesto Chilaule: “Vocês nunca serão reconhecidos neste país. . . . Mas você esquece isso!”

[Fotos nas páginas 140, 141]

No campo de refugiados no Carico, nossos irmãos (1) cortavam lenha e (2) pisavam barro para a fabricação de tijolos, ao passo que (3) as irmãs carregavam água. (4) Achavam um meio de realizar assembléias. (5) Xavier Dengo, (6) Filipe Matola e (7) Francisco Zunguza ajudavam por dar ali supervisão espiritual como superintendentes de circuito. (8) Salão do Reino construído ali por Testemunhas malauianas, ainda em uso.

[Foto na página 175]

Testemunhas reunidas para o Congresso de Distrito “Devoção Piedosa” perto de Maputo, em 1989, logo depois de retornarem dos campos

[Fotos na página 177]

Em cima: anciãos e superintendentes de circuito no lugar onde missionários entregam cada mês publicações e correspondência

Embaixo: missionários em Tete recebem aulas de chicheua

[Fotos na página 184]

Comissão de Filial (da esquerda: Emile Kritzinger, Francisco Coana, Steffen Gebhardt) com foto dos prédios da filial agora em construção em Maputo

[Gravura de página inteira na página 116]



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A"Operação Limpeza"

No dia 7 de novembro de 1974, foi desencadeada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), em conjunto com as forças portuguesas, a então denominada Operação Limpeza. 1 Grupos de militares bloquearam a então Rua Araújo e outras ruas, becos e praças do centro de Lourenço Marques, hoje em dia Maputo, com o propósito de deter"agitadores e marginais", afetando sobretudo as trabalhadoras do sexo que atuavam na região. 2 Ao final da operação, foram detidos 284 indivíduos, dos quais 192 eram mulheres e 92 homens; das 192 mulheres, 50 foram postas em liberdade e 142 foram transportadas em autocarros para destino não revelado sob escolta do Exército Popular de Libertação de Moçambique. Dos 92 homens, 42 foram postos em liberdade e os demais ficaram detidos na capital. 3 A esmagadora maioria das mulheres detidas, soube-se depois, foram enviadas para os campos de reeducação, localizados em regiões distantes da capital do país.

Desde os primórdios de Lourenço Marques, a Rua Araújo, antiga Rua dos Mercadores, na baixa da cidade, era conhecida como centro da boemia e das casas de tolerância. Nas primeiras décadas do século XX, e em meio ao processo de higienização e disciplinamento da cidade colonial, prostitutas negras e mulatas foram obrigadas a restringir seus serviços aos subúrbios de Lourenço Marques, enquanto prostitutas francesas, espanholas, portuguesas, inglesas e alemãs pareciam garantir aos abastados colonos um encontro com a civilização européia (Zamparoni, 1998, p. 354 e seguintes). Já pelos anos 50 e 60, e seguindo uma maior diversificação do tecido urbano e social laurentino, prostitutas brancas passam a disputar com negras e mulatas uma clientela diversificada de brancos das mais diversas origens – os"naturais" (brancos da terra), os portugueses ali estabelecidos, os sul-africanos que procuravam em Lourenço Marques a permissividade duramente castigada pelo recém-instalado regime do apartheid, marinheiros de distintas nacionalidades e, em número cada vez maior a partir de meados da década de 1960, os soldados ali deslocados em função da"guerra colonial".

Não deixa de ser significativo que uma das primeiras medidas implementadas pelo governo de transição, já sob a evidente batuta da Frelimo, tenha sido o cerco à prostituição e a atividades associadas à vida boêmia. Tratava-se do anúncio do caráter moral da revolução em curso: homens e mulheres deveriam ser trabalhadores exemplares, e a construção do socialismo passaria pela necessária eliminação dos inimigos e pela superação de comportamentos associados aos vícios do colonialismo e do capitalismo. Os guerrilheiros da Frelimo, na altura em via de se transformarem em membros de um aparato militar nacional, haviam entrado na cosmopolita e agitada cidade de Lourenço Marques fazia pouco tempo, e sua ação traduzia o firme propósito dos novos dirigentes de livrar a sociedade moçambicana de mazelas associadas ao mundo colonial, burguês e capitalista, rumo à construção do Homem Novo, que passava necessariamente por um processo de"reeducação", no interior do qual os indivíduos seriam introduzidos numa nova ordem. 4 Trabalho disciplinado, despojamento material, superação de antigas lealdades (étnicas, religiosas, de classe, de raça, regionais) e comportamento moral inatacável passaram a fazer parte deste ideal de Homem Novo, no qual todo o moçambicano deveria se transformar.

Nos anos que se seguiram a independência, a idéia da construção do Homem Novo passou a estar diretamente conectada a territórios excepcionais que eventualmente acabaram corporificando a idéia de"campo". Para os campos de reeducação iriam todos aqueles que, de uma forma ou outra, traziam consigo ou em si elementos da velha ordem que se desejava eliminar – régulos (autoridades tradicionais), feiticeiros,"comprometidos" (indivíduos sobre quem pesava a suspeita de algum tipo de compromisso com a antiga ordem colonial), prostitutas; para os campos de trabalho, todos os que deveriam passar por uma ressocialização marcada pelo trabalho em grandes campos de cultivo (machambas): sabotadores, inimigos, vadios. Em ambos os casos, estavam previstos, e foram realizados, cursos intensivos de"marxismo-leninismo". Para os distantes campos do Niassa, os inimigos ou a maioria daqueles que, em 1983, foram vítimas da Operação Produção – da qual falaremos mais adiante. E, por fim, a esmagadora maioria da população deveria ser concentrada em grandes machambas, ora organizadas não segundo parâmetros"tradicionais", mas a partir de uma cuidadosa análise"científica" da realidade camponesa.

O processo que presidiu a construção e o funcionamento destes campos, que existiram em Moçambique de 1975 até meados da década de 1980, quando a guerra se alastrou pelo país e inviabilizou sua existência, constituem ainda um desafio para cientistas sociais e historiadores. O propósito deste artigo é: (1) realizar uma primeira aproximação à dimensão e ao impacto dos campos na história recente de Moçambique; (2) estabelecer uma relação entre a experiência das distintas formas de desterritorialização forçada promovidas quer pelo Estado da Frelimo – na forma de deportações massivas aos campos de reeducação ou aos campos de trabalho e colonização – e a experiência do rapto, recorrente ao longo da guerra civil e geralmente associada à atuação do grupo antagonista, a Renamo, mas freqüentemente promovida pelo próprio Estado; (3) dotar as experiências de desterritorialização forçada de profundidade histórica, fazendo justiça aos depoimentos que as associam ao chibalo – trabalho forçado – ou ao trabalho escravo; (4) apontar para um questionamento das interpretações anteriores existentes sobre a formação do Estado moçambicano entre o período colonial e o revolucionário, procurando encará-lo em sua especificidade histórica: um Estado que se quer forte mas que o é na medida em que é fraco e, portanto, interage dinamicamente com as condicionantes locais de expressão do poder e da dominação, particularmente com elementos de ordem cosmológica, tais como a percepção dos inimigos, que devem ora ser pacificados, ora ser eliminados.

