quinta-feira, 22 de março de 2018

Abutres da minha terra (*)


Ao Joaquim Boaventura Massingue

Há gente que vive no irracional.
Vivem de apetites do mal.
São imprevisíveis feitos crocodilos.
Calculistas feitos chitas.
Ágeis feitos serpentes.
E oportunistas feitos abutres!

Ser honesto é um perigo entre nós. Então salve-se quem quiser/puder. Isto está infestado! "Que pena...". Disseste – a nós filhos – repetidas vezes –, no leito do hospital – antes da misteriosa levar-te. Inconsciente já estavas há alguns dias. Os gemidos eram cada vez mais fortes... Não te comunicavas com frequência! Os seus olhos ficavam presos no teto daquele quarto do HCM... Parece que vias coisas. Mesmo com a dor que te consumia... nos momentos de aparente lucidez distribuías sorrisos, bem me lembro do sorriso meu grande amigo! Havia muita esperança que o mal não venceria, até mesmo depois de ouvir... "a situação é mesmo grave, deixemos tudo nas mãos de Deus". Cenário igual vi num filme de ficção... era tudo irreal.
Os gemidos eram sufocantes e perfurantes para todos que te amam. Sentimo-nos reduzidos (minúsculos) e incompetentes por nada pudermos fazer para quem deu tudo por nós. Sempre foste forte, todos sabemos... era para nós mais uma provação! Rios escorrem pelo rosto, são da dor...
E os abutres? Foram os que te levaram ao leito do hospital e, depois, ao além. Desta luta... Dedicaste a vida a inalar o pó de giz naquelas salas de dar dó. Face às dificuldades, foste à faculdade: abriste-nos os olhos! Com seu jeito frontal e dono de si levaram-te ao dirigismo. Mas é lá onde encontraste os abutres. Maltrataram-te. Durante dias colocaram-te num compartimento minúsculo. Nove anos se passaram… lutaste para te defenderes das injúrias e acusações. Provas não tinham e não tinham o porquê as terem... sempre vincaste e nós acreditamos! Lutaste até as últimas consequências... mas venceram os abutres... venceram porque se alimentaram da sua saúde até desgastá-la. Vais com a dor de não ter feito justiça, vais com a dor de não concretizares alguns dos nossos sonhos, os nossos projectos... por isso "que pena", disseste de forma repetida no leito do hospital.
Já há algum tempo que o coração não pulsava com vigor e, com isso, outros órgãos vitais foram disfuncionando. Neste mar de incertezas e de lutas, o que mais nos deixava irritado é que te preocupavas mais connosco e com os outros que consigo próprio. Quem te conheceu sabe, era a sua personalidade! Foste um homem de ideais e convicções próprias. A humildade foi sua marca.
Mesmo na dor, nunca quiseste ser peso para ninguém e ninguém mesmo...
À sua companheira de batalhas, nossa mãe, defendeste "giz nos meus filhos não... já basta eu e você". Mandaste-me à comunicação, onde caí no jornalismo... Orgulhavas-te, mas para ti já era igual a inalar giz. Enfim...
No seu velório, que inundou sua residência, lembrei aos presentes sobre: “Abutres da minha terra”, título do livro que ficaste por escrever. “Muitos, talvez, não percebiam ou não percebem a razão desse desejo do nosso pai. A final de contas, o que é um abutre?”, questionei perante centenas para depois explicar. “Abutre é um animal (ave) que se aproveita dos restos mortais de outros animais para se alimentar. É que o nosso pai apercebeu-se, durante a sua trajectória, que houve gente que agiu, comportou-se e aproveitou-se dele feito abutre. E alguns podem estar aqui”, disse perante um silêncio que era apenas interrompido pelo movimento dos ramos de árvores que plantaste no quintal. “Esquecem-se, os abutres, que podem ser vítima da sua própria natureza, do seu próprio destino!”, concluí.
E porque os abutres ainda moram algures... não querias que derramassem lágrimas de crocodilo no seu adeus. Escolheste o crematório… decisão que quem não percebe tentou contestar. Mas era a sua vontade. Foi sua, mas agora é também nossa! Cumpra-se!
Boaventura – é outra história por contar – nome do seu pai, que fizeste jus. Lembramo-nos das boas aventuras à terra dos macuas, onde ficamos por cinco anos, das conversas à mesa em Xai-Xai ou Chókwè, das piadas que contavas para nos colocar em gargalhadas, dos ensinamentos, das longas viagens via terrestre do Norte a Sul e vice-versa. Lembro-me ainda da vez que voltei à casa sem a pasta e cadernos, isso em Nampula, e consolaste-me… são tantos os episódios. Foste um grande amigo, um sábio companheiro.
Sempre gostaste do mar e foi lá onde depositamos suas cinzas como exigiste no testamento, porque poucos te compreendiam.
Aos seus amigos Victorino (Barrote), Banzima, Tembe, Mubai e tantos outros – que a imperfeição e a memória ofuscam –, os nossos mais profundos agradecimentos, foram grande suporte. Ao tio Zé, seu irmão de sangue e de luta… que esteve de perto nessa dura batalha. Encaminhou-mos, demonstrou-nos o significado e profundeza do amor que sempre vos uniu. Ao tio Cabral, tia Rosália, tia Maria, tio Orlando, Herculano e tantos outros familiares, que nos momentos mais difíceis, mostraram firmeza e apoio incondicional. Foram determinantes!
Nosso pai, palavras são apenas palavras… o que sentimos vai muito além do que podemos traduzir nestas letras que juntas fazem algum sentido.
Apesar de curta, que boa(a)ventura foi a nossa! Descanse em paz nosso herói, amigo, companheiro e eterno professor. Que Deus lhe dê o eterno descanso, até breve!

Agradecimentos extensivos aos meus amigos
e colegas pelo suporte e encorajamento!

(*) Título do livro que ficaste por escrever, nosso pai…

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