domingo, 15 de abril de 2018

“Mataram-me no momento em que fui violada e espancada. Agora estou viva”

15.04.2018 às 17h15

FOTOS ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Os olhos espelham a opacidade de quem desceu ao inferno e sobreviveu para contar. Farida Khalaf escreveu um livro em 2016 e anda pelo mundo a pedir que reconheçam o genocídio dos yazidis, minoria religiosa curda do norte da antiga Mesopotâmia. Foi o que fez quarta-feira perante duas comissões parlamentares na Assembleia da República. Considerados cidadãos de segunda no Iraque, os yazidis sofreram o impensável às mãos do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) em agosto de 2014. Farida foi vendida, violada e espancada durante quatro meses, até conseguir fugir para a Alemanha, onde vive. Ameaçada de morte na Europa, avisa que nada irá detê-la: “Mataram-me no momento em que fui violada e espancada. Agora estou viva”

Em 2016, duas yazidis venceram o prémio europeu Sakharov. Foi importante para o reconhecimento do genocídio?
Muito importante. É fundamental que os países europeus e a comunidade internacional reconheçam este genocídio, como é muito importante que as yazidis que foram vítimas do Daesh contem as suas histórias.
Como foi viver com o Daesh?
A pior coisa que pode acontecer a um ser humano. É-se um escravo, sem quaisquer direitos. As mães são separadas dos seus filhos, as crianças treinadas nos seus campos, as mulheres violadas e espancadas. Foi tão horrível que não há palavras que o possam descrever.
Onde estava quando foi raptada e como é que tudo aconteceu?
Vivia com os meus pais e irmãos a sul das montanhas de Sinjar, no norte do Iraque. Ainda que não tivéssemos os mesmos direitos de outros iraquianos, éramos felizes, eu frequentava a escola com o meu irmão mais novo e o meu pai trabalhava para o exército do Iraque. No dia em que o Daesh chegou, os que estavam mais perto das montanhas escaparam. A minha família não conseguiu. Estávamos integrados numa comunidade muçulmana e os nossos próprios vizinhos ajudaram o Daesh a capturar-nos, cercando a aldeia para que não tivéssemos hipóteses. Levaram os 1700 yazidis da aldeia para o edifício da escola, separaram homens, mulheres e crianças. Os homens, incluindo o meu pai e irmão mais velho, foram mortos nas imediações e atirados com todos os outros para uma vala comum. O meu irmão mais novo, que tinha 15 anos, ficou ferido, mas fingindo-se de morto escapou depois de o Daesh partir. Naquele dia 119 membros da minha família foram executados ou raptados.
Como é que uma rapariga de 18 anos arranja forças para sobreviver?
Tentei matar-me várias vezes durante o cativeiro, mas falhei. Confrontada com todo este horror, a minha vida passou a ser demasiado importante para mim. Pensei que tinha de lutar contra quem me fez isto e estou a dar o meu melhor. O meu pai, que sempre me encorajou, é quem me dá força ainda hoje. Costumava dizer-me: “Tu és forte e capaz de qualquer coisa.” Transporto sempre estas palavras comigo.
Ainda sente medo do Daesh?
Temo pela minha comunidade que ainda está no Iraque, mas, pessoalmente, não tenho medo.
O Daesh tem vindo a perder território no Iraque e na Síria, mas ainda mantém mulheres escravizadas?
Não temos a certeza de que o Daesh tenha sido vencido e sabemos que perto de 3000 yazidis continuam desaparecidos. Desconhece-se o paradeiro de muitas mulheres e de crianças que foram treinadas em campos do Daesh para serem usadas como homens e mulheres-bomba no Iraque e na Síria.
É doloroso recordar tudo o que lhe aconteceu?
É uma agonia, todas as vezes, mas prefiro contar em vez de esquecer. Sinto-me responsável por partilhar a minha história, com ela denuncio a de tantos milhares de pessoas raptadas e mantidas em cativeiro, não só yazidis mas de outras minorias que sofrem às mãos do Daesh. Faço-o para tentar impedir que venham a ocorrer campanhas semelhantes contra minorias no Iraque.
Acredita num Iraque unido, em que todos se respeitem independentemente das suas crenças?
Não posso dizer que seja impossível, mas acho muito difícil. Muitos dos que aderiram ao Daesh e participaram nas matanças voltaram para casa sem serem investigados. Prosseguiram com a sua vida, ao contrário da maioria das vítimas, que vive refugiada em tendas sem poder regressar ao Iraque.
Existe alguma humanidade nas pessoas que lhe fizeram isto?
Que tipo de humanidade pode ter quem separa mães e filhos, escraviza as mulheres e mata os seus entes queridos? Sonho um dia perguntar a um desses homens: “Porquê? Porque nos fizeram isto, a nós, ao vosso próprio povo?” É tão importante para mim que sejam julgados...
Acredita que isso acontecerá?
Sim, tenho uma forte crença na Justiça.
Encontrou espaço no seu coração para lhes perdoar?
É tão difícil...
Tem sonhos para o futuro?
O meu sonho é que o Daesh venha a responder na Justiça pelos seus crimes. Não consegui, até hoje, encontrar mais sonhos dentro de mim.

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