Nashingwea 5

Em inflamado discurso, Samora Machel recupera a experiência de Nashingwea na formação de um conjunto de práticas e idéias que marcariam os primeiros anos de Moçambique como país independente:

Política e militarmente foi forjada a unidade, a partir de um pensamento comum, consciência patriótica e de classe. Entramos em Nashingwea como Macondes, Macuas, Nianjas, Nyngues, Manicas, Shanganas, Ajauas, Rongas, Senas; saímos moçambicanos. Entramos como negros, brancos, mistos, indianos; saímos moçambicanos. Quando chegamos, trazemos nossos vícios e defeitos, egoísmo, liberalismo, elitismo. Nós destruímos estes valores negativos e reacionários. Nós aprendemos a incorporar os hábitos e os comportamentos de um militante da Frelimo. Quando entramos, temos uma visão limitada, pois conhecemos apenas nossa região. Lá, aprendemos a escala do nosso país e os valores revolucionários. Chegamos supersticiosos; no confronto entre a superstição e ciência, adquirimos o ponto de vista científico. Nós éramos desorganizados, suscetíveis ao rumor e à intriga, à corrupção, incapazes de analisar e interpretar os fenômenos. Lá aprendemos a viver de forma organizada, a interpretar corretamente a realidade e a agir. Com freqüência chegamos motivados só pelo ressentimento e ódio com relação ao opressor; saímos com uma clara definição do inimigo. É por isso que dizemos que Nashingwea foi o laboratório onde forjamos os moçambicanos. (Samora Machel, discurso realizado em Maputo no dia 5 de novembro de 1981). 6

Se a primeira pergunta que nos orienta gira em torno do porquê da opção pelo"campo" como lócus privilegiado de repressão, disciplinamento e, particularmente, formação de um determinado ideal de superação em Moçambique, nos colocamos diante da necessidade de investigar a tensão entre a história singular da Frelimo, da guerra de libertação e da opção socialista neste país e a construção de um aparato institucional que acompanhou processos revolucionários alhures – na União Soviética, na China e no Sudeste Asiático, na Europa Oriental e em Cuba. 7

Nashingwea constituiu uma fonte de inspiração para os acontecimentos ulteriores à independência de Moçambique, particularmente no que diz respeito à construção das machambas comunais. Quando quer que se mencione o ideal de auto-superação e de transformação pelo trabalho que caracterizou esse período pós-revolucionário, é Nashingwea, campo de treinamento estabelecido na Tanzânia nos anos 60, que surge uma e outra vez na memória dos revolucionários. Tratava-se de um campo de treinamento militar, mas muito mais do que isso: constituía a materialização de um ideal igualitário, expresso em rituais de passagem e no dia-a-dia do trabalho na machamba, nos trabalhos de manutenção do campo e no treinamento militar. Todos os que se dirigiam a Nashingwea deveriam passar por um tipo de ritual em que, numa espécie de catarse coletiva, narravam à coletividade o momento em que tinham alcançado a consciência da natureza da opressão colonial, como sujeitos ou objetos da exploração. 8 Concomitantemente, deveriam falar de sua terra de origem, de seus costumes, no sentido de construir uma identidade coletiva que deveria extrapolar os limites da"aldeia". Colocava-se à prova o desejo de deixar um determinado mundo para trás e embarcar na construção do Homem Novo, desafio que se reproduzia cotidianamente na machamba, na limpeza das instalações, no treinamento militar, no comportamento moral. Um laboratório do que deveria ser o porvir de Moçambique. 9

O depoimento de uma moçambicana branca que, voluntariamente, foi à Nashingwea é esclarecedor:

Há anos que fazia parte do grupo de moçambicanos que, do exílio, militávamos pela independência do nosso país. Passei por Portugal, pela Argélia, pela França e, por fim, consegui exílio político na Suécia. Cada uma destas passagens era difícil, pois sobre os brancos pesava constantemente a desconfiança de sermos informantes da PIDE, de não sermos realmente moçambicanos. Na Suécia, e após estudar o idioma com uma bolsa do governo sueco, consegui ingressar na faculdade de filosofia – isso quando já tinha passado o 25 de abril em Portugal, e quando era evidente que caminhávamos para a independência nacional. Foi então que o presidente Samora me chamou para Nashingwea – e não se recusava um chamado do Samora. (...) Fui para o setor feminino de Nashingwea. Eu era a única branca em meio a milhares de negras. Pensava que ali faria apenas treinamento militar para ajudar o meu país na revolução. Mas não, grande parte do tempo era dedicado à machamba. E para mim ficavam as tarefas mais duras do campo: eu tinha que limpar todas as latrinas, porque era branca. Às vezes, me desesperava. Logo me acalmava, e pensava que era o que tinha que fazer para provar que era realmente moçambicana.

Foi com base na experiência de Nashingwea, bem como com referências às ujumaa da Tanzânia de Julius Neyrere, que a Frelimo avançava e criava"zonas libertadas" e alcançou, por fim, todo o território nacional. 10 Malyn Newitt lembra que, logo no início da luta armada, quando a Frelimo controlava apenas zonas do território maconde e pequenos territórios no interior do Niassa – o que reunia uma população de cerca de 200 mil indivíduos –, os camponeses começaram a ser concentrados em aldeias comunais para"efeitos de proteção", ao tempo em que eram criadas cooperativas de produção e comercialização e montaram-se campanhas de educação e saúde (Newitt, 1997, p. 454).

Mas os altos quadros da Frelimo faziam parte de um amplo circuito internacional de indivíduos de diferentes países do mundo associados a distintas experiências revolucionárias. Parte deles passou por centros como Paris ou Roma, e ali, bem como em diversas outras metrópoles ocidentais, narrativas em torno da virtude dos campos em países socialistas eram propagadas por certos setores da esquerda ocidental. Outros foram treinados na Argélia, antes de se dirigirem para a Tanzânia, ou visitaram países socialistas controlados por um regime de partido único. Fica, assim, o desafio de compreender a construção de um modelo em torno do campo a partir de múltiplas influências e referências: de um lado, a experiência peculiar da Frelimo em Nashingwea; de outro, um universo de circulação internacional que acabava por conectar a excepcionalidade territorial do"campo" a uma espécie de"necessidade" colocada pela própria experiência revolucionária. 11

As machambas comunais, institucionalizadas nos anos que sucederam imediatamente a independência, tinham como propósito evidente promover uma sorte de modernização do país e de suas gentes. 12 Suas fontes de inspiração encontram-se em Nashingwea e em sua reprodução nas zonas libertadas ao longo da guerra de independência. Não é pouco relevante que, aos olhos de parte da população rural concentradas pela Frelimo nas novas unidades produtivas, as machambas comunais em muito se aproximavam dos aldeamentos promovidos pelos portugueses nos últimos anos de sua presença em Moçambique. Sob controle do exército colonial, os aldeamentos pretendiam não apenas controlar a população camponesa e evitar seu contato com os guerrilheiros da Frelimo, mas também materializar um imenso esforço de propaganda em torno da melhoria das condições de vida da população rural moçambicana levada a cabo pelo Estado colonial português em sua última década de presença no continente africano. O trabalho de Thomas H. Henriksen é claro ao contrapor as diretrizes postas em funcionamento nas zonas libertadas da Frelimo aos dos aldeamentos portugueses (Henriksen, 1983, pp. 143-170). No entanto, ambas as experiências terão um profundo impacto nas populações tradicionais submetidas às concentrações promovidas pelas machambas comunais, não apenas em função de suas virtudes – oferta de assistência médica, educação, experiência técnica e profissional aos agricultores etc. – mas, sobretudo, como conseqüência de seu caráter compulsório, de sua natureza disciplinadora e das inversões e impugnações que promove no que diz respeito ao universo social e hierárquico tradicional. Some-se ainda a escolha da Frelimo de, em algumas províncias, particularmente em Tete e no Niassa, construir as novas machambas comunais nos mesmos territórios dos aldeamentos portugueses (cf. Kaplan, 1984, p. 105; Borges Coelho, 1993).

Segundo Christian Geffray (1991), as machambas comunais estavam diretamente associadas ao marxismo que informaria integralmente a percepção do que deveria ser o desenvolvimento para o conjunto do país. 13 A dimensão ganha pela machambas comunais nas distintas regiões foi bastante diferenciada, assim como seu impacto junto às populações do país. Em 1982, das 1.352 machambas comunais, 543, ou seja, 40%, estavam concentradas na província de Cabo Delgado, ao passo que 260 (19% do total) encontravam-se distribuídas por Nampula. A sulista província de Gaza possuía cerca de 139 machambas comunais, um pouco mais de 10% do total. Das três províncias com maior número de machambas comunais, somente duas – Cabo Delgado e Gaza – concentraram parte substancial de sua população nestas unidades produtivas. Em Cabo Delgado, cerca de 45% da população total da província foi deslocada para as machambas, enquanto que em Gaza foram concentradas 17% da população total, o que representava 30% de sua população rural (Kaplan, 1984, p. 106). Segundo Geffray, no início dos anos 80, o crescimento das machambas comunais foi considerável, assim também como a constatação do seu fracasso, o que, por outra vez, acompanhava a nacionalização territorial da guerra (Geffray, 1991, p. 21).

As machambas comunais deveriam dispor de todo um aparato institucional, tais como hospital, escola, lojas do povo, cooperativa etc., mas não só: seu funcionamento dependia diretamente dos Grupos Dinamizadores (GDs) que, espalhados por todo o país, no campo e nas cidades, deveriam servir como instrumento de socialização política das massas, como elo de comunicação entre a população e as lideranças da Frelimo, bem como de vigilância junto aos potencialmente sabotadores funcionários do aparato estatal remanescentes da antiga burocracia colonial (Serapião & El-Khawas, 1979, pp. 146-147). Os GDs, inicialmente responsáveis por engajar a população no processo revolucionário, acabaram por ganhar um caráter cada vez mais associado à vigilância e ao controle da população, particularmente no que diz respeito a sua liberdade de circulação. 14 Entre as lembranças mais freqüentes com relação aos GDs por parte da população, a dificuldade para a obtenção das"Guias de Marcha" são os mais freqüentes. 15 Ainda segundo Geffray, o projeto das machambas comunais e sua progressiva institucionalização acabou por criar um verdadeiro sistema de vigilância da população, particularmente a população rural (Geffray, 1991, p. 21).

O trabalho comunitário em machambas não estava restrito apenas às populações rurais. Muitos citadinos tiveram que, em determinados períodos, dedicar-se ao trabalho na machamba, que podia localizar-se no seu próprio bairro residencial ou a alguns quilômetros da cidade, para onde se dirigiam em algum dia particular da semana a pé ou em caminhões do Estado. Assim, outras coletividades também passaram pela experiência de deslocamento espacial e, assim, a idéia do trabalho na machamba comunal como parte de uma experiência associada ao período socialista extrapola os grupos camponeses e é conseqüência direta de um ideal de trabalho igualitário e disciplinado. 16 O entusiasmo de John Saul diante de um determinado tipo de interferência na vida urbana é revelador do espírito de uma época:

Politização era uma prioridade igualmente premente nas áreas urbanas, especialmente numa cidade tão grande como corrupta como Lourenço Marques. Observando o processo pela primeira vez, não pude deixar de simpatizar com os cambojanos no afã de evacuar sua capital após a libertação! (Saul, 1979, pp. 86-87; grifos meus) 17

Inimigos, suspeitos, improdutivos e vadios

Acompanhando a institucionalização das machambas comunais, os campos de trabalho e reeducação constituem uma das marcas do que a população denomina de"tempo Samora". 18 Se a lógica do trabalho e a ruptura com lealdades anteriores instituem uma sorte de continuidade entre as machambas comunais e os campos, estes últimos se caracterizam fundamentalmente pelo caráter punitivo. 19 Trata-se de espaços para onde eram enviados os considerados"inimigos" ou potencialmente sabotadores do novo projeto socialista. Uma imensa gama de indivíduos podia ser objeto de um expediente punitivo que tinha como base a acusação e como conseqüência o confinamento, sem contudo qualquer tipo de regulamentação ou sequer definição do procedimento institucional que levava de um ao outro.

Embora a relação dos campos com o sistema legal moçambicano ainda não tenha sido objeto de nenhum estudo sistemático, o trabalho recente de João Carlos Trindade (2003) nos dá elementos suficientes para percebermos a tentativa de instauração de um novo marco jurídico-legal, uma institucionalidade basal que abarcasse o sistema de campos de reclusão dos mais diferentes tipos. Segundo este autor, em meio a um processo revolucionário que previa"a destruição de todos os vestígios do colonialismo e do imperialismo, para a eliminação do sistema de exploração do homem pelo homem, e para a edificação da base política, material, ideológica, cultural e social da nova sociedade" 20 , não apenas os sistemas de ensino ou saúde viram-se diretamente afetados pelas nacionalizações, mas também o sistema jurídico, que procurou acompanhar a transformação radical do aparelho do Estado. Nos meses seguintes à independência, destaca-se o Decreto-Lei n. 21/75 (11 de outubro), que criava o Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), a cuja direção são concedidos poderes excepcionais entre os quais o de"deter pessoas, determinando-lhes o destino que achar mais conveniente, nomeadamente o de as remeter à autoridade policial competente, aos tribunais, ou aos campos de reeducação" (Trindade, 2003: 106), e o Decreto n. 25/75 (18 de outubro), que transforma a Polícia Judiciária em Polícia de Investigação Criminal e a integra nas estruturas do Ministério do Interior, com o propósito de"evitar a dispersão da autoridade e garantir a coordenação e eficácia [...] de serviços públicos da mesma natureza exercendo fins idênticos" (ibid., p. 106).

Sabe-se que, em diferentes momentos, um complexo marco institucional atuou no que diz respeito ao envio e manutenção dos indivíduos nos campos. Complexo este marcado pela existência de cortes, pelos ministérios da Justiça e do Interior, pelos Tribunais Revolucionários, pela polícia secreta (SNASP), pelos Grupos de Vigilância Pública e pelos Grupos Dinamizadores. Devemos estar atentos, contudo, ao caráter eminentemente extrajudiciário associado à experiência dos campos, muitas vezes qualificado como excessos ou mesmo desvios. 21

Parece ser que, nos primeiros anos que se seguiram à independência, o que definiu a possibilidade de confinamento num campo de reeducação estava associado diretamente ao passado do indivíduo ou à lógica inquisitorial da"acusação" 22 . Os"comprometidos" 23 são um bom exemplo: no início, tratava-se de indivíduos que, entusiastas da independência ou da revolução, tinham alguma passagem comprometedora em sua trajetória individual anterior e deviam, de bom grado, dirigir-se para a"reeducação". Tudo leva a crer, contudo, que as"acusações" foram responsáveis por boa parte das deportações, e estavam diretamente associadas ao potencial anti-revolucionário do indivíduo ou ao seu comportamento moral. Assim, mulheres acusadas de prostituição e indivíduos acusados de feitiçaria, vadiagem 24 , alcoolismo ou compromisso direto com o antigo regime (o caso dos antigos régulos), podiam ser enviados para os campos de trabalho e reeducação 25 . Acusados ou suspeitos que possuíam nacionalidade portuguesa foram, geralmente, beneficiados com a expulsão do país, o célebre"20/24", objeto ainda de múltiplos comentários nos dias atuais, ou seja, 20 quilos, 24 horas: acusado de sabotagem ou atuação contra-revolucionária, o indivíduo deveria deixar o país com no máximo 20 quilos de bagagem e em menos de 24 horas. Aos moçambicanos, a acusação não deixava alternativa: levava diretamente ao campo.

Inimigos do projeto revolucionário foram diretamente enviados a campos de reclusão no distante Niassa. É o caso de Joana Simeão e Uria Simango 26 , capturados e presos ainda no período de transição. Ambos tinham passagens pela Frelimo e, nos anos que antecederam o 25 de abril de 1974 e nos meses que o sucederam, aproximaram-se de grupos que pretendiam ser uma alternativa ao movimento revolucionário em curso. Foram enviados para um campo de reeducação em outubro de 1975, com mais 3 mil indivíduos acusados de serem"inimigos" 27 , foram fuzilados em data e circunstâncias jamais esclarecidas. O episódio segue sendo objeto de especulações, comentários e rumores por parte de diversos setores da população até os dias atuais. O que fizeram ao longo do tempo que permaneceram no campo, o seu quotidiano, e o que levou a sua execução sumária, não se sabe.

Estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil indivíduos estariam concentrados em 12 campos de reeducação (Rinehart, 1984, p. 65; Tartter, 1984, p. 200; Howe, 1984, p. 283), número que cresceria nos anos subseqüentes. Em duas ocasiões, foram anunciadas cerca de mil detenções (Howe, 1984, p. 283), e em 1982, num expurgo realizado junto aos órgãos policiais moçambicanos, anunciou-se a suspensão de mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação (Howe, 1984, p. 280). Os centros de ensino e a universidade foram particularmente afetados pela crescente dureza do regime, e muitos estudantes foram também enviados aos campos. 28 Em 1983, a Faculdade de Direito foi fechada (Trindade & Pedroso, 2003, p. 297) e seis estudantes da Universidade Eduardo Mondlane foram condenados por atividades subversivas a 48 chibatadas cada um e em seguida enviados para a reeducação (Howe, 1984, p. 279). No início dos 80, praticamente todos as Testemunhas de Jeová estavam concentrados na reeducação (ibid.). 29

Mas será em 1983 que uma iniciativa alcunhada"Operação Produção" terá um imenso impacto junto à população, fazendo parte, até hoje, de inúmeros relatos e rumores. Desencadeada logo a seguir às decisões do IV Congresso da Frelimo (Maputo, 26 a 30 de abril de 1983), cujo lema foi Defender a Pátria, Vencer o Subdesenvolvimento, Construir o Socialismo, tratou-se de uma ação policial de natureza repressiva destinada a enviar para zonas rurais com baixa densidade demográfica, em particular ao Niassa, aqueles que, nas grandes cidades,"viviam na delinqüência, no ócio, no parasitismo, na marginalidade, na vadiagem, na prostituição". O propósito seria transformá-los em"elementos úteis, trabalhadores dignos, cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos, responsáveis merecedores de aceitação social ". 30 Os números de deportados para o Niassa oscilam entre 50 mil (Tartter, 1984, p. 201) e 100 mil pessoas (Howe, 1984, p. 277). Lá, concentrados em campos, deveriam machambar ao longo do dia e ter aulas de marxismo-leninismo no final da tarde. 31

Ao longo da Operação Produção, as redadas poderiam ocorrer a qualquer momento, quando as forças de segurança saíam pelas ruas e avenidas de Maputo e da Beira e solicitavam aos transeuntes comprovantes de trabalho, no caso dos homens, e de casamento ou trabalho, no caso das mulheres. Quando não podiam comprovar sua atividade ou seu status, eram confinados em caminhões, concentrados nas redondezas da cidade e logo, à noite, enviados nos aviões das Linhas Aéreas de Moçambique, ou em aviões militares, para o Niassa, ou em caminhões para distintos campos espelhados pelo país. Longe de encontrarem um campo organizado, eram entregues ao abandono, e indivíduos que muitas vezes nunca tinham tido nenhum contato com a vida rural, eram obrigados a fazer machamba, a construir sua palhota e as instalações comuns. 32 A fuga era impossível ou levava à morte certa: o Niassa é uma imensa e desabitada província, em grande parte coberta por selvas e terrenos inóspitos. Na atualidade, o retorno daqueles que há mais de vinte anos foram enviados para esta região ainda é notícia, e são inúmeras as histórias sobre os que foram devorados por leões, mortos por picadas de cobra ou vítimas da malária e outras doenças.

Dada a situação crescentemente precária do país, não se pode esperar que as condições dos campos fossem minimamente adequadas. Às crises na produção nos anos que sucederam a independência – que devem ser atribuídas não apenas ao fracasso econômico das machambas comunais, mas ao êxodo massivo dos portugueses e outros grupos associados a determinadas atividades profissionais especializadas e mesmo ao boicote e à sabotagem sistemática de antigos colonos – devem-se somar as condições climáticas, secas e enchentes que se sucedem e, sobretudo, a guerra que, inicialmente localizada, finalmente acaba por se espalhar por todo o país. A hostilidade da Rodésia de Ian Smith, da África do Sul do apartheid e de antigos colonos estabelecidos nestes países de fronteira foi decisiva para a formação de grupos de rebeldes que, denominados pelo regime de"bandidos armados", viriam a dar origem à Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) e a uma guerra que, até os dias atuais, resiste a interpretações gerais pelo caráter diverso e violento que assumiu em todo o território nacional. Em meio à crise, podemos imaginar não apenas o estado de abandono ao qual foram lançados os indivíduos enviados para os campos de trabalho e reeducação, mas também o caos que acompanhou o seu progressivo desmantelamento. Em entrevistas realizadas em Inhambane, os últimos dias do"campo" foram narrados com grande intensidade por aqueles que, subitamente, e após anos longe de sua terra natal, viam-se obrigados a lançar-se num caminho que, em meio à guerra, poderia durar meses. 33

Uma mesma pergunta caberia aos que foram confinados nos campos, os que garantiram o seu funcionamento e os habitantes de suas redondezas: qual a percepção que tinham do que realmente estaria acontecendo? E aqui pretendemos estabelecer um diálogo com a percepção de Günther Schlee sobre os conflitos numa região localizada entre a Etiópia e a Somália (Schlee, 1998, p. 200). O etnólogo procura demonstrar como um mesmo conflito admite múltiplas interpretações em função do interlocutor e que, no limite, sua inteligibilidade local escapa completamente à visão que dele têm as lideranças ou representantes do Estado-nação. Assim, um conflito que surge associado à idéia de"movimento de libertação nacional" pode traduzir uma outra conflitualidade que ganha inteligibilidade numa lógica de linhageira, numa disputa envolvendo terras ou água, em acusações de feitiçaria ou mesmo no simples desejo de um indivíduo de se apropriar de bens alheios. Estamos convictos de que muitos dos que foram enviados aos campos, na condição de acusado ou de funcionário, não compreendiam o que estava ocorrendo como parte de um processo"revolucionário", mas sim como algo que fazia parte de ciclos de suspeitas e acusações cujo significado último é absolutamente local. Da mesma perspectiva, interessa compreender a forma como os camponeses da região onde eram instalados os campos compreendiam aquela inédita situação.

Os rumores sobre aqueles que foram enviados aos campos, e os relatos que pudemos recolher, salientam que se trata de pessoas marcadas, que não conseguiram recuperar efetivamente a vida anterior a esta experiência que passou a fazer parte de sua própria identidade social, algo semelhante ao que Michael Pollak (1990) percebe em seu trabalho sobre a memória dos que passaram pela a experiência concentracionária. A reconstrução de sua identidade pessoal e social passa pela referência ao campo: os que foram enviados para os campos destacaram-se da sociedade e passaram a carregar uma marca corporal, pois para o campo levaram apenas aquilo que lhes é irredutível: seu corpo biológico. 34

Histórias e rumores

Os campos de reeducação, de trabalho ou de prisioneiros já não existem em Moçambique, assim como tampouco as antigas machambas comunais, boa parte abandonada ou transformada em localidade. Assim, uma aproximação de tipo etnográfica clássica é impossível. No entanto, os campos se fazem presentes no quotidiano de seus habitantes na forma de histórias, lembranças e, sobretudo, rumores. Ter passado por um campo de reeducação, ter sido objeto da Operação Produção, constitui, sem dúvida, uma marca. Sempre que manifestamos o interesse pelo assunto, entre os mais distintos grupos sociais, a referência a fulano ou sicrano que teria passado parte de sua vida confinado é constante. Todos conhecem alguém que passou por um campo, e isso se expressa em sugestões como"você deve falar com sicrano, ele esteve no Niassa, na época da operação produção";"você conhece fulana? Ela esteve na reeducação".

Foi em Homoíne, capital do distrito do mesmo nome, na província de Inhambane, que ficamos sabendo que para Chichinguire, onde se estabeleceram oriundos da antiga luta de libertação nacional, foram enviados indivíduos para a reeducação. E foi lá também que soubemos que a localidade de Inhassune, a cerca de 50 quilômetros, fora fundada a partir de remanescentes da Operação Produção que lá permaneceram. Localizada entre Panda e Inharrime, num terreno claramente inóspito para a agricultura familiar e portanto com baixa densidade populacional, Inhassune se assemelha a inúmeras localidades de beira de estrada, com seu mercado vibrante, algumas casas de alvenaria cercadas de palhotas, alguns estabelecimentos para venda de bebidas, capulanas e outros produtos como óleo, sal, açúcar e sabão, e muitos pontos vendendo milho, arroz, amendoim, caju, mandioca, batata, peixe seco... Caminhar pelas searas do mercado pode nos levar ainda a pontos mais escondidos, onde encontramos carne de caça – supostamente proibida, mas evidentemente tolerada –, o marcado de bebidas alcoólicas tradicional ou mesmo produtos usados por curandeiros e feiticeiros.

Quando chegamos a Inhassune, e sem saber ao certo como abordar a origem da localidade, nos dirigimos à primeira barraquinha, logo à entrada do que seria o mercado. Como é recorrente, fomos recebidos com curiosa simpatia. Manifestei interesse por adquirir algumas capulanas, sempre um bom pretexto para dar início a uma conversa, e perguntei à senhora da barraquinha se ela era da região. Rapidamente ela me respondeu:"não, vim para cá com a Operação Produção". Mais uma vez me deparei com a extraordinária disponibilidade para a narrativa por parte dos moçambicanos. Ao contrário do risco de não conseguir informações – risco para o qual fora advertido inúmeras vezes, quer por parte de colegas que imaginam a dificuldade de ter acesso a um relato evidentemente traumático, quer por parte das elites de Maputo, que insistem na existência do silêncio em Moçambique – dona Esther, assim se chamava, escancarou seu"antes" e seu"depois", e se ofereceu para me apresentar aos remanescentes da Operação Produção que permaneciam em Inhassune.

Em outras ocasiões em Inhassune, pudemos nos reunir com Dona Esther e sua filha – Dona Esther é uma espécie de líder local e a ela se atribui a fundação da localidade e, sobretudo, do mercado que lhe dá sentido hoje em dia – e com o senhor Lapso Navane (também fundador do mercado), senhor Moisés, senhor Luis Magakagaka e senhor Carlos Xintanica. Recuperarei aqui alguns termos das diversas conversas que tive com eles, sempre numa das barraquinhas de dona Esther, com refrigerantes, às vezes vinho ou cerveja, sanduíches de ovo, milho e batata doce. Nesta apresentação não recuperarei a história de vida de cada um deles, apenas algumas passagens que, na conversa coletiva gerava uma aprovação geral da platéia, comentários ou gestos de desgosto com relação aos agentes do governo, ou àqueles que eram responsabilizados por seu engajamento na Operação Produção.

Dona Esther e senhor Moisés atribuíram à inveja o fato de terem sido enviados à Inhassune. Dona Esther era uma próspera comerciante na Maxixe, tinha várias barraquinhas no início dos anos 80, e tinha dois filhos, embora não fosse casada. Segundo Dona Esther, o fato de ter filhos sem estar casada foi utilizado por aqueles que tinham inveja de sua prosperidade, ela foi acusada de prostituta. O pai dos seus filhos assumiu apenas a paternidade do rapaz, e a menina, que na altura tinha cerca de cinco anos, foi enviada num caminhão junto com a mãe a um lugar inóspito, onde não havia nada além dos militares da Frelimo que cercavam a zona, já naquele momento atacada constantemente pelos chamados bandidos armados. Senhor Moisés era de uma localidade costeira de Nhassoro, tinha três redes e seis empregados, duas mulheres e dez filhos, e chegou mesmo a ser chefe de bairro: foi denunciado como improdutivo por aqueles que se queriam fazer com sua redes e seus barcos, e enviado para Inhassune. Não voltou a ver sua família. No momento, não quer dinheiro, não quer nenhuma forma de indenização: disse querer um agradecimento, pois vive como se tivesse uma ferida aberta. Dona Esther afirmou mais de uma vez que quer reconhecimento: um documento oficial, dizendo pelo que passou, pois não quer voltar a ser raptada e deportada mais uma vez no futuro.

Senhor Carlos era de Mabote, região interior distante. De Mabote foi para a Maxixe, onde havia um escritório da Wenela, empresa que controlava o contrato dos mineiros que iam para a África do Sul. Foi quando teve a necessidade de renovar seu registro civil, e pegou um barquinho para ir à capital da província, Inhambane, e lá estava quando teve início à Operação Produção. Os grupos dinamizadores e autoridades locais comunicaram que todos os bairros deveriam enviar um número determinado de improdutivos. Como ele era de fora, matswa, um estrangeiro, foi acusado de improdutivo. Se no caso de Dona Esther e senhor Moisés a"inveja" foi a explicação, no caso de Carlos, o termo usado foi"tribalismo". Afinal, ele era um trabalhador, já havia ido à África do Sul, e deixara mulher e filhos em Mabote – os quais acabaram por ser seqüestrados e mortos pela Renamo. Segundo o senhor Moisés:"fui raptado sem julgamento; e trabalhei como escravo durante anos, sem esclarecimento e sem vencimento". O Senhor Magakagaka também atribuiu ao tribalismo seu rapto pelo governo. Curandeiro, ia e vinha constantemente da África do Sul. Também estava fora de sua terra, de suas alianças, de seus amigos, parentes e xarás. Bastava não ser conhecido para ser suspeito, bastava ser suspeito para ser acusado.

O senhor Lapso possui uma deficiência visual provocada na guerra do Ian Smith: combateu junto com a Frelimo no Chimoio e no Zimbábue, e também estava em Inhambane quando foi denunciado. De nada lhe serviu ter documentos militares, pois não possuía documentos de trabalho: segundo Lapso, o governo ofendeu a liberdade e a tranqüilidade.

Todos eles fizeram parte dos cerca de 375 indivíduos que foram concentrados e permaneceram durante anos em Inhassune. Quando lá chegaram não havia nada, dormiam ao relento, eram vigiados pelos militares e mal tinham o que comer – viviam basicamente de folhas de cacana, bananas e comiam cinzas. Tiveram que construir suas casas e começar a plantar roça para comer, mas não só: Inhassune se transformou numa verdadeira empresa estatal, que, nos seus termos, funcionava como no tempo colonial, na base do chibalo, regime de semi-escravidão, na base da bofetada e da ameaça constante dos militares e de alguns comandantes cruéis. Chegaram a plantar algodão, milho, girassol, abóboras, mandioca, feijão e batata, mas nada ficava com eles: os caminhões do Estado vinham e levavam tudo. Segundo eles, muitos mulatos da Maxixe e de Inhambane também foram concentrados ali, mas todos morreram de fome: os mulatos, ou mistos, constituem um grupo fundamentalmente urbano, não possuindo nenhuma memória do trabalho na machamba.

As associações não eram apenas com o chibalo, e muitos falaram em escravidão, mas de um tipo peculiar:

-Éramos como escravos...
-Escravos?
-É verdade. Pior que chibalo. Não sabíamos quem era o patrão. Escravo tem dono, no chibalo tem patrão. Éramos escravos sem dono.

Muitos morreram nos ataques da Renamo. E então me lembrei da história de Belinha, que me foi contada em Inhambane. A bela mulata foi acusada de prostituição, e enviada para a reeducação, cerca de Homoíne. Lá aprendeu a plantar e conseguiu sobreviver à fome, sendo morta, após dez anos de confinamento, no massacre de Homoíne, responsável pela morte de cerca de quinhentos indivíduos em apenas um dia, em julho de 1987.

Assim, em Inhassune e Homoine voltei a me encontrar com histórias de guerra, de deportações e seqüestros, que já havia escutado no Chimoio e em Inhambane. Como a história do senhor Alberto, que foi enviado com toda a família para o Niassa, onde permaneceu por quase uma década, tendo que fugir quando a guerra tornou inviável a permanência do campo. Ou a história de dona Madu, indiana que permaneceu por três anos no mato raptada pelos bandidos armados, e conseguiu escapar em meio a um bombardeio e voltou para a sua cidade com o filho de um guerrilheiro.

Mas são muitas as histórias de raptos, deportações e seqüestros, geralmente contadas com certa tranqüilidade, e diante de uma platéia que acompanha com atenção a história. Uma profusão de narrativas que nega a imposição do silêncio, que parece vir das elites moçambicanas, ou mesmo dos intelectuais, na forma de:"eles não vão contar". Em Moçambique nos deparamos com um cenário oposto ao de outros contextos de pós-guerra: não há uma fala oficial, e a enunciação de um debate público parece constituir uma ameaça de retorno à guerra. Não há um comitê de verdade e reconciliação, ou uma associação dos antigos deportados... Os sobreviventes ou voltaram para as suas aldeias e cidades, ou permaneceram nos locais para onde foram levados, negando a possibilidade de reatar o fio perdido de sua vida anterior. E aí, nos bairros, nas localidades, nas vilas, encontramos tudo menos o silêncio. São novamente as histórias de guerra que se impõem, numa naturalidade desconcertante para o antropólogo. É quando percebemos que estamos conversando com gente, que além de histórias para contar, parecem ser portadores de outras histórias, as histórias de seus antepassados que, diga-se de passagem, convivem com eles no presente, enviando sinais, exigindo presentes, retribuições ou vinganças.

E aí raptos e seqüestros nos levam a experiências antigas, que passam pela guerra do Gugunhana e pelos exércitos formados por cativos, ou para a escravidão para as ilhas do Índico, que alcança a primeira década do século XX; ou para as deportações em massa promovidas pelos colonizadores portugueses, sedentos de terras para o estabelecimento de colonos ou para empresas agrícolas; os mesmo colonizadores que faziam uso do chibalo, ou trabalho forçado, lembrado por todos os meus interlocutores como análogo ao trabalho exigido pela Frelimo.

A explicação última para o sofrimento de alguém, contudo, não se esgota na atuação arbitrária do governante, seja ele o Gugunhana, o Estado colonial ou o Estado da Frelimo, ou mesmo os guerrilheiros da Renamo. São as disputas locais, que envolvem vivos e mortos, autóctones e estrangeiros, ciclos de feitiçaria e conflitos ditos tribais, que fazem eco aos desejos de um Estado central, que se apropria de formas institucionais normalmente associadas a estados totalitários, mas que encontra sua força justamente na sua fraqueza, e na sua rendição às formas locais de disputa e reprodução do poder.

Aceder a esta dinâmica exige atenção a estas histórias, muitas vezes fragmentárias e expressas na forma de rumor. Nossa experiência no terreno fez com que desconfiássemos de narrativas altamente estruturadas, geralmente construídas tendo em vista o que o nosso interlocutor acredita que queremos escutar, quase que seguindo um modelo e perseguindo a revelação de uma tragédia pessoal. É na forma de conversas, histórias fragmentárias e rumores que encontraremos peças preciosas a nos indicar o funcionamento e a dinâmica dos campos. Rumores que nos indicam as representações sobre as estruturas repressivas, sobre as transformações pelas quais passou o país, sobre a natureza do socialismo e sobre as relações entre indivíduos e famílias de diferentes estratos sociais no interior dos campos. É no rumor, fragmentado, sem pretensão de coerência, e sem o compromisso com a sedução do interlocutor – que encontraremos um dos elementos centrais desencadeados pela instauração dos campos: ciclos de vingança, suspeitas e acusações, ferramentas continuamente presentes na tessitura da instabilidade e da insegurança sentida aguda e cotidianamente por diversos grupos vulneráveis em Moçambique.

Notas

1 Nesse período, Moçambique estava sob o governo de transição, que tomara posse no dia 20 de setembro de 1974, após semanas extremamente turbulentas. O governo de transição contava com um alto-comissário português (Victor Crespo) e com um primeiro-ministro de Frelimo (Joaquim Chissano). A independência política de Moçambique com um governo da Frelimo foi no dia 25 de junho de 1975 (cf. Souto, 2007).
2 Jornal Notícias, Lourenço Marques, 08/11/1974, p. 14.
3 Jornal Notícias, Lourenço Marques, 09/11/1974, p. 5.
4 Sobre a concepção de"Homem Novo" em Moçambique, ver, entre outros, Geffray (1991).
5 Os dois próximos itens deste artigo foram trabalhados da perspectiva da inserção da experiência dos campos no universo da cooperação internacional em Thomaz (2007).
6 Machel (1985, p. 196-197).
7 No momento está em curso um levantamento sistemático da bibliografia histórica e sociológica existente sobre a experiência dos campos em diferentes países. Saliente-se, contudo, que, com exceção da União Soviética e de alguns países da Europa do Leste, em particular a Bulgária, a bibliografia é escassa. Chama atenção a bibliografia de natureza"confessional", particularmente para o Sudeste Asiático, com pouco interesse para o tipo de trabalho que pretendemos realizar. Cf. Stien (1993); Thanh (1994); Vu (1988).
8 São várias as referências a este momento quase que transcendental entre os que passaram por Nashingwea (entrevistas pessoais). A partir do relato de Daniel Mbanze, Vice Ministro do Interior no primeiro período pós-independência, Barry Munslow afirma:"In the first Frelimo camp at Bagamoyo, Tanzania, endless discussions took place. Each recruit spoke about his personal experience of colonial oppression and exploitation in his home of origin, and also of the culture and traditions of his people. In this way people were able to pool their knowledge and gain an over-all view to fight in different parts of the country, then they had to understand and win the support of the people wherever they were operating (Munsolw, 1983, p. 88).
9 Nashingwea não foi a única instituição vinculada aos movimentos de libertação nacional moçambicanos, prematuramente reunidos sob a bandeira da Frelimo, instalada na Tanzânia. A tendência socialista de Julius Nyerere foi particularmente favorável à Frelimo, e permitiu o estabelecimento de outras organizações, das quais destacamos o"Mozambique Institut", em Dar es Salam, à espera de um estudo detalhado, sobretudo em função dos conflitos internos da Frelimo, que ali encontraram eco no final dos anos 1960 (cf. Munslow, 1988).
10 Sobre a ujamaa como projeto, ver Nyerere (1968, pp. 337 e seguintes). Sobre os resultados produtivos da implantação da Ujamaa, ver Stein (1979). Devemos salientar que a proposta de Nyerere opunha-se ao que o dirigente africano chamava de"teologia do socialismo", socialismo produto de uma"doutrina verdadeira", canônica. Da sua perspectiva, o socialismo deveria existir para além dos conceitos marxistas-leninistas, e assim poder-se-ia buscar um"socialismo africano" que não teria como ponto de partida a experiência européia. A idéia de um"socialismo africano" de tipo"não-científico", e que teria por base a experiência, história e singularidades africanas, teria profundo impacto na Gana de Nkrumah, no Egito de Nasser, e na Argélia, Guiné-Conacry, Somália, Madagascar, Tunísia e Mali. Numa outra direção, Moçambique foi o primeiro país africano a afirmar sua filiação ao marxismo-leninismo. Assim, devemos enfatizar que a experiência das ujamaa na Tanzânia foi profundamente distinta daquela levada a cabo pela institucionalização das machambas comunais em Moçambique (Serapião & El Khavas, 1979, pp. 138-139). Para o debate em torno do caráter"nacional" da experiência socialista na Tanzânia, cf. Saul (1979)."It was in this training camp that Frelimo first introduced collective production methods, and the army was to be at the forefront of their later implementation in the liberated zones. The seeds of Mozambique's future progressive development strategy were to be found here. But the importance of the camp was more than just this. As Samora Machel later commented: 'When we arrived here in 1964, we came divided, and it was the unity which we managed to obtain here that permitted us to win Mozambique'." (Munslow, 1983, p. 89).
11 Nas resoluções sobre a justiça da"Ofensiva Política e Organizacional Generalizada na Frente da Produção", por ocasião da 8 ª sessão do Comitê Central da Frelimo, reunida em Maputo em fevereiro de 1976, afirmam-se explicitamente três itens a orientar a reestruturação jurídica do país: (a) as experiências da luta de libertação nacional; (b) as experiências da luta de classes; (c) as experiências revolucionárias de outros povos (apud Trindade, 2003, p. 107).
12 Já em marcha nos anteriores à independência nas zonas liberadas, as machambas comunais também ganham institucionalidade na"Ofensiva Política e Organizacional Generalizada na Frente da Produção". Entre as resoluções aprovadas, o item sobre as aldeias comunais"estabelece um conjunto de princípios a respeitar no processo de estruturação, estabelecimento, organização da produção e do trabalho, bem como as condições a observar na (sua) implantação" (Trindade, 2003, p. 107).
13 Geffray esteve, ao longo dos anos 80, envolvido num intenso debate sobre a guerra em Moçambique, no qual este autor defendia fundamentalmente suas causas internas (cf. Geffray, 1991).
14 É importante lembrar que, num primeiro momento, os GDs foram não só bem recebidos, como interpretados como indispensáveis no interior de um projeto efetivamente socialista que fosse capaz de prescindir da militarização e a burocratização. Segundo Luís de Brito, os GDs foram responsáveis pelas primeiras experiências de"participação popular" na vida política do país, sobretudo no que diz respeito à libertação da palavra, em especial no período que vai de 1974 a 1979 (Brito, 181). O entusiasmo do intelectual canadense John Saul em sua experiência em Moçambique no período que sucedeu a independência diante da atuação dos GDs é reveladora deste estado de espírito (cf. Saul, 1979, p..85-86).
15 Para ir de uma localidade a outra, sair de qualquer cidade ou visitar um parente, os indivíduos necessitavam de uma autorização especial, denominada de"guia de marcha". Sua obtenção dependia de uma solicitação ao GD, que podia demorar vários dias ou semanas para concedê-lo. As associações entre os guias de marcha e formas de controle de movimentação da população"indígena" ao longo de boa parte do período colonial são constantes (entrevistas realizadas no Chimoio, em 1997, e em Inhambane, entre 2001 e 2004).
16 Em Inhambane, em pesquisa de campo realizada em diferentes períodos entre 2001 e 2004, indivíduos da coletividade indiana hindu, geralmente vinculados a atividades comerciais, fizeram referências a períodos em que deviam dedicar um ou dois dias da semana ao trabalho na machamba do Estado, para onde se dirigiam em caminhões. Em Maputo, várias narrativas fazem referência ao trabalho em machambas que, localizadas nos bairros de residência ou nos arredores da cidade, estavam sob controle dos GDs. Negar-se a realizar este tipo de trabalho podia ter várias conseqüências, da acusação de sabotagem ou de"inimigo do povo" às chibatadas, prática colonial reintroduzida pelo regime no início dos anos 80. A Lei nº 5/83 de 31 de março introduz a pena de chicotada para punir autores, cúmplices ou encobridores de crimes graves consumados, frustrados ou tentados (Trindade, 2003, p. 111).
17 Para Saul, e seguindo o pensamento das lideranças da Frelimo, particularmente Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos, o campesinato deveria ser a força motriz da revolução africana (Saul, 1979, pp. 313 e ss.).
18 A partir de diferentes pesquisas realizadas entre as regiões centro e sul do país, procurei interpretar as narrativas em torno do"tempo" e das"transformações" como representações coletivas cruciais para a compreensão de um sentido de pertença (Thomaz, 2002).
19 Nos campos ou nas machambas comunais, os indivíduos deveriam"nascer de novo", por meio do trabalho disciplinado a partir de rigorosos princípios científicos e pelo abandono de suas lealdades anteriores, familiares, religiosas, étnicas, de classe etc. No caso das machambas comunais era decisivo, assim, afastar os camponeses de suas terras tradicionais, geralmente ligada ao culto aos antepassados.
20"Decisões do Conselho de Ministros" in Boletim da República, I Série, n. 15, de 29 de julho de 1975 (apud Trindade, 2003, p. 97).
21 Ao contrário de um certo lugar comum existente entre certa intelectualidade de"esquerda" que combina a idéia de"necessidade" com a complacência do"excesso", exploraremos a noção de campo como algo sistêmico de um certo tipo de regime político. Procuramos escapar, assim, daquilo que Hannah Arendt percebe como um"fascínio" pela idéia de"necessidade" como forma de explicar a arbitrariedade (Arendt, 2004, p. 91).
22 As referências aos campos de reeducação aparecem aqui e acolá, em textos de diferentes matizes ideológicos e na memória dos moçambicanos. O jornalista José Pinto Sá foi responsável por uma reportagem que teve um impacto razoável em setores da sociedade portuguesa. Recentemente, e na tentativa de recuperar o período da mal denominada descolonização, temos a sistematização de uma certa memória por parte de indivíduos das forças armadas portuguesas (cf., entre outros, Bernardo, 2003) e daqueles portugueses politicamente imbricados com o processo político de transição (cf. Almeida Santos, 2006a e 2006b).
23 Categoria vaga aplicada em diferentes circunstâncias e momentos. No início, vários intelectuais ou profissionais que teriam tido alguma sorte de intimidade com o regime colonial foram classificados como"comprometidos" e deslocados por um período determinado para a reeducação, geralmente em campos em províncias distantes, onde deveriam machambar e ter aulas de marxismo-leninismo. Em outros momentos, os acusados de serem comprometidos com o regime anterior, eram obrigados a fazer um mea culpa público – que se aproximava, em grande medida, aos rituais iniciáticos de Nashingwea – antes de serem enviados para a reeducação.
24 A categoria vadiagem inicialmente sugere a idéia de"vagabundagem" ou"desocupação"; contudo, determinados comportamentos associados à sexualidade podem enquadrar-se em língua portuguesa nesta categoria.
25 Curiosamente, membros das antigas"tropas negras" coloniais – um imenso contingente africano integrado ao exército colonial – parecem não ter sido sistematicamente enviados aos campos (ao contrário daqueles que teriam colaborado com a antiga polícia política portuguesa). Em 2002 tivemos a oportunidade de realizar uma longa entrevista com o senhor Jeremias, em Inhambane, antigo"tropa" português que não foi submetido a nenhum tipo de confinamento, mas simplesmente perdeu qualquer possibilidade de conseguir um emprego e foi"esquecido" no subúrbio da cidade. Segundo João Paulo Borges Coelho,"estigmatizados por uma nova sociedade politicamente muito coesa e definida, estes moçambicanos reintegraram-se, silenciosamente, no tecido social da região ou atravessaram fronteiras em busca de outros lugares" (Borges Coelho, 2003, p. 195).
26 O trabalho de Barnabé Lucas Ncomo (2004) constitui uma das poucas tentativas, claramente ideológica e num contexto marcado por uma disputa surda não menos ideológica, de enfrentar o desaparecimento de Uria Simango e de outros que, como Joana Simeão e Lázaro Nkavandame, foram detidos ainda no período de transição e enviados para um campo de reclusão no Niassa.
27 A estimativa de 3 mil indivíduos é citada por Rinehart (1984, p. 61).
28 É John Saul novamente a celebrar a interferência do Estado revolucionário nas instituições de ensino, particularmente na Universidade Eduardo Mondlane, nos meses que sucedem a independência:"Even at the university – most hierarchical and deeply colonized of inherited institucions – the 'grupos' iniciative was in train, throwing up, in addition, a new kind of structure for the faculty boards. From now on the latter are to be constituted by three representatives from the teaching faculty, three from the students, and three from the staff (typists, cleaners, etc.) – the dean to be chosen, in turn, from that number. Seven years spent teaching in an African university helped me to realize how startling a beginning it was" (Saul, 1979, p. 87; grifos meus).
29 Destaque-se que a Frelimo, como partido de vanguarda marxista-leninista, em princípio não possuía boas relações com as lideranças de nenhuma das religiões existentes no país. No entanto, as relações eram muito diferenciadas, e se a Igreja Católica e seus quadros viram-se afetados pelas nacionalizações do ensino e da saúde e foram sistematicamente acusados de colaboracionismo com o antigo regime, as confissões protestantes e os muçulmanos vangloriaram-se muitas vezes de suas predisposições anti-coloniais e anti-lusitanas. No caso dos muçulmanos, especula-se inclusive sobre a simpatia de seus líderes para com Samora Machel e sobre alguma medida de reciprocidade (cf. Macagno, 2004). Não há notícia, contudo, de expurgos em função da fé religiosa, com exceção das Testemunhas de Jeová, como conseqüência de sua recusa em prestar o serviço militar, jurar a bandeira e gritar"viva a Frelimo".
30 Preâmbulo da Lei n. 7/83 de 25 de dezembro de 1983 (apud Trindade, 2003, p. 111). Curiosamente, João Carlos Trindade, fazendo referência à natureza que estas e outras resoluções do Partido e do Estado, salienta que, apesar de suas"retas intenções", ter-se-ia produzido muitas"vítimas inocentes", ao que supõe a existência de"culpados" (cf. ibid.).
31 Dados obtidos a partir de entrevistas.
32 A idéia de"abandono" sugere, certamente, uma aproximação aos campos de trabalho soviéticos – distintos dos campos de trabalho nazistas, caracterizados pelo extermínio associado a uma lógica burocrática e rigorosa"organização" (cf. Arendt, 1990, p. 348). Recentemente, a jornalista Anne Applebaum insiste nos longos períodos de absoluto caos e abandono que teriam caracterizado os gulags na União Soviética (2004).
33 É impossível não pensarmos em A trégua de Primo Levi (1997), onde recupera o dia-a-dia do"retorno" (como retornar para o que já não existe?) dos remanescentes dos campos de concentração nos anos que sucederam a II Guerra.
34 O"campo", a excepcionalidade que supõe, os mecanismos extrajudiciários que definem seu caráter administrativo, constitui o espaço por excelência de uma relação quase que direta, sem mediação, entre o Estado e o indivíduo, despossuído de seus laços familiares e afetivos, arrancado de sua identidade social e posto diante daquilo que constitui o limite da sua humanidade: o seu corpo biológico (cf. Agamben, 2004, pp. 125 e ss).







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